quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

.quadro 3

Talvez já não valha a pena
esperar-te em minha casa
que a mudança é bem pequena
quando a vontade se atrasa.

.

cabelo de trigo:
há qualquer coisa de mim
que não é de aqui.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

domingo, 27 de dezembro de 2009

fóssil

É madrugada. Anoiteço
em cama de quem ma dera,
que o nosso adeus tem por preço
um sopro em estátua de espera.

Que daqui até ao sol
planam asas de sonhar,
que isto é turvação maior
mas breve em água de cal.

E adormeço criança dócil
no teu olhar impreciso
enquanto estudas o fóssil
do meu extinto sorriso.

domingo, 20 de dezembro de 2009

SÓ MAIS UM ABALO

MOTE.
Foi só mais um abalo. Um outro, mais silencioso, mais ardiloso, já pouco deixara de pé.

(Susana Baeta)

GLOSA.
Habito os anjos: há trinta e três anos que o metro é o meu diário. Mas esperanças no segredo da sua pouca terra – só anteontem me apercebi de que já só rastejam.
Pouco passava da uma e meia e não foi a martelo o ritmo subsolar deste meu quieto passeio. Houve antes um baloiço de tontura, um vaivém por entre afagos à caneca de vinho, um leve formigueiro de encanto em sorriso de seja o que for.
Foi só mais um abalo. Um outro, mais silencioso, mais ardiloso, já pouco deixara de pé
.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

MATAR A SAUDADE

Não compensam pelo passeio, estas viagens cansativas. E caríssimas, o que nos começa a fazer pensar se não seria preferível ir à origem da perfeição. Ademais, e lamento desapontar-te, na Lua já pouco mais se encontra do que água engarrafada  e a preços tão escandalosos que apenas meio litro te levo, para matares a saudade.

Pouco a pouco, transforma-se num cemitério de futuros este planeta sem passado. Meu amor, se não fosse por ti eu nunca mais saía de Marte.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

26 DE NOVEMBRO

Quase tudo na mesma, por estes lados.

Um dia depois de ti, a Rosário também partiu – e eu ainda lamento o tempo que perdeu comigo, que tão pouco o tinha para si. Nesse primeiro mês da sua solidão, sempre que o levava à rua o Barbas retesava as patitas ao virar da esquina, punha os olhos no passado, ficava à espera que aparecesses. Sempre soube andar ao ritmo das tuas dores.

Mas de que falo? Recordo que, no princípio, tintim por tintim todas as horas te contávamos. Talvez apenas ignores que saiu finalmente o nosso «Pinguim». Só me entristece não teres podido repartir com o teu amiguinho as iguarias que lhe ofereci, em jeito de comemoração. Depois do lançamento, senti entre a família e os amigos que era aquele o cume do meu evereste; mas agora sei que foi uma planície como as outras, vale interrompido sobre vale repetido. Não há everestes aqui dentro e isso, afinal, é até muito bom. De qualquer modo, a mola da novidade logo estacou o seu vaivém.

Mulheres? Que te posso dizer senão que nada mudou? A mesma adoração por aquela que sabes – mas ampara bíblia e platão esta minha almofada de agnóstico.

Quem dera que esta noite pudesses de novo acompanhar o Barbas aos pés da cama. Quem dera que a próxima manhã acordasse lambuzada da tua procura.

domingo, 25 de outubro de 2009

BÍBLIAS À PARTE*

Nesta enorme e colorida tela de entender o mundo que é a dos auto-denominados homens sapientes sapientes – o mesmo é dizer: sapientes a valer – tenho a tendência para me achar muito importante.

A tendência. Que, num cantinho da tela, há matizes – alguns dirão sombras – na breve pincelada que habito. Esses matizes também me fazem crer, e muito, e tanto, e cada vez mais, que nada tem menor importância do que eu. Não valho mais, por exemplo, do que este amigo de quatro patas que agora me pede para ir à rua: sou apenas um modo diferente de estar no mundo, sem nenhum tipo de acesso privilegiado ao que se queira denominar de verdade.

Sem esquecer que, como dizia o poeta, «não haver deus é um deus também», o não me dar eu a importância que não tenho implica que não precise de imaginar quaisquer deuses a amparar-me: estão ausentes das minhas ânsias a sua existência e a sua não-existência. Também implica não me ser nada incompreensível a crença de muita gente nesses deuses. E implica, enfim, que me interesse mais ir agora passear o meu amigo do que demandar conclusões impossíveis.

Nenhum fogo se alimente de mim, dê-se-me a importância que tenho.

     *a propósito da polémica surgida com a publicação de «Caim», de José Saramago

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

ai maité...


Quando nos longínquos anos 80 eu adolescia, caíam-me no goto meninas de fala mimada e acto indeciso – e não havia melhor queda que a tua. Não perdia um episódio da Guerra dos Sexos ou da Vereda Tropical, confesso o crime, e terás sido responsável pela diluição do meu estudo no estupor das madrugadas, em vésperas de testes.

Não faço ideia se corresponderia a tua verdade à minha fantasia, que nunca procurei saber da tua vida nem dos teus graus de liberdade. De qualquer modo, os anos passaram e de mulheres-criança me bastei: guardo para mim as energias que posso.

Mas atrevo-me, agora, a reatar a fantasia: se ainda tens a fala mimada que eu deixei de valorizar, a verdade é que adoro esse teu novo ar de 3 em espelho e faisandée. Estou que estou por uma conversa com tigo e vinho; por saber o que andaste tu
praticando, como, com quem, que dia e que hora
, em todos estes anos de sem-novelas minhas; por rir-me a bandeiras despregadas do modo emproado como imitas um português do povo.

Combinamos alguma coisa? Pode ser nos Jerónimos, onde Camões nunca esteve mas de onde decidiu escapulir-se. Ou junto à fonte dos amores, perdoa-me a ousadia. E se quiseres... se quiseres, até te ensino como se cospe a sério.

Mas sem gravações, não fosses achar um coche nojento.

sábado, 10 de outubro de 2009

QUEM

Quem fechasse os olhos e as palavras lhe morressem. Quem não procurasse a ausência e esta o encontrasse. Quem nada entendesse e, como sempre, nem o soubesse. Quem ao fim da pena chegasse e a pena lhe valesse.

Quem fosse eu que mais não fosse, quem desfosse.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

30 DE SETEMBRO

Prossiga a madrugada e adormeça de exausta sob o cadáver da vigília. No reverso da partida, leiam-se os poemas há muito escritos – para no seu verso, enfim, se calar a procura. Sopre sempre, num vento ao contrário, o fim da tempestade. E, quando for a morte, de inverno chova este choro de outono.

sábado, 26 de setembro de 2009

AB OVO

Diluídos todos os etcéteras, era de esperar frases gordas, pontivirguladas. Procuravas apartes e dois-pontos-citações, nutrientes sandochas de reticências rápidas. Querias que te engolisse a dúvida, chegar ao ponto e subir a escada, repetir no ouvido a primeira palavra.

Mas não. E foi por isso que nunca te enganaste.

sábado, 19 de setembro de 2009

SUBMARINO

Houve um segundo de nos sermos desconhecidos: como se, quase amante, eu tivesse descoberto à superfície dos teus olhos a planície das amiguinhas.

Houve um beijo a voejar-me no vendavel do contrário: uma espiral de entrega em que, já quase amiguinho, cheguei a ser amante.

Houve um mergulho e há que voltar.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

NO PRINCÍPIO É O VERBO

Passei o pincel por paredes e tecto, mobilei com as madeiras que pude. A televisão corre há dias mais canais do que os suficientes, o cão esgueira-se pelas assoalhadas e já se deita com à-vontade de proprietário. Mas ainda não lhe tinha chamado casa, ao meu e seu abrigo.

Só hoje nos vieste visitar.

sábado, 12 de setembro de 2009

ENSAIO EM BRANCO

Já não há vendaval que me fustigue as lágrimas, apenas um ensaio de frio sobre o correr da madeira. Quantos anos antes de poder abrir a gaveta da nossa ausência; quanta morte para não desejar a morte no pedaço de papel que te lembra… A luva que esqueceste já não te esconde os dedos, os meus dedos sobre elas já não recordam nenhuma pele: de tempo coagulou a tua passagem por mim.

E um segundo ensaio de frio percorre a nossa velha caixa de cigarrilhas. Fumar mata, mas fazem-me sorrir os deliciosos despojos que ainda guarda. Retiro um, acendo-o, saboreio-o. Qual mata qual quê… Fecho a caixa e rodo-a, talvez como no movimento com que te entrançava o cabelo.

No outro e por outro lado, fumar pode reduzir o fluxo de sangue e provoca impotência.

Ah... Então foi isso.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

OVO PODRE

Na tasca, um que pede
     Ó pá, muda mas é de canal e põe na tourada.
Todos embebibevecidos, eu o que da dúzia cheira mal: cervejas e cervejas em cima dos cornos, como posso argumentar?
    
Torço sempre pelo touro

começo.
    
Olha, e eu torço para que o touro fosses tu
diz-me um dos onze.
     Também eu
asseguro
     para espetar-te os cornos no coração, sacana de merda.
     No écrã, o bicho fugia de encontro à dor enquanto me expulsavam por mau uso da palavra. Puderam assistir assim, e em sã camaradagem, a todos os passos da tortura.
     Diz-se que, na santa paz da minha casa, não tenho nada que ver com os crimes dos outros.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

MALJEITOSO

– Não tem que enganar: é o primeiro carro no lado de lá da rua, uma 4L branca. Abre a porta do condutor, debaixo do banco está a minha carteira.

Fácil. A chave é que entra a custo e não quer rodar. Cinco minutos nisto, o desespero, a vergonha de voltar a casa sem cumprir a simples tarefa: «Tens cá um jeitinho...»

Vá lá, calma, a ver se a porta do pendura é menos teimosa.

Torneio o carro pela frente e em que reparo? Ao lado, outra 4L branca, igualzinha. A segunda da rua. Será que... já foi a primeira? Olho para todos os lados, penso um passo na sua direcção.

– Ó chefe! – grita alguém. – O que é que acha que está a fazer?

Quase me rebenta a cabeça o ponto de interrogação, os óculos divorciam-se-me da cara e estatelam-se no chão. Mais outro ponto de interrogação e dou comigo a farejá-los.

– Ah, seu filho da puta, que para a próxima levas um tiro! – promete o valente, enquanto me pontapeia o estômago e a cabeça.

A custo me levanto entre empurrões, cuspidelas, socos. Não vejo um palmo à frente do nariz.

– Devo ter-me enganado – balbucio. – Era este aqui ao lado.

E venha de lá outro soco. – Então que se passa? – diz um segundo tombalobos.

Murros, pontapés a dois, eu de regresso ao chão.

– Para a próxima levas um tiro – repete-se o primeiro, enquanto se afasta.

– Um tiro – ecoa o segundo, o que o segue.

De novo me levanto, abro a porta do carro ao lado, retiro a carteira de sob o banco do condutor, decoro-lhe a matrícula e a matrícula do gémeo.

Não acaba aqui. Uns dias mais tarde, lá pelas três da manhã, reconheço uma 4L entre as sombras de outra rua. Corro até casa, pego numa faca pontiaguda e de serrilha. Dá, não dá – ai dá, dá: espeto e rasgo os quatro pneus, que é um mimo. Que gozo, e repetido, sentir a alma escapar-se-lhes num só sopro...

E que anjo dormi! Que sonhos, quantos sorrisos desenhados até ao amanhecer!

Mas então...:

– Manuela! – acorda-me a voz com que a vida do meu pai costumava andar para trás. - Manuela! Rasgaram-me os quatro pneus. Filhos da puta!

.....Que diabos, ó Deuses: Eu também moro aqui!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

MORRESSES LONGE

Um a um, arrancas os cadáveres dos seus abrigos perfeitos: prendes-lhes as cabeças com a subtileza de alicates bastantes e arrasta-los para a trituração na parte molarizada do teu inferno desigual. Garantes-me não sentir as antenas.
– Gostas mesmo...
– Sou capaz de andar cem quilómetros por uma boa caracolada. Isso e um leitãozinho à maneira.
– Mas... são bebés, não são? Mal deixam de mamar quando...
Pões um orgasmo na cara, a baba quase te escorre, desconchas mais dois ou três mortos. Apalpas no bojo a dúzia de bojecas, as três e quase quatro travessas que vieram e desapareceram.
– A conta, por favor. Estou satisfeito.
– Mas... não come o resto? – desabafa o empregado.
– Não. Leve, leve que já estou estou bem pesado.
Os cadáveres em concha – despeja-lhes o empregado em cima o prato de conchas vazias.


.....Ah, morresses. E morresses longe.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

CABECINHA PENSADORA

«O presidente do Instituto do Sangue (IPS) afirmou que os homossexuais são recusados como dadores de sangue. Logo se deu uma berraria sufocante. Mas a lei aplicável (DL nº 267/07) afirma que os 'indivíduos cujo comportamento sexual os coloque em grande risco de contrair doenças infecciosas graves susceptíveis de serem transmitidas pelo sangue' devem deixar de ser dadores (Parte B, Anexo VII, 2.1). Portanto, a lei ampara aquela decisão de gestão de risco, apesar de contrariar a última moda.» (Carlos Abreu Amorim, Jurista: http://www.correiomanha.pt/noticia.aspx?contentid=DA721564-6799-4BFF-AB5C-2F4102A81754&channelid=00000093-0000-0000-0000-000000000093)

Hoje ainda regressei ao CM em busca de justificação, desenvolvimento, errata que fosse. Mas népia: e fico sem perceber por que recusa o presidente do IPS homossexuais como dadores de sangue; e fico sem descortinar em que ponto do seu enunciado a lei ampara essa recusa...

Dou voltas e revoltas e não consigo descobrir o que fazem os homossexuais que os heterossexuais não façam. Será a minha vida sexual tão bizarra que me impeça de entender a dos outros?

Tendo a certeza, que grave seria se a não tivesse, de que a todo o sangue doado se obrigam as melhores análises, nada mais me resta do que deduzir a existência de um sangue diferente: designemo-lo de «sangue homossexual», caracterizado pela sua imprestabilidade, o que faz com que, à partida já esteja analisado e bem analisado. Como se explicará isso?

Ah! que chego lá. Alvíssaras ao pensador que mo sugeriu: é que ser homossexual implica, mais do que um risco, a certeza de contracção de doenças infecciosas transmissíveis pelo sangue; é que ser homossexual é garantia de descuido, ausência de prevenção, promiscuidade, egoismo.

Obrigado, pensador, que mais uma vez comprovas o que eu há tanto sei: a lei ampara, sim; ampara tudo que um homem quiser. E então se de leis o homem souber... ui, ui.