sexta-feira, 29 de abril de 2011

labor perverso

o pior é que muitas vezes escrevo
para prolongar a palha dos dias
para renascer o fim e acarinhar as derrotas

para lembrar o que já esqueceu aos que um dia estiveram aqui

é para não morrer que morro

quinta-feira, 28 de abril de 2011

quarta-feira, 27 de abril de 2011

pressa

quando ele chegou a casa     a sua mulher era qualquer mulher
não estranhou o beijo que ela não procurou e era-lhe impossível recordar se algum dia se tinham querido
falou com os filhos mas um deus movimentava a noite numa daquelas impaciências antigas

teve a certeza de que esse deus era invejoso quando a mulher que era qualquer mulher se aproximou
antónio temos de falar

não era preciso     ele já sabia

terça-feira, 26 de abril de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

descoordenadas

não me ponho à esquerda     que não sinto bondade nos homens
não me ponho à direita     que ninguém é mais do que eu
não quero saber do centro     que gosto de cantos
e não fico em cima e não fico em baixo     que a minha vida é cambalhota

segunda-feira, 18 de abril de 2011

por falar em cuidado

disse o diogo infante no cuidado com a língua:
é engraçado só agora é que eu realizei...
avisam-no: realizei diogo?
diogo: desculpa... só agora é que eu me
apercebi que estes movimentos...

não sei qual prefiro: se o anglicismo se a falta do de...
bem para ser sincero prefiro o anglicismo
sintaxe é a mulher que me resta

domingo, 17 de abril de 2011

quadra 55

Se alma for esse caminho
por onde tu já não vais
quem andará mais vizinho
de onde na alma aquece mais?

quinta-feira, 14 de abril de 2011

ao

duas mulheres
ele nunca tinha visto nada assim e estava a gostar espetou os olhos no ecrã e não conseguia desligar não queria desligar
era o espetador da noite

este breve texto foi escrito de acordo com o acordo

terça-feira, 12 de abril de 2011

clarividência

no dia em que fez 121 o homem pressentiu que era a sua última capicua
e não é que foi mesmo?

segunda-feira, 11 de abril de 2011

se tanto

o dionísio reapareceu com a sua última
alta mas alta mesmo_____se não tem dois metros pouco há-de faltar
e pagou um copo a todos os que estavam a ver a bola

pessoal esta é a hannelore a minha namorada
é alemã

o dionísio tem um metro e setenta mais coisa menos coisa_____mas sentados pouco se notava a diferença

pediu uma água de meio litro para ela e bebeu a sua cerveja pela garrafa parecia um pouco irrequieto e exprimia-se numa salganhada inglesa

partiram com um sorriso_____ela baixando a cabeça para controlar melhor a altura da porta_____ele alçando a mão para lhe cingir a cintura

uma cumplicidade baixou sobre as cervejas pagas

ninguém lhes dá uma semana

um sonho qualquer

o estuga     como eu lhe chamo     passa por mim todas as manhãzinhas    de guarda-chuva e pasta na mão
mas só há alguns meses é que reparei: quando o semáforo para peões está fechado     ele repete o quarteirão          e se isso é impossível por algum motivo     refaz a calçada em sentido contrário e retorna

há dias troquei-lhe as voltas e     do outro lado da rua     sempre sem ser visto     acompanhei-lhe o percurso
descobri assim que ele vai até à praça do comércio     vira à esquerda quando já não não pode ir em frente e segue na direcção da gare de santa apolónia com as necessárias repetições de quarteirão

depois de ali chegar     estuga ainda mais o passo     ou assim me pareceu    e campo das cebolas rua da madalena regressa à rua da palma para finalmente entrar na pastelaria a eira     já na rua de angola

aqui     sem se sentar     bebe um garoto e um copo de água     isto pelas nove e meia      a hora precisa dependerá da exigência dos quarteirões
de seguida sai e vira à esquerda pela rua do forno do tijolo          agora cabisbaixo     pé que espera pé     mão deslizando pela calva pensativa

ontem respirei coragem e pus-me de amigo com o seu derrotado andar das dez          perguntei-lhe:
porquê?

ele deteve-se para me encarar
nos seus olhos brilhava um sonho que talvez ninguém possa entender

e desatou a correr

domingo, 10 de abril de 2011

herói

entrou manso e escolheu um canto
mas a nossa amizade dera um par de voltas ao mundo e ele precisava de cumprir a promessa
foi por isso que mandou vir o que se chamava filósofo

o que se chamava filósofo apareceu com o sorriso de sempre     os gestos abertos e o olhar um pouco mais à direita

o que é? quis saber

é isto

o meu amigo espetou-lhe     então     o unicórnio na garganta com toda a força e rodou a cabeça para um e outro lado
um minuto depois afastou-se e recebeu os aplausos como se nada tivesse acontecido


dirigiu-se à saída e levantou voo

sexta-feira, 8 de abril de 2011

? - 8 de abril

sentiu uma picada na asinha direita e começou a perder altura
via tudo à roda e um ou dois segundos depois embateu violentamente contra a parede

o senhor da casa apanhou-a do chão com muito cuidado e acomodou-a numa caixinha de fósforos vazia
foi à procura de ajuda

mas ela viria a falecer pouco antes do meio-dia: todos os bons entomiatras tinham escapado à cidade

terça-feira, 5 de abril de 2011

ruptura

no meu décimo ano levei uma descasca da professora de noções básicas de saúde por ter escrito     imagine-se     ruptura da membrana celular em vez de rotura da membrana celular
escreveu ela no quadro e em letras garrafais a minha criminosa grafia ruptura e confessou que havia erros tão graves que a tiravam do sério
no meu cantinho eu corava de embaraço e fervia ante a injustiça

nunca encontrei necessidade ou coragem para voltar a tirar a professora do sério com a página do dicionário onde o erro se exibia mas afeiçoei-me à palavra como símbolo da minha timidez e das doenças que um dia me hão-de matar por sempre esconder o que sinto

hoje tropecei com ela e dei por mim a substitui-la por rutura numa tentativa de acompanhar o tempo

senti lágrimas à espera

antes a rotura professora