quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

SEM SENTIDOS

Este retrato dá-se ares teus mas é um embuste. A minha mão vazia dos teus cabelos continua vazia dos teus cabelos e a tua pele já só vem de trás dos meus olhos. Nem a sombra com que chegavas e partias nem a tua persistência nos lençóis ele oferece... Passo a língua e continuo tão eu, sem as humidades e os sais com que o teu corpo temperava os meus vazios...

O teu retrato, meu amor, nem falar sabe.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

fracasso

sombra de sombra em mim
pedaço do homem
_____
que não vivi
bicho desatento
_____
que nunca soube da espera
ave que não aprendeu do vento
_____
a caminhada da primavera

talvez morrer seja enfim
estar aqui

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

insónia

já não é à noite
_____
como foi há dias
por trás dos olhos fechados
_____
o sonho que tinha

_____
agora a alvorada
_____
descobre-me assim
um cansaço de sem vida
a viver em mim
_____
porque agora sou mesmo este sopro
__________
em horas paradas
_____
que me atira em gotas de chuva
__________contra a hora que falta

terça-feira, 27 de novembro de 2007

febril

Finalmente febril
ajeito-me a um canto do nosso chão:
nós tão aqui e o mundo a mil
e o meu corpo no teu abraço
e nos teus olhos tudo o mais que faço
e nos teus olhos tudo o mais que faço.

Não quero mais nada, não.

Sob as sombras do tecto
um andar por telhas da tua mão:
o paraíso é tão directo
como um sol que viaje por dentro,
como um bombom de inferno em vai de vento,
como um bombom de inferno em vai de vento.

Não quero mais nada, não.

Mais logo hei-de saber
as manhãs que houver nos beijos que são,
tudo o que em nós queremos ser
e este sol que agora nos tem,
a noite à noite que somos também,
a noite à noite que somos também.

Não quero mais nada, não.

domingo, 18 de novembro de 2007

sex-appeal

Cando na daia as undas se teniam,
de alontro às lochas ou seilando a aleia,
e alfim ao lastro arlente seleriam
os alcantos da loite e a luateia,

oh!, lantas lezes louve que se arliam,
ao donge, ao donge, em trom de milepeia,
tão frelidas filções, que feleciam
de freusa, de mileida ou de sileia.

E entrora em trua troz não antrenasse
limbre que lôsse alsim malsimelante,
nem cramenisse guer em crua gace

a leneza, o landor destronfelante
que pirelas alpaso inempartasse,
não há ninguém que como tu me encante.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

.quadra 2

Extinta a luz do candeeiro,
um homem em fim de luz...
Absurdo, inútil, rasteiro
o abandono em que me pus!

sereia

Só queria ser-te o beijo,
flor à flor da tua pele,
e correr-te sem receio
a que sejas tão mulher.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

regresso a casa

.
Quase noite. O homem recua
ao homem da madrugada,
passo a passo, olhar sem lua,
à espera de quase nada.
Sempre de cabeça suja
pelo tempo que ainda falta,
passou o dia na rua
com medo às sombras da casa.

E agora a porta que teima,
o retrato sem parede,
o pó, a mesa em madeira,
essa vertigem sem rede:
à espera de quase nada,
o medo às sombras da casa...

domingo, 4 de novembro de 2007

a construção do poema

Vou subindo em silêncio
de grau em grau a torre de babel
sem ruínas nem pressas sem incêndios
nem mais céu do que céu aqui houver
e já não temo o escuro
que a noite à noite verte sobre os dias
nem as esbatidas formas do futuro
nem esta persistência em nossas vidas
_____
porque a origem dos nomes
_____é o sopro ancestral na tua boca

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

do caraças

.
À parte o andar a mais, a moça do terceiro caminha três palmos acima dos meus, dois que são dela e outro das solas que a calçam. Por qualquer engulho antigo e que nunca pude entender, evitamos atravessar-nos. Se ao chegar do trabalho um de nós vê o outro à porta do edifício, desvia por um café. Se me vê a sair do elevador, sobe pelas escadas; se a vejo a entrar, demoro-me no correio.

Mas é precisamente o elevador que às vezes nos encontra, quando, do terceiro ao rés-do-chão, é interrompido no segundo por um movimento do meu dedo. Abro. Vejo-a. Sorri.

«Olá», adoça ela, «Bom dia», engrosso eu.

«A ver se um dia destes resolvemos o problema das casas de banho», propõe.

O problema das casas de banho é um pingo que deve ser sempre o mesmo e que cai da sua banheira para a minha, muito de vez em quando, muito de ano a ano, sem ninguém conseguir imaginar a que se possa dever tal fenómeno. Falar-lhe disso foi o princípio do nosso primeiro diálogo de elevador, que este substituiu de há dois anos para cá.

Já na entrada do edifício, abre a porta que tem pressa, fico-me na correspondência que tenho solicitações, e então bons dias, e bons dias então. E fico a olhá-la por um canto do olho, diabo da mulher! Ontem: meia de carne, sapato que empina, vestido vermelho com milímetro de coxa e sobre o seio concha branca em blusa de que cor.

O que me faz lembrar esse sucesso de hoje pela manhã no duche, e que já quase esquecia. Convém dizer que eu cantava e cantava mal. Demorava a afinação e quase a atingia por trás dos olhos no preciso momento em que o diabo da mulher me cai à frente, ensaboada e grande, grande mesmo sem o palmo a mais dos sapatos. De início, ficámos muito sérios, ela muito fria, fria de frio, eu muito espantado, espantado de cavalo. Atirei-me para trás e bati com a cabeça na parede, deixei-me deslizar pela banheira, enfim, que sorte a minha não ter partido nada.

«Desculpe», largou ela sobre mim.

Olhei do mais baixo que pode haver para aquela montanha de mulher e não pude dizer nada, enquanto ela pegava no chuveiro e se aquecia e empurrava para fora de si o sabão com que vinha.

«Desculpe», disse mais uma vez, «a ver se um dia destes resolvemos o problema das casas de banho», e um braço forte resgatou-a do meu sonho novamente para o andar de cima.

Assim que, na próxima vez que a viagem do seu elevador levar um pouco da viagem do meu, já tenho como precipitar outro diálogo, o terceiro das nossas vidas. Depois de pensar todos os gestos e todos os adjectivos que sei, decidi que vai ser assim. Entro, oiço aquele doce de olá e estico o pescoço enquanto balbucio:

«És... és... eh pá, tu és do caraças!»

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

homem sem


Há homens sem e homens com
que parecem o que são
e homens sem que parecem homens com
e homens com que parecem homens sem.

Com os com finjo que sou com
e com os sem... pois, que sou sem;
isto quando não faço o contrário,
que é parecer com com sem e sem com com.

Neste trânsito entre tantos
disparates
perco o rumo do que sou
e em vigília construo
o pesadelo em que vou.
E acordo e não sei de mim,
onde é que estou, ao que este dia vem,
para entre as sombras descobrir
que sou um homem sem dentro de um homem sem:
sem palavras sem caminhos
sem certezas sem equilíbrio
sem quês nem cons,
meu amor: sem ti.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

pesca sem arte

Sei de taças de vinho onde se pesca
em cada trago um verso igual a estes,
heróico quase sempre, mas às vezes
sáfico puro como aqui se atesta.

Se passa o tempo, e eu nunca tenho pressa,
posso ir dispondo os versos como vedes,
e se ainda então me não passar a sede
adiante sigo isto que assim começa.

Acresce que sai rica a rima toante,
por mais pobre que seja o que eu escrevo
e por mais enganado que assim ande.

Mas não me importo: sorvo a sorvo bebo
da taça inteira esses catorze instantes
que fazem o meu último soneto.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

EXERCÍCIO DE ESCHER

– Nem imaginas os segredos que eu vou levar para a cova! – disse o coveiro, e aí é que começou a confusão.

O outro desacelerou até ao repouso o movimento do copo que a sua mão levava da mesa à boca. Durante um bom meio minuto, abriu muito os olhos, num quase todo de resto muito parado, e acabou por devolver o copo à mesa.

– Nem imaginas! – repetiu o coveiro.

– Mas de que cova falas, ó homem?

Agora foi a vez do coveiro ficar pasmado, porque o que realmente interessava ali eram os segredos. Mas, como não há dois homens iguais, este vazou na boca quanto vinho o seu copo transportava. Devolvendo à mesa o precioso utensílio e preparando-o para voltar a ser instrumento da sua avidez, pronunciou, desta vez mais lentamente:

– Nem imaginas os segredos...

– ...que hás-de levar para a cova. E eu volto a perguntar: Mas qual cova?

– Ora, qual cova? A minha, mas qual é que havia de ser?

– A tua? Qual tua? Nesta aldeia são todas tuas!

– Estás bêbedo ou quê? A minha cova! A cova onde me hão-de enterrar, porra!

No canto da taberna onde menos luz havia, a conversa perdia o rumo e o coveiro impacientava-se. Na sua garganta, um prenúncio de cólera destacava dois desfiladeiros ao comprido.

– A cova onde te hão-de enterrar? – repetiu o outro, que não se dava conta destas alterações. – Mas estás doido ou quê? E quem ta vai abrir? Podes dizer-me?

O coveiro pareceu ficar perturbado por uns momentos com a lógica do raciocínio.

– Os segredos! São os segredos que contam!

– E eu quero lá saber dos teus segredos e de quem os conta...

– Seu filho da puta! – gritou o coveiro, com um murro na mesa. – Era uma expressão! Quando eu for para a cova, quando eu morrer! Mas o que conta são os segredos!

O outro encostou o copo cheio à boca e, desta vez, verteu-o também de uma só vez, repartindo o conteúdo entre o caminho usual e as suas barbas grisalhas.

– Ó meu grande filho da puta, digo eu! – disse, depois, com toda a calma, o que injuriava ainda mais. – Então leva mais este segredo contigo: tu não vais levar nada para a cova, porque não vais ter quem ta faça!

O coveiro não queria acreditar.

– São os segredos... os segredos é que interessam, cabrão de um raio!

– Mas que segredos, ó coveiro de meia tigela... A que segredos te referes tu?

– Aqueles que nunca saberás, palhaço de merda!

O outro, já de copo cheio, estacou outra vez o braço a meio da viagem mais comum e arregalou os olhos.

– Ninguém me chama palhaço, ouviste? Ninguém! Muito menos um palhaço...

– Palhaço, sim! É o que tu és: um palhaço armado em esperto.

– Nós sabemos muito bem quem é o palhaço aqui... – pronunciou o outro, muito lentamente, não fosse o coveiro perder uma sílaba.

Foi então que o coveiro puxou do canivete e rasgou o interlocutor cintura acima, até ao obstáculo do primeiro osso. Este ainda se levantou, para se deixar cair sobre a mesa, entornando o jarro de vinho. Sobre a madeira de pinho, a luz mal deixava distinguir o sangue do líquido que o simboliza; e a morte chegou sem mais ruído que um suspiro.

Contam os que assistiram a esta cena que o coveiro levantou o corpo do seu amigo de sempre e correu com ele ao cemitério. Anestesiado pelo vinho e antes que a dor o consumisse por completo, cavou sob lágrimas e gritos durante um par de horas. Quando os habitantes da aldeia chegaram à procura dos contornos finais da desgraça, ele e o amigo jaziam, cada um na sua cova.

O coveiro também fizera a sua. E os segredos, esses não interessam para nada.