terça-feira, 31 de julho de 2007

o meu soneto de Arvers


De amor guardo um segredo, um mistério na vida,
tão perene é a hora em que nos conhecemos.
Não posso querer mais: o sonho em que lho diga
há-de ser o pior de entre os meus pesadelos.

Estarei sempre só nesta viagem sofrida
porque estar ao seu lado é todo o meu desejo.
E quando enfim chegar o meu último dia
nem saberá que foi demasiado cedo.

É doce o gesto, é terno o olhar que ela oferece
ao longo do caminho... E porém desconhece
o murmúrio de amor que a minha espera traz;

fiel à sua escolha, em seu dever austera,
destes versos dirá, que apenas falam dela:
«Quem é esta mulher?» E não compreenderá.

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Mon âme a son secret, ma vie a son mystère:
Un amour éternel en un moment conçu.
Le mal est sans espoir, aussi j’ai dû le taire,
Et celle qui l’a fait n’en a jamais rien su.

Hélas ! j’aurai passé près d’elle inaperçu,
Toujours à ses côtés, et pourtant solitaire,
Et j’aurai jusqu’au bout fait mon temps sur la terre,
N’osant rien demander et n’ayant rien reçu.

Pour elle, quoique Dieu l’ait faite douce et tendre,
Elle ira son chemin, distraite, et sans entendre
Ce murmure d’amour élevé sur ses pas;

A l’austère devoir, pieusement fidèle,
Elle dira, lisant ces vers tout remplis d’elle:
" Quelle est donc cette femme ?" et ne comprendra pas.


....................................................................Félix Arvers (1806-1850)

quinta-feira, 26 de julho de 2007

FUNCIONÁRIOS

Quando, por acaso, nos reencontrámos, já tudo tinha mudado. Até eu, embora ainda ninguém mo tivesse dito. Ela estava bastante mais magra e tinha tirado a vida para fora do pijama. Usava agora um casaco de ganga que acabava um palmo acima do umbigo e, por isso, não sei se era casaco, e umas calças também de ganga, com pouco mais de dois centímetros acima do gancho. As suas cuecas eram azuis ou brancas, dependia do ponto de vista. Tinha também uma franja loura no cabelo solto. Não lhe ficava nem bem nem mal: era um postiço e não disfarçava. Outras coisas que saltavam à vista eram a ausência do sinal no nariz e a quase ausência do buço que teimava antes.

Assim que nos sentámos, disse-me para eu estar descansado, que ela tinha feito o teste e tudo estava bem. Esta declaração, conquanto estranha ou agressiva para começo de conversa, tinha alguma razão de ser: eu fui dois dos seus amantes e entre esses dois amantes ela arriscou tudo. Agora eu já não estava nada preocupado com isso, mas nos meus tempos insistira bastante para que ela fizesse o teste.

Não sei porquê, comecei por associar às maratonas dos liões em cio as mudanças que ela trazia e, sobretudo, a sua decisão em finalmente fazer o teste. Depois, pensei que era o novo cavalheiro que não se ajeitava na difícil arte dos preservativos. Cheguei a imaginar que este era igual ao outro que também foi dois dos seus amantes, esse que me precedera e permeara, e que, não tendo jeito para o ramo, aludia ao tamanho para rebentar todos os preservativos dentro dela.

Acabei por concluir, no entanto, que, desta vez, ela apostava forte. E que, qualquer que fosse a razão, tinha feito bem. Agora só lhe restava rezar para que não houvesse experiências extra-curriculares.

– Manuela – disse-lhe eu depois de pensar tudo isto –, há vários tamanhos de preservativos. Só é preciso saber pô-los. Se quiseres, eu ensino-vos. Além disso, se praticares sexo tântrico com o teu gajo, tens de o obrigar a substituí-los de dez em dez minutos. E, à parte isso, não deves comprar as marcas que se vendem nos supermercados. Se vocês tiverem estes cuidados, não precisas de andar a engolir essa merda de comprimidos todos os dias.

Olhou para mim, muito séria. Ela só tinha feito o teste... Depois fez o seu característico sorriso de meia boca: se tu soubesses...

E mudou o discurso, para eu ficar a saber de todas as coisas desinteressantes que a ocupavam então. Eu, que já não tinha nada a esconder-lhe, ouvi. Ouvi e, depois, confessei-lhe que a minha vida continuava sem agenda. Ela reagiu bem a esta confissão e até lhe achou piada porque eu já não era o futuro pai dos seus filhos.

Foi então que, atrás dela, apareceu o funcionário actual. Era um homenzarrão, coisa para metro e noventa, e beijou-lhe o pescoço enquanto lhe punha o mão em cima da barriga. “Como está o nosso filhote?”, perguntou. Ela sorriu-me, outra vez a meia boca: agora já sabes. Virou-se e beijou-o com a boca toda. Continuava a beijar com o recato de antes, mas a mim pareceu-me que bastante melhor.

No meu cantinho, senti-me roubado. Agora já sabia. Mas não mostrei birra: quando ela nos apresentou, estendi a mão e apertei a dele com força.

Ele estava ali porque eu tinha permitido.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

SUSPENSÃO

-----O chefe de esquadra consultava num papel a sucessão de acontecimentos que tinha trazido o criminoso à sua frente.
---- – Diga-me uma coisa, senhor...
-----– Diga – respondeu o senhor, sem deixar que o outro pronunciasse o seu nome.
-----– Vejo que está bastante calmo. Não está preocupado?
-----– Eu estou bastante preocupado.
-----– Não parece. Talvez não saiba que pode ter de ficar cá esta noite. Esta noite e, estou em crer, muitas mais. Que pensa disso?
-----– Preocupo-me.
-----– Só? Preocupa-se? Já agora... posso saber com quê?
-----– Com o que fiz, faço e farei. Com o que visto, digo e penso. Com o que os outros pensam de mim, em cada momento e de cada um dos meus movimentos. Preocupo-me, sobretudo, com a passagem do tempo.
-----O chefe de esquadra não queria acreditar.
-----– Não. Você não pode dizer isso, meu amigo. Você não se preocupa.
-----– Saí à rua sem roupa, é o que aí diz. E então?
-----– Oh meu amigo, você saiu à rua todo nu. Quer dizer, em meias e sapatos. Não pode dizer que se preocupa com a opinião dos outros.
-----– Se eu lhe disser que provavelmente dormia?
-----– Dormia, pois então. Acordemos em que dormia. Mas o que fez, então, enquanto dormia?
-----– Fui comprar o jornal, está visto. Se o tenho aqui comigo...
-----– Acreditemos que o comprou, embora não tenha consigo mais nada a não ser o jornal. Mas, enfim, vou acreditar que saiu à rua, nu e com noventa cêntimos na mão...
-----– Só pode ter sido. Ou, então... roubaram-me a carteira.
-----– Ok, ok. E, já agora, chegou a ler o jornal?
-----– Se o li, não me recordo.
-----– Não está a par, então?
-----– A par?
-----– Sim, a par das notícias do dia.
-----– Nada que me inclua, decerto.
-----Os olhos do chefe de esquadra regressaram ao papel incriminatório.
-----– Diz aqui que você roubou esse jornal. Mas também diz que, antes de o roubar, esmurrou o proprietário da papelaria.
-----– Disso lembro-me. Vagamente... Lembro-me vagamente de que me apeteceu. Quer dizer, não me lembro que tenha sido hoje, mas aquela tromba. Apetece-me... De facto...
-----– Uhm... Lembra-se só de que lhe apeteceu...
-----– Sim. Ele olha para mim de um modo bastante estranho.
-----– Provavelmente devido ao modo como está vestido...
-----– Não estou vestido.
-----– Ou isso.
-----– Se não estou vestido como é que ele reparou no modo como estou vestido?
-----– Convenhamos, então. Reparou no modo como não está vestido.
-----– E isso era motivo para eu o esmurrar?
-----– Pergunto-lhe eu. Há pouco disse que se lembrava vagamente...
-----– Da vontade. Da vontade para o esmurrar. Apenas isso.
-----– Então, o que me quer dizer é que não foi você. Sabe que o homem tem o olho negro e um corte feio no lábio inferior...

-----– Não, não sei.
-----– Muito bem, meu amigo, muito bem. Passemos à frente. Então diga-me lá: o que fez a seguir?
-----O amigo fez cara de não se lembrar.
-----– Não me diga que vai dizer que não se lembra...
-----– Não. Sim... Quer dizer, não me lembro.
-----– Muito bem. A seguir encontramo-lo na paragem de autocarro, à frente da papelaria, com o jornal roubado.
-----– Talvez...
-----– O que não é nada de anormal, convenhamos.
-----– Convenhamos.
-----– Convenhamos, pois. Convenhamos que estar na paragem de autocarro é normalíssimo. Se bem que, completamente nu...
-----– Com sapatos e meias... E o que é que isso tem?
-----– Talvez já não seja assim tão comum.
-----– Comum, comum, não é.
-----– Óptimo, então estamos de acordo.
-----– Não é comum, não. Mas também não é uma coisa do outro mundo...
-----O chefe da esquadra debruçou-se sobre a mesa de modo a ficar mais próximo do seu interlocutor, que usava o jornal aberto para esconder a nudez mais grave. Baixando a voz, perguntou-lhe:
-----– De facto, não parece ser coisa do outro mundo... Mas, e o que aconteceu a seguir?
-----– Poderá relembrar-mo? Está aí escrito nesse papel...
-----– Não vem aqui com todos os pormenores...
-----– Ora, ora... Em traços gerais, se não se importa...
-----– Segundo uma das pessoas que estava na paragem, o meu amigo beijou a omoplata da sua mulher. Sua mulher, dele, claro.
-----– A omoplata...
-----– Sim, digamos: o ombro.
-----– E porquê?
-----– Se mo disser você...
-----– Porque o ombro em questão seria apetecível.
-----– Compreendo... Apeteceu-lhe.
-----– O senhor já esteve numa paragem de autocarro?
-----– Às vezes...
-----– E?
-----– E?
-----– E então?
-----– Não percebo onde quer chegar...
-----O criminoso recostou-se na cadeira:
-----– Tem mais alguma queixa sobre mim?
-----– Ora bem... Depois de beijar a omoplata da senhora em causa, encostou os lábios, diz aqui, encostou os lábios aos lábios de outra senhora que estava sentada ao lado.
-----– Aos lábios, diz aí.
-----– Exacto... Os lábios aos lábios.
-----– Os lábios aos lábios. Mais nada...
-----– Diz aqui.
-----– Ora, meu senhor, posso ou não posso ir-me embora?
-----– O que acha?
-----– Depende. Fiz mais alguma coisa de gravidade tamanha?
-----– É tudo.
-----– Está aí tudo, então. Para que serve, então, esta conversa?
-----– Estou a dar-lhe uma oportunidade para se defender. Tudo isto foi contado pelo dono da papelaria, pelas duas senhoras e pelo marido da primeira.
-----– É tudo mentira.
-----– Além dessas pessoas, há bastantes testemunhas.
-----– Não me lembro de nada.
-----– Então, pode não ser mentira.
-----– Se não me lembro é porque é mentira.
-----– Não disse há pouco que não estava acordado?
-----– Não me lembro.
-----– Então, pode não ser mentira.
-----– Se não me lembro é porque é mentira.
-----– Não disse há pouco que não estava acordado?
-----– Não me lembro.
-----– Então, pode não ser mentira.
-----– Se não me lembro é porque é mentira.
-----– Não disse há pouco que não estava acordado?
-----– Não me lembro.
-----– Então, pode não ser mentira.
-----– Se não me lembro é porque é mentira.

-----– Mas não disse há pouco que não estava acordado?

sílvia

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     Apresentei-lha há dias, com malícia: «Sílvia, engenheira informática. Trabalha comigo lá na firma». Que é inteligentíssima, que nos conhecemos há mês e pouco e somos amigos de há muito. E, tão amigos que somos, desatámos a rir da aparente contradição.

-----Ele telefonou-me há pouco. Diz que na sua boca de menina se espreguiçam todas as carícias da vida. Mas depois, confessa, entregou-se à tarefa de não saber mais. Desenrolou da respiração as emoções da noite e retirou-se do abraço, sentou-se na cama, ainda encheu os entrededos com o cabelo da amante adormecida. E partiu.

-----Mas depois, disse-me ela há dias... Depois, ele afastou-lhe o cabelo, expôs-lhe a nudez mais escondida. E depois... depois sulcou-lhe com o indicador um rio indeciso ao longo do pescoço, tacteou com os lábios a pele assim exposta. A luz tímida que se esgueirava pelo quarto ter-lhe-á permitido saber demais.

-----Desde então, nem tonelada a exercitar-lhe as pálpebras nem aridez a sobrevoar-lhe a saliva, ele acorda e admira-se ao espelho.
-----Confessou-me também:


-----Vai tirar o dia. Depois do banho o perfume, depois do perfume o fato de passeio.

     Assobiar-lhe-á canções de espera a margem do Tejo. Vai levar-lhe flores, apesar do receio, um receio tamanho, de que os minutos se tornem anos e os anos despedidas.

-----Quando chegar e ela lhe abrir a porta como se ele fosse da família, um «olá!, tudo bem?» sem justificações, um beijo dado e correspondido; meu deus!, a felicidade...

-----O resto será só deles. E não seria de mais ninguém, não to contasse eu, o pequeno, pálido rectângulo de polímero azul onde, sob a sua nuca, um dia escrevi: ‘MADE IN PORTUGAL. MANUFACTURED BY ANTÓNIO PEREIRA’.
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________________________________António Pereira, Lisboa e 2103.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

AS PALAVRAS QUE RESTAM

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    Às nove em ponto, todas as noites, a porta batia e as palavras chegavam. Eu, que sempre as esperava, enchia-me de felicidade nesse momento – e apressava um copo de uísqui na mesa de centro.
-----Um minuto depois, já sentadas na minha sala de estar, as conversas começavam a meio. Aliás, as conversas também ficavam sempre a meio. Não me lembro sobre o que fossem, precisamente porque não tinham início e nunca procuravam fim. De facto, o que mais interessava nesse tempo nem era o significado dos dias: era o bruxulear das velas a desenhar tangentes às palavras. Claro que algumas palavras eram intocáveis, como a palavra vento, apesar de ser uma sombra grande e disforme que ocupava a sala toda, ou a palavra amor, que eu nunca soubera que tipo de palavra fosse mas descobri nesses dias ser um ponto esguio e sempre em fuga. Havia, também, por exemplo, a palavra mulher
, que era invisível embora se deixasse tocar. No entanto, apesar das peculiaridades de cada palavra, era sempre a sua relação com o ritmo da luz que nos permitia o seu reconhecimento.
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Enquanto a garrafa de uísqui se esvaziava e o inverno se acumulava nas minhas tíbias, crescia a secreta ambição de que aquelas horas sem sentido invadissem todas as minhas outras horas. Para isso, o meu primeiro passo foi desistir de empregar o tempo e pôr-me a gozar os requintes da casa.
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O subsídio de desemprego nunca mais chegava e, quando chegou, era pouco mais que nada. Foi bom, porque me pôs a comer de pouco e a beber de muito. Agora, as garrafas eram já de litro e cerveja, a trinta cêntimos no Minipreço. Prolongavam-se as presenças das palavras, adiantavam-se as suas aparições, e a sua independência era cada vez maior. Isso era maravilhoso.
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Entretanto, deu-se a tragédia. O subsídio desceu para nada e os dias dos meses especializaram-se na dissecção do euro. Até que, quando já não havia material para dissecar, as frases regressaram. A falta de combustível impedia a persistência das palavras.
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Hoje trabalho numa sapataria da Rua Augusta. Exigiram-me que não fosse tão monocórdico com os clientes, monocórdico, dizem eles..., e a música morreu dos meus ouvidos. Chego extenuado a casa, como, deito-me, levanto-me, as palavras quase partiram.
-----Restam a palavra vida, que é negra como breu mas não deita sombra, e a palavra morte, translúcida, bela, inacreditável – a única que ainda me faz sonhar à passagem da luz.