segunda-feira, 30 de abril de 2012

16-04-2012 - 29.04.2012

Grande notícia: a mãe não vai ter de fazer quimioterapia. Para festejar, fomos almoçar fora. Há vários meses que não metia cadáveres à boca, o salmão grelhado não me caiu nada bem. Ou terá sido o vinho barato? Fosse como fosse, era um dia especial e bebi a parte que me cabia e a que não.

Anteontem, pela primeira vez neste três meses de sem ti, acordei no teu lado da cama. Sobressaltei-me primeiro, por pensar que podia estar a magoar-te, gostei depois de ocupar com o meu sono o espaço do teu. Sorri do calor que tantas vezes circulou entre os nossos corpos.

O meu segundo romance já tem lançamento marcado mas não me apetece falar do assunto. Gosto muito de escrever, tu bem sabes, quantas vezes interrompi os nossos abraços para apontar uma frase - mas que importância tem para os outros o que eu escrevo? Desconfio que, tarde ou cedo, virá à tona o meu exercício da vaidade. Entretanto, na maior parte do tempo estou lúcido e não espero nada.

Tu percebes, querido, foste tu que me ensinaste a querer cada vez menos.

sábado, 28 de abril de 2012

pieds bourgeois


Há pouco mais de seis meses ofereceram-me uns ténis para correr. Setenta euros, pelo que vim a descobrir, o que muito me sensibilizou: a carteira do ofertante não é tão abonada quanto isso. Nunca na vida tinha calçado tão caro, nem de perto; nunca na vida me fora o chão fácil assim.

Ontem, estava eu a meio do treino, caiu-me em cima a chuvada do meio-dia. A água nunca me fez desistir de nada, antes me incita a continuar como se fosse o meu ambiente natural, e por isso continuei a papar as léguas, completamente encharcado. Mas comigo também se encharcaram os ténis, pelo que tive de correr hoje com o meu antigo par de... sete euros.

Descobri que os meus pés têm sido excessivamente mimados: lamuriam-se agora de meia hora de obstinada destruição. E, cada vez mais burgueses, anseiam por que faça bom tempo e os outros ténis sequem.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

para uma ciência do adeus


Quantas vezes morre um homem
antes de morrer de vez?
Quantos dias e por que ordem
vão desfazendo o que ele fez?

Quantos sonhos são precisos
para que vá devagar?
Para estender-lhe o sorriso,
onde temos de acordar?

Como reter os seus rumos
em rumos que sejam nossos?
E como fazer-lhe o luto
sem nos descobrirmos mortos?

quinta-feira, 19 de abril de 2012

barba e não só





Uso barba desde os dezasseis e este hábito vem da minha enorme admiração por Camões. Mas hoje à tarde acelerava as pernas pelo quarteirão e um senhor dos seus sessenta fez-me sorrir por me comparar com outro barbudo:

Eh pá, o Antero de Quental a correr aqui no quarteirão.

Agora que se esvai a euforia do pós-exercício dou por mim a pensar que também tenho algo de Antero, sim, além da barba, da testa leporina e do nariz grado. Não a filosofia nem a arte, mas o impulso para acabar com tudo isto.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

nem três horas

Lídia veio demasiada
bater-me à porta hoje à tarde,
os olhos postos em água
e na voz tudo o que sabe.

Estendeu as mãos exaustas
de impotência com saudade
e buscou no que me falta
o consolo que lhe cabe.

Mas como a lua trouxesse
a promessa de outro dia,
ainda nem eram sete
e já de mim se esquecia.

Às oito bateu com a porta
porque eu era coisa morta.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

27.03.2012 - 15.04.2012

A mãe está a recuperar bem mas ainda não sabemos se precisará de fazer quimioterapia: os resultados dos exames só chegam no dia 26.
Parece muito cansada para algum dia voltar a trabalhar como antes. As últimas notícias não são boas: quando, aqui há uns anos, estava prestes a reformar-se, aumentaram a idade da reforma para os 65; agora que tem quase 64, dizem que a partir do fim do ano a idade da reforma passa para os 67.

Tenho-me esquecido de te dizer que, desde a tua partida, o Bê-Dê prefere estar em casa dela. Talvez nesta nossa lhe falte alguém que organize o espaço e o tempo. Tu eras óptimo nisso. E a mãe também.

Tenho jogado um pouco mais de xadrez - lembras-te?, aquela coisa que às vezes eu punha junto de ti, num canto do sofá, aos quadradinhos pretos e brancos e com muitas pecinhas soltas - só que no computador. o sou grande coisa. Gosto de pensar que um bom jogador de xadrez tem de ser inteligente mas que uma pessoa inteligente pode não jogar bem xadrez.

Às vezes corro até uma livraria que me permita folhear. Perdi muito do gosto antigo e, do que vou lendo, parece-me que a nova geração de autores é boa mas empolada na quantidade e na qualidade.

No fim do mês, estará pronto o nosso segundo romance. Tu sabes, neste não entram cãozinhos como no primeiro, onde tu e a Bonita estavam entre as personagens principais. Mas digo-te agora em segredo que o seguinte já está guardadinho na gaveta e tem um cãozinho quase tão giro e meigo como tu.

Não te esqueço, meu amor.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

como se fosse outro acaso

Estio morno. Sol deitado.
Voo rente. Sombra larga.
A indolência do passado.
O futuro do que estagna.

O suor do homem que nisto
desliza a mão pela frente.
Toda a alma do seu respiro
no socalco do presente.

E se vier a maior paz
para fim do nosso estado
- sorrir por tudo, aceitar
como se fosse outro acaso.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

.

No princípio de maio se lança e era até o ano passado o mais árduo e solitário dos meus exercícios engavetados. Há já quatro anos romance feito, acompanhava-o ultimamente outro quarto de resma.

domingo, 8 de abril de 2012

artifício

Por menos voltas que der
a pena que em mim ciranda,
nunca fica no papel
o pensamento que o mancha.

E mais: o grau do artifício
é sempre tanto e tamanho
que toda a frase é delírio
e nenhum verbo sai plano.

Por isso, pouco me importa
que gozes com a redondilha:
se a palavra é sempre torta
ao menos que seja minha.

.

Nunca tinha trepado escada assim e isso era mau. Encontrámo-lo ofegante no último degrau.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

para que fosse casa

.
contar as paredes e pressentir o tecto
era começá-la
e na verdade quase parecia
nas mobílias do quarto e no preenchimento da sala

da cozinha chegava o restauro do sol
e o banho compunha os caboucos da vida
no entanto aqui nunca me conheceste
aqui sempre faltou o suspiro e eu saber que faltava

quinta-feira, 5 de abril de 2012

década

Há dez anitos, nem tanto, 
punhas a vida em cadernos
e os cadernos nesse canto
dos amores ainda eternos.

Há mais ou menos cinco anos
abandonaste os papéis
e os anseios mais humanos
no canto aos dias cruéis.

E agora entregas a chave
da gaveta que te sobra
pois não há nada que trave
a tua última manobra.