quinta-feira, 19 de julho de 2012

a minha viagem (2005)

.
Não vejo dia para me ir embora
do ar que sorvo e da sombra que me aperta,
mas sempre que me ponho à janela
passa a ser dentro o que antes era fora.

Perpétuo prisioneiro, a minha cela
ambula e reconstrói-se a toda a hora;
e quando me dirijo à sua porta
derramo em luz a dimensão da espera.

Não há segredo, então... a vida inteira
procurei o tesouro mais escondido
em lugares que nunca visitei,

para agora entender desta maneira
que por trás dos meus olhos há sorrisos
e por trás destes a mulher que amei.

--------------------------------------Lisboa, 2005

quarta-feira, 18 de julho de 2012

palavra exacta (2005)

.Palavra que, de pronta, te regresse
- que é dela, ah como hei-de procurá-la?,
quanto dela hei-de pôr na minha fala
se todo o meu segredo te aborrece?

Meu amor - quando, para que te interesse,
me valeria a pena pronunciá-la?
Quão próximo de ti, que tom, que sala
para abrir espaços ao que me apetece?

Palavra que, de exacta, me descubra
sob o teu gesto rude a noite rubra
- existe acaso? ou esse olhar é tudo?

Espero? Avanço? Continuo mudo?
Ou és possível, diz, mulher cansada,
na esquina ignota de uma só palavra?

--------------------------------------------Oeiras, 2005

domingo, 15 de julho de 2012

equivalências

Antigamente, eu gostava muito de ir a exame: dava umas explicaçõezitas para sobreviver e vivia de ir a exame. Pelas minhas contas, fiz entre 60 a 70 cadeiras na Universidade de Lisboa, mas exames foram muitos mais. É que eu não gostava de estudar tudo e por isso reprovava muito. Além disso, também ia tentando melhorias, Às vezes com sucesso: tanto, que conseguia um 11.

Eu só não sabia que, no meu caso, tanto exame não servia de nada: aprende-se muito pouco quando não se tem paixão por nada. Por isso ando agora tão feliz com esta história do Relvas e todos os futuros que isso implica.

A vida cá fora custa muito, claro que equivale. Aceitar isso é um primeiro passo para aceitar o contrário: que as cadeiras feitas na faculdade também têm de equivaler à vida cá de fora. Não sou muito bom em contas mas vejam lá se não faz sentido: metade dos meus créditos no curso de química, troco-a pela arte do engate e, se a comissão de equivalências quiser, também por algum jeitinho para beijos à maneira. Dizem que é bom saber beijar. Depois, a outra metade dos créditos, posso trocá-la por alguma ciência de cama: dizem que é uma ciência fixe.

O curso de psicologia é que não sei bem para que servirá, mas olhem, eu até trocava por uma casa. É isso: uma casinha. E por um carrito, já agora. Se não for pedir muito.

Entretanto, ponho-me a fazer outro curso. Não vá começar a querer de mais.

sábado, 14 de julho de 2012

os cães da tua boca (1992)

À porta, à minha chegada,
à hora, à palavra esperada,
atiçaste os cães da tua boca;
e nunca mais ninguém ouviu
à porta a minha chegada,
à hora a palavra esperada;
e nunca mais,
à tua porta,
à palavra esperada,
atiçaste os cães da tua boca.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

asas

-
Dizem que nunca na vida
prendes o passo, que nem
sequer pensas no regresso:
pois darias por perdida
a alma inteira, pois não tens
gosto no que tens por certo.

Dizem mais: que sobrevoas
o lastro do que persiste
ao largo do que acontece,
que ninguém te vê à toa
disto que hoje nos faz tristes
e que ontem nos trouxe inertes.

E dizem que de futuro
darão sonhos ao teu nome
e o teu nome às madrugadas:
mostraste, acima de tudo,
que um dia quem nunca pôde
há-de por fim abrir asas.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

almoço (2005)

Sentamo-nos à mesa para o almoço,
impensáveis jantares, cama extinta,
cuidando o que dizemos um ao outro,
atentos sempre ao que magoa ainda.

Eu desenvolvo-me em minuto e pouco,
e tu, se tanto, num minuto e trinta,
se omito o meu percurso mais sinuoso,
de ti, que exibes mais, espero que mintas.

A despedida é rápida e sem história:
parecemos bonecos sem contexto
fingindo um beijo ao largo das orelhas.

E a madrugada a visitar-me insónias!
O cadáver do nosso à tarde veio
para pintar o nosso nas estrelas...

_______________________Oeiras-Lisboa, 2005

segunda-feira, 9 de julho de 2012

um homem qualquer

As loucuras que eu teria
feito por esse homem; as
muitas que fiz; quanta vida
já prendi às suas asas.

Mesas. Camas. Luzes. Tectos.
A busca em torvelinho; os
filhos que nunca tivemos;
a roupa de corpos nus.

O mundo ao seu nome antónio
correndo-me sob os pés;
toda a estação de comboios
que tendia a nossa pele.

E hoje ao passar, nos meus olhos
passou um homem qualquer.

domingo, 8 de julho de 2012

o muro (1990)


Eu não sei muito sobre as causas
das coisas.
Aprendi a prever a noite
quando o sol se inclina por trás da minha janela
e pouco mais.
O dia, nunca o vejo nascer:
o meu ser nocturno não tem ânsias de luz.
À sombra do muro que me cerca
e por trás das frestras que o tempo abriu
passo muitas horas da minha vida
a contar as horas que a rotina gasta.

Nunca passei nenhuma fronteira
porque sempre houve luar
e eu nunca trago identificação.
Por isso fico onde estou e ninguém me tente;
já estou farto de partir a alma
em loucas correrias e tropeções
por caminhos acidentados
que me levam a lugar nenhum,
que é o ponto de partida.
Quem quiser, que vá sozinho.
Eu fico aqui, a tapar os buracos.

----------------------------------------Lisboa e 1990

sábado, 7 de julho de 2012

ir andando

Não sei explicar porquê, estavas em minha casa, sentada à minha mesa. Mas parecias ter pressa em partir.
Eu tentava ordenar um monte de folhas impressas; mas sempre faltavam páginas e sempre me punha a desmontar tudo com a esperança de as encontrar no recomeço da tarefa. Ou seria outra a esperança, a de que não te fosses embora por excesso de atenção.
Tenho de ir andando, disseste baixinho.
Estás com fome, não estás?
Fui ao frigorífico, tirei dele com que preparar-te uma sandes e um sumo.
Não, não tenho fome.
Tinhas de ir andando.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

mon amérique à moi

-
Dizem os jornais que na América se têm avistado sereias.
Mas é mentira que se avistem sereias. E é mentira porque só há uma. Durante algum tempo, de quando em quando, ela dava à minha praia; e encantava tão bem que todas as suas melodias acordavam futuros.
Um dia, no entanto, deixou de fazer alto mar minha praia minha praia alto mar; e garantiram-me os marinheiros que era impossível avistá-la: ela agora estava tão mulher que se instalara definitivamente no fundo das águas.
Pois, pois... Com que então na América. Vou despachar-me que o avião parte daqui a nada.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

.

Antes, sempre que pedia a alguém que não partisse - alguém partia. Aprendi. E agora que a ninguém peço que fique - ninguém fica.

terça-feira, 3 de julho de 2012

14.06.2012 - 03.07.2012

Perguntaram-me por ti, respondi que já não vivias comigo, apressei o passo. Ao virar da esquina, as lágrimas corriam. Tenho deixado a guitarra ocupar o teu lado da cama.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

aqui (1992)


o fui eu quem embarcou
no meu sonho, à tua passagem,
tanto frio, tanto frio...
Foras brisa vespertina
ao fim de mais um destes dias
(apenas e tudo isso)
e, então sim, então fora eu.
Foste tu
quem tiritou o sonho.

domingo, 1 de julho de 2012

segredo (1989)

.
Ouvi um segredo
que não era meu.
Disse-o o Pedro
ao Bartolomeu.

Não sei que me deu,
acerquei-me a medo
e aconteceu
ouvir o segredo.

Fiquei boquiaberto,
aterrorizado,
e se estou bem certo

do que disse o Pedro,
esperem sentados:
não digo o segredo.

-------------------------Lisboa e 1989.

como a tua vontade queira (1992)

.
não espero
     onde a vida faz esquina contigo
que me espertes deste esmaio
nem me vou prolongar por atalhos
    
onde o sonho enlouquece e quer
não vou adormecer da espera nem quando
     a minha distracção te esquecesse um dia

pois que tenho vinho
     para as nossas taças e muitas mais
bebamos sobre revoltas e desassossegos
    
que até nós me trouxeram
e a um canto das horas como a tua vontade queira
     que me abraces neste fim de tarde
     e nada mais seja à minha maneira


-----------------------------------------------------------LISBOA E 1992.

palavras como aves (1991)

Pensei dar-lhes o nome de rolas
que nas nossas memórias ficasse;
têm a textura das aves em fuga
e o desejo de fuga das aves,
o arrulho das noites em espera,
o aroma impreciso do que há-de.

Porque o amor nesses dias poalhava
de mistérios teu corpo sem dono,
quis mantê-las em conchas de mão,
concebê-las em sonos de sonho,
percorrê-las enquanto houvesse onde,
conhecê-las em quandos de outono.

Mas agora que tudo já sobra,
que faço eu do que nunca foi meu?
Se já nem o meu corpo é de aqui
que palavras serão mais que nada?
Se algum dia houver nós outra vez,
há-de ser em palavras como aves;
pensei dar-lhes o nome de rolas
que nas nossas memórias ficasse.


---------------------------------------------lisboa e 1991