Esta originalíssima cantiga de amigo de Pedro Anes Solaz (séc. XIII) tem, ao que se julga, refrão em língua árabe ("lelia doura" - a noite é longa; "edoi" - esmoreço) e aludirá, segundo alguns, aos amores proibidos entre uma donzela e um músico muçulmano (http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=838&pv=sim). Está entre os mais belos poemas galaico-portugueses e não me canso de ouvi-lo na voz e na música de Amancio Prada.
Que o momento é outro
sem a rotina do gesto
nem o encanto previsto
desencantado por isso
que te envenenei
e o veneno foste tu
que o silêncio existe
apenas quando é preciso
«"Vinte e dois anos! Aos vinte e dois, esvaziado de impulsos, deslocava-me apenas, à procura de elogios: predava elogios. E se era guloso! As pequenas vitórias, sentia-as retumbantes, gloriosoas, magnificentes - no exacto segundo que as sucedia. Depois... bem, depois, e afinal, já não eram vitórias, eram somente mais um sintoma da minha derrota. Que eu, eu, sim, eu era uma derrota contínua, sobre a qual os outros se divertiam, experimentavam novas condições, riam até à exaustão. "O exame ultrapassado, o dinheiro conseguido, esta mulher que me sorrisse à mesa de um café, aquela que encontrasse nos meus braços o difícil e lacrimogéneo orgasmo das viúvas, esse intelectual que concordasse com um qualquer argumento mais arguto, tudo e todos eram acaso, não passavam de engano. Como poderia alguém, no seu perfeito juízo ou na posse da informação pertinente, diz-me, como poderia alguém atribuir-me quaisquer valores e competências?"
Quem escreve assim é o luís. Li 'Um Pinguim na Garagem' de rajada, em dois dias, e continuo a lê-lo cá dentro, como há muito não me acontecia com um livro.»
Há esta memória vaga
em cada vontade,
o segredo que se acaba
porque já não é.
Num aroma que se faz
depois da partida
e que lembra quanto chove
quando já não chove;
numa tristeza inventada
com a sinceridade
de uma vida que desaba,
irrecuperável;
há esta memória vaga
de felicidade.
Numa cama grande
que à noitinha me recebe
e de madrugada,
fria ainda, me despede;
numa estrada longa
que percorro como quero
para longe, creio,
sem atalhos, sem veredas;
há esta memória vaga
do que já não é,
o segredo que se acaba
na tua vontade.
Quando na rua ela passa
com seus olhares gelados,
a todos deixa pasmados
e a todos embaraça.
Ela é tão má, é tão crua,
que o sol tremendo de frio
a seu olhar já se viu
titirando atrás da lua. * Pois é, com 11 anos eu já inventava deusas. Houve outras, não muitas, mas esta foi a primeira: a minha professora de português do 1º ano do ciclo preparatório. Escrevi uns poucos poemas antes deste mas seriam ainda piores e perderam-se. Sei que o quarto verso só com esforço é redondilha maior; e que "frio", pelo menos do modo não-lisboeta como eu o digo, não rima muito bem com "viu"; mas na segunda quadra já se nota um gosto que ainda guardo: quando me dá por rimar gosto que a rima seja rica. Se juntarmos a isso a minha preferência por rimas toantes e a incapacidade de rimar vogais abertas com vogais fechadas (por exemplo, para mim, "estrela" não rima com "bela"), já aqui está toda a técnica que tenho.
A esta hora, um pardal bem desperto na árvore mais próxima da minha varanda! Não pára de cantar, o maroto, repetindo-me e repetindo-me ao ouvido que estás bem, que talvez até já estejas a dormir e, assegura ele, a sonhar. É a minha vez: vou fechar os olhos a ver se te encontro.
Chega de manhã
com um gosto pontual
e entardece por cá.
Coça-me algures
os limites da razão
e eu sorrio.
E as folhas de outono
baloiçam mas não caem.
É daquelas
que o tempo descobriu
e valha-me deus se não enlouqueço
no sonho etéreo de um gesto seu
quando pede a carícia
que não tenho.
Depois, como quem não quer,
insinua-se como quem talvez
e afasta-se como quem decerto;
não fica à noite, eu bem sei,
mas adormece-me sempre,
memória conformada,
tristeza anestesiada
a um canto da vida.
As coisas que me dizes quando
calas,
os pássaros que aninhas entre as mãos,
a falta do teu corpo nos lençóis,
o tempo que gastámos a insultar-nos,
o temor à velhice, os almanaques,
os táxis que corriam espavoridos,
a dignidade entregue em qualquer parte,
o violinista louco, os agasalhos,
as luas que beijei eu nos teus olhos,
o denso olor a sémen derramado,
a chacota da história à nossa volta,
as cuecas que esqueceste no armário,
o espaço que preenches na minha alma,
a boneca escapada ao incêndio,
a loucura espreitando atrás da porta,
a batalha diária entre dois corpos,
a minha indignação contra as touradas,
o pranto nas esquinas do olvido,
a cinza ainda à vista, os despojos,
o filho que jamais pudemos ter,
o tempo para a dor, as depressões,
o gato que miava no telhado,
o passado ladrando como um cão,
o exílio, a fortuna, os retratos,
a chuva, o desamparo, os discursos,
as convenções que nunca nos uniram,
a redenção que busco no teu corpo,
o teu nome na capa do caderno,
sempre o meu coração no teu respiro,
a cela que ocupaste na prisão,
minha barca à deriva, esta canção,
o bramido do vento no arvoredo,
o silêncio que esgrimes como um muro,
tantas coisas bonitas hoje mortas,
o tirânico império do absurdo,
os obscuros recantos do desejo,
o teu pai, que morreu eras menina,
o beijo apodrecido em nossos lábios,
as paredes caiadas, a indolência,
a luz dos pirilampos sobre a praia,
o naufrágio de todas as certezas,
o derrube de deuses e de mitos,
a escuridão em volta como um túnel,
a cama navegando no vazio,
o tugúrio que um dia veio abaixo,
o sexo resgatando-nos do tédio,
o grito interrompido, a madrugada,
a fogueira do amor que nos queimava,
a insónia, a sorte, as pontas dos cigarros,
a árdua aprendizagem do respeito,
as feridas que já nem Deus nos tira,
a merda que arrastamos sem remédio,
tudo o que nos foi dado e retirado,
os anos que passaram tão depressa,
o pão que partilhámos, as carícias,
o peso transportado em nossas mãos.
Dionísio não é maroto. Apenas sorri porque ouve dela o que nele cala fundo. E lembra-se de quando não sentia o tempo nas mãos porque ela não lhe dava as suas. E percebe que o tempo desliza de novo para fora do corpo.
Ainda e sempre, ela mordisca-lhe o coração e fecha-lhe os olhos. Ainda e sempre, ela é a mulher.
Pois eu não faço ideia do que pretende o José Sócrates. Na verdade, nem vou perder tempo a tentar fazer alguma, por simples que seja. Não assino qualquer petição contra nem qualquer petição a favor. Não tenho televisão, também não vou assistir a qualquer comentário de mais um espertalhão com cara de pau. Assim também não tenho de me envergonhar só de me imaginar no lugar dele.
Sem qualquer perigo para as nossas vidas a casa acabaria por ruir. De quê não sei, por trás destas pupilas a memória caminha de perfil. Talvez no chão da cama a tua urina cansasse amor e nos levasse abril. Talvez latissem cães às escondidas nos ossos pressentidos dos meus sins. Ou talvez o problema fosse antes a material postura dos caboucos da nossa densa improbabilidade, porque a construção dos bons amantes é um simples fragmento em sonhos rotos e o tempo nada mais que o seu desastre.
Agora é tão mais fácil correr... Posso ir distraído, sem ter de maçar a cabeça na contagem dos quilómetros por quarteirões repetidos: o aparelho que arranjei diz-me que acabo de fazer doze quilómetros numa hora e que gastei nisso à volta de mil calorias.
Rir-te-ás, eu sei: as tareias que me davas quando ias atrás dos gatos e me levavas atrás de ti... E talvez também te rias destes meus setenta e seis quilos actuais, que não abatem, que não gosto nada de ver ao espelho. É que me sinto mais velho, sabes? Além disso, embora tenha recomeçado a cansada arte de empurrar o planeta, também venho abusando das casas dos outros, da mãe, dos amigos, onde chego sempre com duas garrafas de vinho nas mãos e saio quase sempre com as mesmas duas no bojo. Acresce que durmo de menos, o que, dizem, não ajuda.
Mas nem tudo é mau. O perene bolso vazio, é verdade, mas, um pouco por isso mesmo e desconfio que apenas por enquanto, algo dono do meu tempo.
Enfim, tenho vindo a descobrir alguns recantos intactos no meu coração. E já sorrio mais do que entristeço ao recordar as tuas doidices...
Sorrio se o teu cocker se distrai a farejar as ruas que inventou - - sorrio porque sei para onde vais e, claro, é por aí que eu sempre vou. Persigo-te e sorrio ainda mais quando à tardinha fazes de charlot; sorrio até das aves que em sinais vêm descobrir o fácil que te sou. Sorrio, enfim, porque me tens por réu, de todo o mal que aconteceu na cruz, da má fortuna que baixou do céu. Sorrio quando os nossos corpos nus se concedem por último troféu e se encontram nos nomes que lhes pus.
Para provar que és capaz de me esquecer de uma vez vieste ver se aqui se faz o amor que um dia se fez. Não sei se foste feliz nem se fomos mais que sós: o teu adeus só me diz que não quiseste ser nós. Extinguiste enfim a luz que nos trazia de trás, e a este engano eu já lhe pus o letreiro de Horas Más.
a ocupação não obedece
a horários nem rotinas
deu-se como se dá com a tosca precisão dos aprendizes
de um modo geral até nem há qualquer ocupação
um momento faz outro
e os lugares estão lá
e nós também
e isso é tudo
também de um modo geral
e para sermos mais verdadeiros
nem sequer de um momento para o outro o que implicaria sabermos de
momentos que nunca foram nossos
si tu cuerpo se va hacia el mío; y en todo esto estaré siempre sorpreso
pues siempre que, mi amor, te acaricio
mi amor me da todo el amor que espero.
* Hoje lembrei-me destes dois tercetos que acabavam um soneto, escrito num castelhano de quem já vivia em Portugal havia alguns anos. Aos 14 anos que sabia eu de espanholas? Aos quase quarenta e seis que sei eu de espanholas? E de mulheres? E do Homem? E d'ISTO?
estendo os tentáculos quase para além das minhas
possibilidades
em busca do sopro que o vento inventa e da vertigem que o mar
trabalha
adormeço de cansaço apenas e nunca da procura inacabada
vouvenho em luta e abandono consoante o previsto para cada
situação em minha estratégia
quero tudo tudo o que ocupa o infindável
percurso entre as extremidades do
arco-íris nas cores que são e nas que
seria se tudo alcançassem e
facetassem meus olhos polipinos
tudo neste mar e além-dele
tudo
quero o teu sonho menina em maio cujos lábios tardam ao
entremecer
quero o volátil orgasmo das senhoras entre chás na mexicana
quero a exaltação a dúvida a conquista a perda de eldorados
consabidos tragocomédias ou como queiras
quero a angústia da espera o alívio da chegada os dias imprevistos por noites sem madrugada
tudo tudo
tudo dentro e fora aqui e ali agora e noutrora
ser e ter o que há e o que se insinua sem que haja o que se insinua nem se insinue o que há sem princípios de incerteza nem sujeições de objecto sem tu de mim nem eu de ti
quero tudo sim quero tudo mas onde está e como está