quarta-feira, 19 de agosto de 2009

MALJEITOSO

– Não tem que enganar: é o primeiro carro no lado de lá da rua, uma 4L branca. Abre a porta do condutor, debaixo do banco está a minha carteira.

Fácil. A chave é que entra a custo e não quer rodar. Cinco minutos nisto, o desespero, a vergonha de voltar a casa sem cumprir a simples tarefa: «Tens cá um jeitinho...»

Vá lá, calma, a ver se a porta do pendura é menos teimosa.

Torneio o carro pela frente e em que reparo? Ao lado, outra 4L branca, igualzinha. A segunda da rua. Será que... já foi a primeira? Olho para todos os lados, penso um passo na sua direcção.

– Ó chefe! – grita alguém. – O que é que acha que está a fazer?

Quase me rebenta a cabeça o ponto de interrogação, os óculos divorciam-se-me da cara e estatelam-se no chão. Mais outro ponto de interrogação e dou comigo a farejá-los.

– Ah, seu filho da puta, que para a próxima levas um tiro! – promete o valente, enquanto me pontapeia o estômago e a cabeça.

A custo me levanto entre empurrões, cuspidelas, socos. Não vejo um palmo à frente do nariz.

– Devo ter-me enganado – balbucio. – Era este aqui ao lado.

E venha de lá outro soco. – Então que se passa? – diz um segundo tombalobos.

Murros, pontapés a dois, eu de regresso ao chão.

– Para a próxima levas um tiro – repete-se o primeiro, enquanto se afasta.

– Um tiro – ecoa o segundo, o que o segue.

De novo me levanto, abro a porta do carro ao lado, retiro a carteira de sob o banco do condutor, decoro-lhe a matrícula e a matrícula do gémeo.

Não acaba aqui. Uns dias mais tarde, lá pelas três da manhã, reconheço uma 4L entre as sombras de outra rua. Corro até casa, pego numa faca pontiaguda e de serrilha. Dá, não dá – ai dá, dá: espeto e rasgo os quatro pneus, que é um mimo. Que gozo, e repetido, sentir a alma escapar-se-lhes num só sopro...

E que anjo dormi! Que sonhos, quantos sorrisos desenhados até ao amanhecer!

Mas então...:

– Manuela! – acorda-me a voz com que a vida do meu pai costumava andar para trás. - Manuela! Rasgaram-me os quatro pneus. Filhos da puta!

.....Que diabos, ó Deuses: Eu também moro aqui!

terça-feira, 18 de agosto de 2009

MORRESSES LONGE

Um a um, arrancas os cadáveres dos seus abrigos perfeitos: prendes-lhes as cabeças com a subtileza de alicates bastantes e arrasta-los para a trituração na parte molarizada do teu inferno desigual. Garantes-me não sentir as antenas.
– Gostas mesmo...
– Sou capaz de andar cem quilómetros por uma boa caracolada. Isso e um leitãozinho à maneira.
– Mas... são bebés, não são? Mal deixam de mamar quando...
Pões um orgasmo na cara, a baba quase te escorre, desconchas mais dois ou três mortos. Apalpas no bojo a dúzia de bojecas, as três e quase quatro travessas que vieram e desapareceram.
– A conta, por favor. Estou satisfeito.
– Mas... não come o resto? – desabafa o empregado.
– Não. Leve, leve que já estou estou bem pesado.
Os cadáveres em concha – despeja-lhes o empregado em cima o prato de conchas vazias.


.....Ah, morresses. E morresses longe.