domingo, 10 de agosto de 2008

metade em meia casa

É tão cheio o nosso catre
da mulher que nele entravas,
que faço e não faço parte
do homem que nele se guarda.

E o meu tugúrio vazio
a meio em quartos de lua
é uma espécie de frio
nesta ausência que é tua.

Já não quero mais que nada
pois que para nada presto:
– sou metade em meia casa,
que se foda tudo o resto.

terça-feira, 8 de julho de 2008

ÁLCOOL NUNCA MAIS


Acordava a pensar álcool nunca mais. Acordo a pensar álcool nunca mais e vou ao mercado por pão e garrafas, a pensar álcool nunca mais. Álcool nunca mais às nove é a cerveja das dez, o vinho da tarde, o copo de sempre. É continuar a acordar e acordar a pensar álcool nunca mais. Até ao dia em que álcool nunca mais.

sábado, 7 de junho de 2008

VOGAIS (Rimbaud)

A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais,
De vós direi um dia as origens latentes:
A, corpete sem luz de moscardos luzentes
Que volteiam zumbindo entre odores fatais,

Penumbras; E, candor de vapores e tendas,
Lança em glaciar altivo, alvo rei, fraca umbela;
I, saliva com sangue e riso em boca bela
Sob a ira ou o torpor de quem procura emenda.

U, ciclos, mar de verde em seu vaivém sublime,
A paz do pasto cheio, a paz que sempre e tanto
Nas rugas do estudioso a alquimia imprime;

O, supremo Clarim de silvos ruidosos,
Silêncios penetrados por Mundos e Anjos:
O de ómega, este roxo a raiar em Seus Olhos.

terça-feira, 6 de maio de 2008

lambranças

-----(http://yalibnan.com/site/archives/2008/05/lesbians_unhapp.php) --- Three islanders from Lesbos - home of the ancient poet Sappho, who praised love between women - have taken a gay rights group to court for using the word lesbian in its name. One of the plaintiffs said Wednesday that the name of the-association, Homosexual and Lesbian Community of Greece, "insults the identity" of the people of the Aegean Sea-island of Lesbos, who are also known as Lesbians."My sister can't say she is a Lesbian," said Dimitris Lambrou. "Our geographical designation has been usurped by certain ladies who have no connection whatsoever with Lesbos," he said.


Lambrou Dimitris que em Lesbos se é lésbico. Alargo eu: assim como romano em Roma e (entre lésbicas, alfacinhas e quejandos) lisboeta em Lisboa.


Mais lambrou Dimitris: a maninha, lésbica como ele, nem lésbica chega a ser. Que, o mesmo é lambrar, Deus dá nozes a quem não tem dentes.

São lambranças a mais, lambrou o homem, e, vai daí, ordem nas lésbicas, tribunal com elas. Elas, as lésbicas lésbicas, como é óbvio, as que têm dentes, tenham ou não tenham nozes.


Por seu turno, estas lésbicas lésbicas também já se tinham lambrado muito bem (ou mal?) lambradinhas que não são homossexuais: homossexuais são os outros (ou as outras?), que nem lésbicas são (ou lésbicos?).

Que trapalhada! Maior ainda porque também se me deu em lambrar. E lambrando, lambrando, se me lambrou que, se calhar, as lésbicas, ou pelo menos algumas delas, até são homossexuais. Por isso, ou da Comunidade de Homossexuais e Lésbicas se tiram os gajos e ficam todas lésbicas, ou se tiram as gajas e alguns até continuam lésbicos. Isto, claro, para não se tirarem todos de todos - e, nesse caso, nem homossexuais nem lésbicas para ninguém: lésbicos, lésbicos, só os lésbicos mesmo. Acho eu... Isto é só a gente a lambrar.


E também se me lambra agora que sou homo, quer queira quer não, embora menos sapiens do que se pensa e bastante mais rato do que se diz. E deixa-me furibundo que os moços (e algumas das moças?) se digam homossexuais. Homo quê?


Para mim, portanto, lambra-se-me, em conclusão, o seguinte: ou se lesbicizam todos de uma vez ou, então, tribunal mas é com todos, Dimitris incluido. Agora, por favor, em Lisboa é que não: deixemo-nos de mariquices.

terça-feira, 22 de abril de 2008

sem-abrigo

.
quatro paredes um tecto
dois panos sujos de sono
cinco horas de amor inquieto
três cães a contar com o dono

a minha casa
é o teu coração quando se atrasa

domingo, 6 de abril de 2008

DORMINDO NO VALE (Rimbaud)

Era espuma de luz esse pequeno vale
Onde brilhava o sol sobre a montanha altiva,
Que em delírios de prata entre as ervas corria
Por um troço de verde um riacho a cantar.

E era um jovem soldado estendido na relva,
Banhando a nuca exposta nas águas de azul:
Já sem inquietações, a boca meio aberta,
Branco em seu leito verde encharcado de luz.

Qual criança doente, ele sonhava sorrindo
Ao colo do universo enquanto a tarde esfria:
Nos gladíolos os pés, finalmente dormia.

Não sentindo o perfume em redor, só dormindo:
Ao sol, tranquilo, a mão deitada sobre o peito,
e dois furos carmins no seu lado direito.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

paz de breu

Adentro o mundo
em que me afundo
arduamente,
pasta de breu
que assim sou eu
desde sempre.

Que importa a luz
se aqui me pus
tão de agora?
Que importa se
nunca fui de
lá de fora?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

EXECUÇÃO

A voz grave e rouca começou por se engasgar mas depois calou tudo em redor. Impossível dizer de que serviam aqueles volteios, se eram realmente necessários à aproximação do fim; mas de repente a máquina decidiu-se e rodou em linha recta, parando a meia dúzia de metros.

Janelas partidas, um ligeiro desequilíbrio de luz, o copo esquecido em estilhaços no chão... O primeiro embate desenhou na parede da sala um rasgão de alto a baixo, por onde se escoou o pó de um grito.

E agora? Sobre o ruído branco da máquina, dir-se-ia que o silêncio. Mas depois, abafados como ao longe, homens que falam. Parecem prever a localização do próximo golpe. Ou comentarão a violência do primeiro? E BUMMM!

Outro. No mesmo sítio. Um rombo, um fio de água a escorrer na parede em frente. No entanto, a casa continua em pé. Abanada nos seus alicerces, são cinquenta anos de estar ali, é dela a paisagem.

Menos espaçados, sucedem-se os ataques. No exterior a cedência começa com o que parece uma enorme teia de aranha e, por fim, a esfera metálica atravessa a parede como se fosse de papel. Cai uma parte do telhado sobre o chão da cozinha, outra parte mais além sobre a cama abandonada.

Num espirro prolongado, a casa é varrida pela esfera. Nos seus vazios entram em pedaços todas as fronteiras. Um monte de peças soltas forma agora um puzzle impossível e por momentos algumas dessas peças demoram a ajeitar-se, a descobrir o seu lugar entre as outras.

Voz extinta entre soluços, esfera abandonada ao chão, a máquina vela agora um cadáver.