terça-feira, 31 de janeiro de 2012

24.01.2012 - 31.01.2012

Faz hoje uma semana. Telefonaram-me às 11h a dizer que pioraras e que o teu coração não resistira. Eu estava pronto para te ajudar a morrer, queria tanto que morresses nos meus braços, como a Bonita e o Piloto, quando o sofrimento era visível nos seus olhos e essa era a melhor solução. Mas convenceram-me de que ainda podias ser salvo, que ainda não tinha sido feito tudo para te salvar. E acabaste por morrer sozinho.

Ainda não é fácil viver em casa e não me apetece ir para a cama sem lá estares. Tento prender os olhos à secretária mas eles escapam-me pelo caminho que leva ao teu sofá preferido, aquele onde estendias a tua preguiça de gato e de onde controlavas os meus movimentos. Tento manter a mão esquerda presa sob o edredom mas passo a noite a soltá-la para te procurar. Tento encontrar-te no Bê-Dê mas lembro-me sempre dos ciúmes que tinhas quando as minhas carícias iam para ele na mesma medida que para ti. 

Não corria desde que adoeceste, queria passar contigo todo o tempo que pudesse. E ainda não voltei a correr. Sinto-me culpado por os meus rins funcionarem tão melhor que os teus. Mas daqui a uns tempos tenciono voltar à estrada para bater todos os recordes que me permitam a idade e o corpo. Ontem imaginei que o meu coração parava como o teu ao cruzar a meta de uma qualquer maratona e isso consolou-me: é um modo simples e pouco rebuscado de chegar ao que sempre quis. Por isso, por que não esticar os meus limites? Quero baixar dos 40 minutos nos 10 quilómetros, rondar a hora e trinta na meia-maratona, roçar as três horas e meia na maratona. Dás-me um ano para isso tudo?

Entretanto, e umas horas antes de morreres, pouco depois da última visita que te fiz na noite de segunda-feira, descobri que a mãe pode estar muito doente. Ainda não sabemos quanto, andamos de análise em análise e de esperança em esperança. Amanhã vou com ela ao médico para agendarmos os próximos passos.

Na sexta-feira passada, recebi mais uma daquelas cartas antigas a dizer que o nosso segundo romance foi analisado com todo o cuidado mas que não está na linha editorial de quem não o analisou; antes, já tinha recebido outra a dar-me os parabéns pelo texto e a manifestar-me o lamento pela sua ineditabilidade. Dei comigo a sorrir de como sou estúpido, de como por uns momentos e há pouco mais de dois anos pensei que coisas destas nunca me voltariam a acontecer.

Como sabes, sempre me aborreceram notícias sobre os poetas que ganham prémios graças à sua magnífica resistência em poetizar, sempre gozei com a ingenuidade dos prosadores que ganham prémios e dizem procurar a palavra certa para cada pensamento, sempre li algumas páginas dos livros que ganham prémios e cujo sucesso não consigo perceber.
Mas cada vez leio menos. Esta semana? Nada. Os escritores dizem que a leitura e a escrita são o seu refúgio. Talvez seja por isso que eu não sou um escritor a sério: quando não estou bem, mal leio; quando não estou bem, escrevo tão mal.

Do resto, tu já sabes. Há uns sete meses que não me pedem traduções e as últimas notas que tinha, gastei-as para pagar a tua última solidão no hospital veterinário. Mas não te sintas mal com isso; quando o banco vier buscar-me a casa, e embora não tenha outro remédio senão entregar-lha, vou ladrar-lhes até não conseguir mais. E em tua honra hei-de morder-lhes os calcanhares. Ah, se hei-de.

A Miúda e a Sereiazinha mandaram-te beijinhos há dias e olha que foram bem maiores e sentidos do que os que mandaram para mim. Recebe-os, está bem? Onde estiveres, recebe-os.

Até para a semana, meu querido Barbinhas.

.

Por instantes, a minha passagem causou algum aborrimento. E, no entanto, não segurei nada que tivesse resistido à prova da chama. Fui estéril, não tive graça, muito menos caí em graça. Nalgum lugar ficará registado o dia 12 de Abril de 1967 para começo. Com que fim? O de ter fim.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

ciclo

à hora em que de morte se beija a noite
a angústia faz-se pequena     tão longe do nome
     indício de adeus sobre o consolo das raízes

mas chegará de novo inteira ao espreitar da manhã

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

barbas (1996?-24.01.2012)

Vazio de ti como dos amores da minha vida. Todos os outros partiram por já me não quererem. Tu não: até ao fim, meu amigo, me deste o teu carinho e me prometeste futuro. Perdoa-me pelas vezes em que não te soube corresponder. Perdoa-me, meu amor.

domingo, 22 de janeiro de 2012

.

Dedico o meu segundo romance Aos que traí. Traí porque entreguei tudo - a vida, o amor, a alegria, mulheres, amigos. Traí porque nunca me entreguei.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

o beijo


Nem pestanejava; mesmo quando calmei a procura e me caiu um estrondo na cara, o gritinho no lugar do morto não soprou o seu lugar de esfinge.
A estrada corria-lhe silenciosa sob o artifício das mãos enquanto ao espelho da pala eu examinava se ardia.
Entretanto era Coimbra e a cem metros do fim um semáforo fechava. Olhei-a de lado, pesei quietude, concluí aquiescência, ajeitei-me para outro ensaio.
Já o carro arrancava, já eu dormia para não ter medo. Tentei despertar-lhe a boca. Sem resultado: não creio que tivesse havido beijo. A sua cabeça inclinou-se leve, é um facto, mas para que a avenida não fugisse; e o talvez respirado e húmido da viagem não indiciava luta nem abandono.
Voltei a encostar-me como se costuma, fixando o pára-brisas com perseverança, a dos mortos, a dela. No vaivém das escovas chovia como quando somos tristes.
Segundo estrondo, de novo sem arma. Largou-me à frente da porta, simpática como nunca, sorrindo, «adeus, até amanhã».


Uma semana depois, dentro do carro o silêncio continuava maior.
Imóveis. Carnudos. Procurei. Estrondo.
Chovia e já estávamos parados no semáforo triste. Foi, então, que percebi: os beijos não se roubam, negoceiam-se. Assim, arranquei o braço direito antes de sair e pu-lo no banco traseiro, «Guardas-mo?».


O braço faz falta mas eu quero muito encontrar o beijo. Além disso, há dias deu-se um pequeno desenvolvimento: ajudou-me a enganchar o cinto de segurança e até roçou a mão na minha.
Virei-me para o banco traseiro a espreitar se trazia o braço. Não, talvez estivesse na mala; portanto, só procurei o beijo ao pressentimento do semáforo.
Novo estrondo.
Chovia e eu era maneta. À despedida, pensei que não estava a dar o máximo. Por isso, arranquei a perna esquerda. «Guardas-ma?»
Chovia muito, estava triste como nunca, tinha pena de ainda não ter encontrado o beijo. Encostei-me à parede e fiquei a ver o carro afastar-se: parecia menos vermelho do que habitualmente, talvez por a chuva cair com muita força sobre o tejadilho.
Saltitei.


Ontem estive todo o dia à espera. Telefonei-lhe várias vezes mas só me responde uma voz a dizer que o número não está atribuído.
Que bom, ela ter subido comigo há duas semanas, antes de eu lhe ter entregado a outra perna.
Há pouco, faltou-me bexiga para mais uma gota. Apesar de já não ser tão difícil como a princípio, ainda custa muito arrastar-me até ao quarto de banho e sentar-me na sanita.
Daqui a pouco, deveria ir trabalhar. Mas ainda preciso de uns dias de repouso. Desconfio, também, que é mais fácil encontrar o beijo se ficar em casa, à espera de que ela mo venha entregar.
Chove imenso.
Ainda é noite.
Tenho medo.
(Publicado no jornal universitário A Cabra de 20-10-2011: