sexta-feira, 26 de outubro de 2007

do caraças

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À parte o andar a mais, a moça do terceiro caminha três palmos acima dos meus, dois que são dela e outro das solas que a calçam. Por qualquer engulho antigo e que nunca pude entender, evitamos atravessar-nos. Se ao chegar do trabalho um de nós vê o outro à porta do edifício, desvia por um café. Se me vê a sair do elevador, sobe pelas escadas; se a vejo a entrar, demoro-me no correio.

Mas é precisamente o elevador que às vezes nos encontra, quando, do terceiro ao rés-do-chão, é interrompido no segundo por um movimento do meu dedo. Abro. Vejo-a. Sorri.

«Olá», adoça ela, «Bom dia», engrosso eu.

«A ver se um dia destes resolvemos o problema das casas de banho», propõe.

O problema das casas de banho é um pingo que deve ser sempre o mesmo e que cai da sua banheira para a minha, muito de vez em quando, muito de ano a ano, sem ninguém conseguir imaginar a que se possa dever tal fenómeno. Falar-lhe disso foi o princípio do nosso primeiro diálogo de elevador, que este substituiu de há dois anos para cá.

Já na entrada do edifício, abre a porta que tem pressa, fico-me na correspondência que tenho solicitações, e então bons dias, e bons dias então. E fico a olhá-la por um canto do olho, diabo da mulher! Ontem: meia de carne, sapato que empina, vestido vermelho com milímetro de coxa e sobre o seio concha branca em blusa de que cor.

O que me faz lembrar esse sucesso de hoje pela manhã no duche, e que já quase esquecia. Convém dizer que eu cantava e cantava mal. Demorava a afinação e quase a atingia por trás dos olhos no preciso momento em que o diabo da mulher me cai à frente, ensaboada e grande, grande mesmo sem o palmo a mais dos sapatos. De início, ficámos muito sérios, ela muito fria, fria de frio, eu muito espantado, espantado de cavalo. Atirei-me para trás e bati com a cabeça na parede, deixei-me deslizar pela banheira, enfim, que sorte a minha não ter partido nada.

«Desculpe», largou ela sobre mim.

Olhei do mais baixo que pode haver para aquela montanha de mulher e não pude dizer nada, enquanto ela pegava no chuveiro e se aquecia e empurrava para fora de si o sabão com que vinha.

«Desculpe», disse mais uma vez, «a ver se um dia destes resolvemos o problema das casas de banho», e um braço forte resgatou-a do meu sonho novamente para o andar de cima.

Assim que, na próxima vez que a viagem do seu elevador levar um pouco da viagem do meu, já tenho como precipitar outro diálogo, o terceiro das nossas vidas. Depois de pensar todos os gestos e todos os adjectivos que sei, decidi que vai ser assim. Entro, oiço aquele doce de olá e estico o pescoço enquanto balbucio:

«És... és... eh pá, tu és do caraças!»

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

homem sem


Há homens sem e homens com
que parecem o que são
e homens sem que parecem homens com
e homens com que parecem homens sem.

Com os com finjo que sou com
e com os sem... pois, que sou sem;
isto quando não faço o contrário,
que é parecer com com sem e sem com com.

Neste trânsito entre tantos
disparates
perco o rumo do que sou
e em vigília construo
o pesadelo em que vou.
E acordo e não sei de mim,
onde é que estou, ao que este dia vem,
para entre as sombras descobrir
que sou um homem sem dentro de um homem sem:
sem palavras sem caminhos
sem certezas sem equilíbrio
sem quês nem cons,
meu amor: sem ti.