quinta-feira, 30 de agosto de 2007

pax

Na vida não espero mais
do que nela me acontece:
meu anseio é ser do cais
onde o navio apodrece.

Confiando que menos erra
o errante quando erra menos,
tenho assim um pé em terra
e a vista em espaços pequenos.

Nunca pus rumo em bagagem
nem busquei quem mo fizesse.
De contrário era viagem
em navio que apodrece.

sábado, 25 de agosto de 2007

O QUE ME FAZ CORRER

Um poeta não é tanto cá de fora. Como um bom cientista, não acredita na procura da verdade; mas é muito mais livre porque também não procura as mentiras em que o futuro pode ser obrigado a viajar.

Pensa-se que um poeta não pensa – é pensado. Ao comum dos mortais, até parece que por palavras; mas, convenhamos, é apenas moda essa coisa de estar sempre a falar de palavras. O que a sério o manipula são os ritmos e os sons: as palavras só vêm depois. Porque é um sedutor, comprometeu-se a dispor os sons de modo a que possam significar. Mas o seu maior prazer é que esses sons signifiquem tantas coisas diferentes que até possam nada significar. Só assim ele se cumpre: inventando aquelas mentiras de mentiras que se tornam nas mentiras de cada um e nas mentiras de ninguém.

Claro que, enquanto vai fabricando os tais sons e os traduz em letras, ele próprio pode ser desviado por uma mentira específica. Mas, atenção, estamos sempre a partir do princípio de que ele é poeta... E, assim sendo, não terá nenhuma dificuldade em abrir a mentira a uma qualquer mentira de mentiras. Tanto assim que, mais tarde – e mais tarde pode ser uns minutos depois –, ele próprio fará uma leitura diferente daquela que na sua escrita leu.

Enfim, um poeta é como se bebesse tudo. Se eu fosse poeta beberia o mundo por garrafas inteiras de universos paralelos. A luz apresentaria então um leve tremor – mas isso seria apenas lembrança. Assim como quando um toque na mesa é reminiscência de onda no mar, sobretudo se a mesa for de madeira.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

c major

que me passou hoje?
como dentro um grilo sob a cama
_____
a gritar a gritar
e no coração este dia
_____
a doer a doer
_____
a doer-me de todos...

mas que fábrica de vento!
de um sopro arrumou a casa
_____
ao contrário
e alçou esta biografia
traída
no chão
de tantos
_____
livros mortos.

ah! diabo do grilo a cuscar
a cuscar a cuscar
_____
no centro dos meus ouvidos!
meu amor, se vieres
traz a nossa língua
vem beijar de saliva a serrilha
_____
das suas asas
__________partidas.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

ESCONDER A BOLA

Há as pessoas que se servem de regras e as que inventam mais algumas, as que se oferecem ao vento e as que se importunam com indícios de brisa. As pessoas à minha volta, juro: ou pertencem à primeira parte destas dicotomias ou à segunda.

Atenção, que isto não tem nada que ver com homens e mulheres. O Nuno, por exemplo, pertence à segunda categoria. O que me enerva bastante é que nem fode nem sai de cima da Ana, que pertence à primeira categoria.

Connosco é o contrário. Vou exemplificar com um jogo: o snooker. Eu, com este tom que em nada o disfarça, pertenço à primeira parte das dicotomias: aproveito as regras para espicaçar o jogo, escondo a bola, impeço a tacada directa, obrigo o outro à tabela difícil, retardo-lhe a vitória. Por cima disso tudo, rio das dificuldades que vou criando. Não rio do adversário, não, embora possa parecer. Ou melhor, não gozo do adversário, porque até acho que tem mais piada quando me posso rir dele com ele: isso também é rir-me da minha alegria. De outra maneira, tudo é morrer.

Claro que há quem entre no meu jogo e até há quem o faça bastante melhor que eu. Mas são bastante mais os que se exasperam e acabam por me dizer, e se não dizem sentem, e, quando sentem sem mo dizer, dizem a quem mo venha dizer:

– Quando é que começas a jogar a sério?

ou:

– Assim não jogas nem deixas jogar.

O problema nisto tudo é que, para poderes jogar com estas pessoas, tens que entrar no espírito delas, acordar tacitamente sobre atitudes e gestos que são maldades e que, por isso, são de evitar. Ou seja, para além das regras próprias do jogo, há as regras próprias para te saberes comportar durante o jogo.

Detenhamo-nos agora no que aconteceu entre ti e mim. Tu pensavas que eu pertencia à segunda categoria. E eu, que sabia que tu o pensavas, durante muito tempo me comportei como sendo dessa categoria, acreditei que era dessa categoria, cheguei a ser dessa categoria. Morrecia.

Mas um dia não resisti ao osso e abocanhei-o: escondi a bola, embora sem me rir. Terás duvidado: «fez de propósito?» E aí cometeste um erro: acreditaste que não, que não havia intenção no meu gesto. O que te mergulhou em desamparo e desassossego quando eu repeti e repeti e repeti.

Comecei a ganhar mais jogos e comentei isso mesmo contigo. As coisas estavam, agora, mais equilibradas.

– Mas, claro – disseste –, não estamos a jogar o mesmo jogo.

Lembras-te? E eu surpreso:

– Então?

– Não estamos a jogar o mesmo jogo. Tu estás a fazer batota...

– Eu?

– Sim, tu. Por que é que não vais às tuas bolas e me deixas jogar as minhas em paz?

Estavas irritada e eu nem o sonhara. Eu jogava com as regras e tu estavas de acordo com isso, pensava eu.

E, enfim, que mais podia eu fazer senão retroceder? Comecei a ter cuidado para evitar fazer mais maldades. Comecei a perder, um, dois, três, dez jogos seguidos. Dizias que eu não me estava a esforçar. Mas até estava: estava a esforçar-me imenso para não ser mauzinho.

Espero que esta confissão te adoce a bílis.

Perguntaram-me no outro dia se, passados tantos anos, ainda pensava em ti, se te queria, se te recordava... Se penso em ti? Se te quero? Se te recordo? Nem deixo passar o teu horóscopo nas revistas de coração, vê lá tu, para inventar que descubro os teus passos lentos em redor das vidas, da tua, da minha, da que se perdeu.

Eu escondia a bola branca. Mas tu tiraste-a da mesa e levaste-a contigo.

– Não brincas mais?