sexta-feira, 26 de novembro de 2010

pausa

a rede faz alguma companhia     confesso     sobretudo porque me organiza neste lugar em que vou escrevendo e que nunca teve o móbil da exposição:          diz-me aliás um contador     invisível por imperícia minha     que não chegam a duzentas as visitas nestes quase noventa dias
claro que eu também visito e muito

a rede também me oferece dicionários     e é muito cómodo e é muito rápido procurar esta definição ou aquela tradução sem ter de me levantar para ir enchendo a mesa de bíblias

a rede guarda-me ainda um correio     que     embora passe dias e dias em branco     será a ausência mais difícil de ultrapassar
consola-me saber que ninguém me enviaria mensagem urgente que não me telefonasse

portanto     a rede não me é imprescindível
ainda há cadernos ou ficheiros word     ainda bibliotecas que guardam dicionários     ainda este maldito telemóvel sempre em queda livre

venha     pois     a pausa que me foi prometida

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

adeus

não pude que não lhe dissesse:
ah dionisio     dionísio     mentecapto dionísio
morreste há muito no canto do cisne     pára de pensar nisso     e a sereia que mais querias regressou ao mar onde sempre cantou
esse teu fechar de olhos para ainda ouvir     há que desabituá-lo     dionísio     hás-de aprender a estar bem quando sem ti se está muito melhor

no seu olhar a paz do moribundo     respondeu-me:
tens razão     luís

e foi tudo

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

branco

examinei-lhe o rasto rastejando
deduzi-lhe um porvir acocorado

e agora penteio-lhe o cabelo ao vento
para me encher entre dentes das suas vagas douradas

ainda assim

a cabeça do homem salta de mão e     no entanto     a volta é sempre a mesma
contrariando os pressupostos com que julga orientar o mundo     ele tropeça num como-destino e regressa ao mundo que o desorienta

ainda assim grita que não pode ser

e ainda assim parece que sim

amor doente

por aí se diz     dionísio amigo     que ainda vives     que em breve retomarás o teu velho caminho e deixarás de espreitar sobre a vida cheia de quem partiu

mas eu sei que morreste mesmo
e talvez venha a ser eu o contrariado viandante que ao caminho regresse

greve

de meu pai aprendi o horror à hora parada e a obrigação ao trabalho prometido
mas de meu pai     também     que ninguém me põe a pata em cima

que miséria quando os governantes são larápios e os governados roubam os dias

terça-feira, 23 de novembro de 2010

ocaso

nascentes nas minhas mortes     uma lágrima se junta à outra
e amargas     inúteis     todas correm sobre rio que seca e renasce

não sei explicar isto

nao posso entender este ocaso perene
se à noite semeei o dia e da lavoura acordei sorrindo

de vez

quantas voltas mais haverá nesta cama     quantos braços esvaziarão de insónia ainda     com quanto frio me há-de o fim tiritar?
ah quem pudera fazer as contas

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

escuro

odeio assassinos     chamem-se eles hitler franco ou stalin     che fidel ou salazar
todos os partidos     sem excepção     já me provaram que são detestáveis
não tenho ídolos
sou incapaz de votar

tenho por única ambição o desvio da merda

juan sin tenorio

nem todas se despediram:     de algumas descobriste apenas     ou foste descobrindo     que já não voltavam

as que se despediram      afirmaram     quase todas     que era coisa delas     que apenas sentiam a falta de uma cama estreita
sempre entendeste o eufemismo e hás-de reconhecer que é a mentira mais doce     melhor que a verdade com que uma te disse dionísio chega-me de pechisbeque

todas     sem excepção     já tinham     em vista ou de facto     quem lhes melhorasse os dias
mas isso nunca te aborriu     pois se os dias melhoraram mesmo...

pior são as noites como esta     em que a solidão e o medo ao desastre se juntam numa antiga e imensa tortura

domingo, 21 de novembro de 2010

as desculpas pedem-se

há tempos ouvia-se muito em coimbra a sentença     as desculpas não se pedem     evitam-se

entretanto     e ainda em dias que por lá passava     senti que a frase foi morrendo
para meu contentamento     que por várias razões sempre a detestei e que     pelas mesmas entre mais     nunca a usei
primeiro     porque acho que é irritantemente simplista:          as desculpas são para se pedir    sim     à parte essa carga judaico-cristã que a palavra exibe e mal se vislumbra          e o que teoricamente se poderia aconselhar a evitar não são as desculpas em si mas os actos que a elas conduzem
segundo     porque sempre me era dirigida a invectiva por toda e qualquer desculpa que pedisse     desde a que antecedia uma simples interrupção de marcha alheia até à que resultava de um acto menos... desculpável
e terceiro     por ser uma frase tão desapegada:     é demasiado fácil e até algo desonesto coroar de evitabilidade o erro cometido

ora     acontece que      acreditando extinta a minha inimiga     ouvi-a uma boa meia dúzia de vezes neste último ano     agora aqui por lisboa
e mais uma vez em situações que me põem culpa e me atrevem ao pedido inútil

todos sabemos que a culpa não se desculpa     que se alguém a pudesse desculpar seria o próprio que a sente
por isso    amigos e não só     na próxima vez em que eu vos fizer o ultrajante pedido     entendei apenas:     estarei confessando que preferiria não vos ter magoado
e respondei com um não aceito     para serdes sinceros
ou com um aceito     para serdes simpáticos
ou     melhor ainda     com a ciência do silêncio

mas     as desculpas não se pedem     evitam-se          por favor...
tamanhos sois?

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

.

o cavalo célere procura um rio a beber
sem freio nem rêdeas     nu dos artifícios que lhe impunha o homem que o chama de seu     não repetindo caminhos nas distâncias que repete

perdido quase     de tão perdido que vai     de repente estaca e contempla no olhar de lado o rio que sempre lhe viajou ao lado

bebe de quanto precisa mas ainda não sabe se regressa

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

nós

do tempo em que tu chegavas     sobrou-me esta vida
pois esse era o tempo em que me ensinavas a difícil arte dos nós

fui óptimo aluno de melhor professora
por isso e por prémio    peço-te que me batas de novo à porta     e que desta vez me venhas mostrar como se desfazem
os nós que fizemos     os nós que ainda faço

terça-feira, 16 de novembro de 2010

dia a viver

acordei às seis num dia a viver     de trabalhar sem dores     de recomeçar as actividades menos solitárias e pôr a matemática debaixo do braço     de me saber incontaminante e até usar o metro
é que     apesar de eu não ter fechado a cancela com a força dos comprimidos     a febre esqueceu-se de voltar

claro que a tosse piorou     nunca há bela sem senão     mas sinto que já levei a palma aos demónios da gripe
diria     ademais     que não aborreço ninguém com estes pregos          mas desconfio que     na simpatia dos cães     há um fingimento por sonos enquanto o martelo não quer descansar

melhor que tudo isto:     a noite foi noite bonita e bem sonhada     cheia desses filmes sem mágoa em que o amor regressa

domingo, 14 de novembro de 2010

seguir

não lhe mandei espetar as orelhas como costumam fazer aos dobermann e era o bicho mais carente e meigo que já tive em casa
no final da vida     deixava-a à solta na rua:     embora a sua raça pudesse assustar alguns     bastavam dois segundos de atenção para perceber que gastava toda a força na difícil sedução do ar
assim     caminhava sempre um pouco atrás de mim e do barbas     que abrandávamos o passo por entre a urgência dos cheiros

depois da sua partida e por mais de uma semana     o barbas ia ao meu lado e parava de vez em quando     olhando para trás     olhando para mim     a bonita     onde está a bonita?
vinham-me as lágrimas aos olhos e dava por mim a explicar-lhe que já não podíamos esperar pela bonita

com o tempo    a vida foi esquecendo a morte e ele foi deixando de perguntar pela amiga     embora eu tenha a certeza de que ainda a reconheceria     que nos seus bons sonhos decerto a tem reencontrado

quem me dera assim
não arrastar as minhas perdas pelo chão dos séculos
não ser     de tão morto por quem parte     tão morto para quem chega

mais de um milhão

não há sinónimos
por isso     as palavras que o povo matou     ou se apresta a matar     posso eu revivê-las com proveito

por que razão não hei-de confessar     com camões     que as minhas horas de contentamento vi mudadas tão asinha em horas de tormento?
por que razão hei-de abafar a opinião de que acinte me têm maltratado os governantes?

a língua é a única riqueza que demando     parai de me chatear só porque amiúde me dá por dizer algo no lugar de alguma coisa

sábado, 13 de novembro de 2010

delírio

os meus passos prendem num chão antigo de vinganças

nestas duas extenuantes semanas de febre     que ainda não partiu e já me leva meia dúzia de quilos     tem-me acompanhado a ideia de que merecia pior

ultimamente venho imaginando um demónio iracundo e decidido que se apresta a arrebatar-me quando o cansaço me tiver derrotado

mas confesso que     em simultâneo     também tenho lançado algumas dúvidas sobre a justeza do castigo imaginado

de qualquer modo em breve se há-de saber algo mais
julgamento com pena     já tudo isto me vai parecendo excessivamente longo

terça-feira, 9 de novembro de 2010

oráculo

vai preparar o chá das cinco     ensaiar as notas desafinadas da última canção que te fez     sentar no sofá o cavalo que lhe galopa o coração enquanto espera por ti

a noite cairá de repente

e ele já estará morto

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

o patudinho que me acompanha

lembro-me de que uma vizinha     sempre que se cruzava com o barbas     dizia-lhe
olá patudo     eu também tenho uma patudinha     sabias?

intrigava-me     eu que via no meu amigo uma exemplar amostra do pé pequeno de todos os cães
fui investigar
já vivia com ele há quase dez anos     mas só então descobri que é patudo     sim     e bem patudo          aliás como cão que é

enganara-me o seu andar sobre dedos

não é preciso correr mundo para aprender alguma coisa
os que amo têm todos os dias para me ensinar

domingo, 7 de novembro de 2010

mulher

nunca te levem a distracção e o peso do mundo a dizer:     a minha mulher

pois     embora possas vir a ser mais do que és pela companhia que ela te faça     ela nunca será menos do que é por ser a mulher que te acompanha

ninguém é metade de ninguém

sábado, 6 de novembro de 2010

canjas de um vegetariano

a sopa de cebola da minha mãe não me soube a nada          a que fiz eu      a nada sabe:
a febre aplana o gosto      porque estou farto de saber que     em condições normais     a primeira daquelas é a perfeição
nem o que melhor ela traz recebo sem troco:     este quentinho que me banha o corpo mas que me atiça a tosse

enfim     a melhor canja bebo-a do que leio e oiço:
recomecei a ler o kundera da insustentável leveza do ser      e que pena os olhos me arderem tanto
regressei ao velho wim mertens na sua estratégia da ruptura
   e que pena estas pancadas que se me intrometem na cabeça

por mim sentia-os por toda a noite dentro
um de cada vez     claro

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

gripe

quando a febre me tirita de frio     traz     de rara     o cheiro da terra

se o barbas calha em encostar-me calor      há-de fastidiar-se de carícias e talvez arrepender-se
o bê-dê     esse parece entender o meu estado e deita-se menos exigente do que até ontem soía

entretanto e hoje     o meu irmão veio saber de mim e voltámos a resumir o mundo
a minha mãe     sempre tão atenta     abre a porta para não me levantar e traz a sopa de cebola que eu adoro
há também a grande amiga que continua a informar-me com paixão e cuidado sobre o estado da arte de algumas neurociências
e a outra grande amiga     mais distante mas sempre tão presente     defende      doce    que eu ensine a viajar o meu terceiro romance

creio que foi são francisco de assis que disse:
desejo poucas coisas          e as poucas coisas que desejo     desejo-as pouco
sinto-me assim e assim é desejar tudo e assim é desejar tanto

isso depende: é conforme

no público de hoje     miguel esteves cardoso defende que os portugueses "confundem [...] o que é sempre igual com o que depende das diferenças de ocasião e das circunstâncias"

talvez     mas na minha opinião ele só o pôde concluir porque se distraiu pelo caminho:

segundo ele     as pessoas usam o termo conforme     que significa "com a mesma forma"     em situações que exigem o supostamente antípoda depende
e exemplifica: "pergunto se o rocha costuma comer muito          dizem-me:     é conforme          como quem diz: depende do estado de espírito em que está e daquilo que lhe oferecem para comer"

ora     para mim o conforme do exemplo está muito bem posto e     claramente     também depende:     será como quem diz     o rocha come conforme (com) o estado de espírito em que está...     experimente-se substituir conforme por de acordo ou em conformidade     e perceber-se-á melhor por que está bem assim

dito de outro modo     miguel esteves cardoso estranha porque     em vez de cotejar o conforme (com a situação) com o depende (da situação)     coteja o conforme (consigo próprio, com o seu passado) com o depende (da situação)
ou seja     esquece que o conforme se refere de igual modo à situação (factor variável) e não ao rocha isoladamente (factor supostamente constante)

desta última perspectiva     fica claro que se o rocha come de um modo conforme com a situação     também pode muito bem comer de um modo que depende dessa situação

deixem-me     então     concluir que os portugueses até podem não ser tão confusos assim

terça-feira, 2 de novembro de 2010

sem dúvida

primeiro mandaste-lhe beijos     depois beijo grande
e dionísio sorriu:     porque beijos é coisa que se manda como e porque não se dá          mas se for grande     ainda que só um     é porque     ainda que não fosse grande a sério     seria beijo com toda a certeza nalgum lugar que vos encontrasse

enfim     dionísio manda-te beijos também
mas     como é óbvio e porque sempre abusa
muitos beijos e grandes     querida

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

ignoto ofício

se tu soubesses das voltas que a cama tem e das estrelas que ao quarto descem para que a noite seja um destino
se tu soubesses quantas mãos se enchem da tardinha para que se continue a vestir de espuma a lua minguante
se tu soubesses que ainda se esconde a eternidade na cinza das primeiras manhãs
se tu soubesses como se busca por entre estilhaços de ar o ar que trazias inteiro
se tu soubesses a batalha ininterrupta contra a rendição