terça-feira, 30 de abril de 2013

saudades tuas

Tenho saudades tuas desde que te conheço. Estejas longe, estejas perto, mais ou menos faladora, mais ou menos manifesta, mais ou menos secretária, tenho saudades tuas. Tenho saudades do que vivi, vivo e nunca viverei ao teu lado, tenho saudades tuas. Do que lembro e do que imagino, e do que lembro que imagino e do que imagino que lembro, tenho saudades tuas. Da amiga, da amante porque te amo, tenho saudades tuas. Da mão na mão, do teu abraço seguro, do teu beijo quase a medo, dos sonos que nunca partilhámos, de pressentir os teus amores por trás do brilho que guardas nos olhos, tenho saudades tuas. Do teu andar, daquele voz sorrida com que a mulher protege a menina, tenho saudades tuas.
Tenho tantas saudades tuas.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

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Escrever não é levantar voo, é o mais exaustivo inventário do rastejo.

domingo, 28 de abril de 2013

3. Morena - Guerra Junqueiro

 
Não negues, confessa
Que tens certa pena
Que as mais raparigas
Te chamem morena.

Pois eu não gostava,
Parece-me a mim,
De ver o teu rosto
Da cor do jasmim.

Eu não... mas enfim
É fraca a razão,
Pois pouco te importa
Que eu goste ou que não.

Mas olha as violetas
Que, sendo umas pretas,
O cheiro que têm!
Vê lá que seria,
Se Deus as fizesse
Morenas também!

Tu és a mais rara
De todas as rosas;
E as coisas mais raras
São mais preciosas.

Há rosas dobradas
E há-as singelas;
Mas são todas elas
Azuis, amarelas,
De cor de açucenas,
De muita outra cor;
Mas rosas morenas,
Só tu, linda flor.

E olha que foram
Morenas e bem
As moças mais lindas
De Jerusalém.
E a Virgem Maria
Não sei... mas seria
Morena também.

Moreno era Cristo.
Vê lá depois disto
Se ainda tens pena
Que as mais raparigas
Te chamem morena!
 

Guerra Junqueiro (1850-1923) escreveu estes versos antes de os aristocratas começarem a ir a banhos em Cascais e esconderem o sangue azul sob as carícias do sol - o que passou a ser indício, claro, de sangue azul... Mas no tempo dele, moreno era trabalho de sol a sol, pobreza, analfabetismo, parentesco árabe; por isso, na minha leitura, estes versos singelos são também uma homenagem ao povo, incluída pelo poeta no seu Musa em Férias. Li-os no início da minha adolescência, e embora o poeta de Freixo de Espada à Cinta não esteja entre os meus preferidos, gostei: na altura já havia morenas que, sem qualquer pena, me distraíam o olhar.


sábado, 27 de abril de 2013

iguaria (2001)

ao arrepio escancarámos o segredo
     quando os braços se encheram
          de bocas largas
     e nos derramámos de agulhas
          sob a pele tendida

não é verdade que tenhamos sido canibais
ainda que o frio
     nos esquecesse a carne
          em plena vigília

quando muito exploradores sem método
     com todo o presente
          e a entrega toda
     para a laboriosa aferição dos temperos

sexta-feira, 26 de abril de 2013

haikai xix


nunca te esqueça
essa obstinada audácia
que foi papoila

testemunho (1984)

Sim, senhor, é verdade
que a princesa dormia quase nua
com uma cuequinha quase transparente
quando pela janela toda a lua
se esgueirou descarada de contente.
E eu aqui às escuras
nesta rua às avessas
e quem disser que não é porque mente.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

2. Crónica dos bons malandros - Mário Zambujal

autor: Mário Zambujal
págs.; 152
ed.: Quetzal
1980/2006
A quadrilha de Renato, o Pacífico, é formada por sete bons malandros que preparam o  passo para o lado de cá, ou, talvez melhor, de lá..., da sociedade. O roubo de vinte e duas peças da colecção Lalique, em exposição na Calouste-Gulbenkian, será o início de uma vida nova.

Lêem-se de um fôlego, e pensam-se com muitos, os trabalhos e tropelias que foram preparando, desde a infância ao assalto libertador, o encontro de Renato, Marlene, Flávio, Silvino, Arnaldo, Pedro e Adelaide,  inseparáveis das respectivas alcunhas e idiossincrasias.

Mário Zambujal, apresentador à época do Domingo Desportivo, aquele programa com dois bons pares de horas e que arranjava tema para conversa a partir do que para mim eram tristonhas banalidades, escreveu este livro despojado e polvilhado de ironia e humor, em que as palavras coabitam com um quase contínuo sorriso do leitor, desde o crime inaugural de Pedro, o Justiceiro, às picadas de um assalto talvez demasiado bem-sucedido, onde Silvino Bitoque tem um papel fulcral.

24.04.2013

O que tenho feito? Quase nada. Continuo a escrever, claro, mas já muito menos e sem aquela crença de que tinha alguma coisa para dizer. Escrevo aqui, aqui apenas, meia dúzia de minutos por dia para meia dúzia de amigos que perdoam a métrica e a rima em que muitas vezes me entretenho - e que hoje em dia são tão mal vistas.

A vida encarrega-se de pôr as coisas no lugar certo, já não tenho aquelas ambições de puto parvo. O romance que estava a escrever quando morreste - destruí-o há dias pela enésima vez. Ainda hoje pensei em recomeçá-lo, mas chega a noite, chega a ausência, e não me faz sentido. De qualquer modo, estou demasiado velho e cansado para começar tudo de novo, para voltar a fazer o que fiz durante quase trinta anos da minha vida: mandar manuscritos para editoras que nunca me respondem ou que respondem passado um ano a dizer que o texto não se encaixa...

Faz hoje quinze meses que morreste e abandonaste as minhas mãos ao vazio. Talvez seja por isso que estou assim: sem esperança. Não sei. O que sei é que escrever não resulta.

Ah... vem aí o verão. Lembras-te como era? Deitávamo-nos os dois sobre o fresco do chão e, focinho com focinho, adormecíamos ao ritmo ajustado das nossas respirações. Meu querido Barbinhas, que falta me fazes...

segunda-feira, 22 de abril de 2013

se tu quiseres assim

Amanhã ao despertares
dos sonhos por onde vais
e ouvires os familiares
assobios dos pardais;

quando saíres à rua
onde o sol te beije a frente
e guardares para tua
a aura da manhã contente;

amanhã muito cedinho,
se tu quiseres assim,
crescerá no teu caminho
uma flor do meu jardim.

até já


Acabo de vencer por derradeira vez
estes degraus que há trinta e nove anos repito;
um a um, eu que antes os contava três a três,
um a um, com a tarde inteira em meus dias de aflito.

Cego e surdo, sem voz, presa de tibiez

e do papel vazio que não será escrito,
passo o tempo a pensar no que o tempo me fez,
o corpo em ruínas que já quase desabito.

E entro na sombra deste velho apartamento,

respirando o mesmo ar que já dois respiraram
e que sem ti se foi tornando tão bafiento
como o sussurro das manhãs que nos separam.

Sentado no sofá, invento o adeus da cor

que à noite nos deitava... e espero, meu amor.

sábado, 20 de abril de 2013

que nada sei (1992)




que nada sei
das tuas minhas
embrenhadas procuras
decerto em ti
nem tão minhas assim

e da cor em teus olhos
e do sonho em teus sonos
e do choro sem pausa
do frio em teus outonos
da loucura com causa
que nada sei

do corpo dedilhado
em ritmos sincopados
tão que sim tão que não
que sim já que não tão
já que não então sim
que nada sei

embuti apressado
o que de ti mais pude
no que de mim não tinha
e apodreci
que nada sei de mim...


que nada sei de mim...

sexta-feira, 19 de abril de 2013

pirata apenas (2003)

Se para teu pirata me quisesses
seriam meus os uivos ao luar
e os viajantes, apesar das preces,
e os beijos de guardar e não guardar.

Tortura algures no meu corpo aos esses,
o desejo seria esse lugar,
e nada mais o vento em que me teces
senão o gesto que me faz ao mar.

A cansada manhã, quando chegasse
e de mérito em braços me levasse,
traria a viagem de outra noite em espera.

Mas então eu seria entre despojos
e nada mais que nada para os olhos
de quem pirata apenas me soubera.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

construção (2002)

erecto de luas cheias
teu corpo sorri
     na minha boca inteira

porque és carta de navegar-me
e navegar-me
     é coisa minha

a morte deles (2011)

há mortes assim     que surgem com vidas que chegam
foi o caso da morte deles nela     ocorreu de repente e
um dia     sentada no sofá a ver televisão     deu-se conta     olha     eu e o antónio morremos

para ele foi mais difícil     a morte deles nele foi programada e as coisas programadas são menos fiáveis     é como ter de tomar uma catrefa de comprimidos todos os dias     basta esquecer um para as coisas darem para o torto

tantos nomes

menina marota, que te deu
para esvaziar o mundo?
por que apanhaste tantos nomes
se nenhum nome te veste inteira?
não sabias acaso que a transparência
é destino do tempo na tua pele?
por que roubaste o tecido
das noites e dos dias?
porquê, menina marota,
porquê, se já sabias?



quarta-feira, 17 de abril de 2013

maratona de boston 2013

Richard  estava cansado e, tenho a certeza, satisfeito com o sucesso: não há maratona sem cansaço, a meta de uma prova destas é sempre uma grande meta de quem a cruza. Martin, o filho de oito anos, poisou o cartaz em que pedia paz no mundo, veio abraçá-lo, regressou para junto da irmã e da mãe.

E a bomba explodiu. Martin, morreu. A menina, de seis anos, e a mulher estão no hospital: a primeira sem uma perna, a segunda com uma grave lesão cerebral.

Era dia de festa.

pesadelo

Se este cuidado há muito posto
na construção de um sonho
tanto cai por um erro,
manda-me embora e com desprezo,
ignora-me por onde eu for,
recusa o meu amor.

Inventa que um dia te disse
as frases cruéis dos aprendizes,
quando por fim me for;
também dirás que mereci
perder quanto perdi,
estrela da minha noite, meu amor.

terça-feira, 16 de abril de 2013

porque te amo




Sempre inteiro e sem receio
a que ignores o meu ramo,
será teu o meu gorjeio
e não esconderá que te amo.
Haverá dias, bem creio,
em que passarás ao largo;
noutros, ficarás a meio
caminho entre acto e letargo.

Mas não serei eu a pôr
ordem nos sulcos do tempo:
se o teu caminho for de asa
e tão de asa o meu amor,
que voo nalgum momento
desistirá desta casa?

o condutor eficaz (2001)


           CONTROLO TUDO: A INTENSIDADE
          DO VENTO NA ORELHA PONTIAGUDA!
         O MEDO DOS OUTROS NO VELOZ QUE SOU!
       AQUI VOU EU AQUI VOU EU PI PI AFASTEM-SE QUE AQUI VOU EU!
    A AUTO-ESTRADA É DE QUEM A COME ATRASADO MENTAL! ENCOSTA O CARRO BANANA!
    E DEIXA PASSAR QUEM SABE DISTO! PI PI AQUI VOU EU! PI PIII NINGUÉM ME PÁRA! PI PIII!
   PELA DIREITA PELA ESQUERDA POR CIMA SE NÃO TE AJEITAS!!! PI PI! ADEUS GRANDE PALEEERMA!
                       OCONDUTOREFICAZ                                                                   OCONDUTOREFICAZ
                             OCONDUTOR                                                                                  OCONDUTOR
                                   EFICAZ                                                                                             EFICAZ

segunda-feira, 15 de abril de 2013

mais um exemplo de primavera

distraio-me     fico muito sério
     e o mundo gira em meu redor`
     dias e dias inteiros
no entanto     tudo se esvai     nada me chega
     e no meu sangue circulam faltas
chego a convencer-me de ganhos e perdas
     como se as palavras meu e minha
     tivessem algum significado

mas às vezes     muito poucas vezes     dou-me conta
     de que onde e quando seja
          nada é de     tudo está com
     de que tudo floresce apenas
          em mais um exemplo de primavera

1. Homer & Langley - E. L. Doctorow

Homer & Langley
autor: E. L. Doctorow
trad.: Tânia Ganho
págs: 176
ed.: Porto Editora
2009/2013
A crescente auto-exclusão dos irmãos Collyer (Homer e Langley), contada e explicada pelo primeiro, Homer, numa longa carta a uma jornalista francesa. Atravessando uma boa parte do século XX americano, da Primeira Grande Guerra aos assassínios dos Kennedy e de Luther King e ao movimento hippie, a carta de Homer descreve como Langley se vai enclausurando, e ao irmão, na casa que habitam: atafulhando-a de jornais de onde espera extrair as grandes invariantes da História; enchendo-a de objectos recolhidos e invenções próprias que supostamente promovem a sua autonomia; protegendo-a com armadilhas contra os invasores; enfim, afastando tudo o que os rodeia.

Os verdadeiros irmãos Collyer morreram em 1947, mas, à parte as liberdades narrativas de Doctorow, sobretudo para conseguir atribuir à sua ficção maior verosimilhança do que a da realidade, este é um belíssimo exercício sobre o modo como as nossas vidas são orientadas pelo nosso mundo de significados.

Pouquíssimas gralhas. A tradução, óptima e num português quase irrepreensível: apenas uma ou duas vezes senti que me faltava um "de" a acompanhar verbos que o exigem (o que revela que Tânia Ganho sabe escrever melhor do que muitos monstros sagrados da literatura portuguesa actual); e, só porque percebo um pouco de assunto, torci o nariz ao ver rods traduzido por hastes: quando estamos a falar de olhos, encontro sempre bastonetes nos livros de anatomia. Pormenores menores mesmo e que não beliscam esta certeza: Tânia Ganho é uma tradutora maravilhosa que soube reconstruir a partir do original um texto cuja leitura se torna compulsiva.

domingo, 14 de abril de 2013

8. "Um pinguim na garagem" - lançamento a 8.out.2009

 
 
 
"...E eu mais triste
que um pinguim numa garagem
............
como um cão no enterro
da minha juventude..."

                                                   Joaquín Sabina

a bela e camilo (1982/2007)

Consta que ele era poeta,
desses que escrevem novelas;
mas, à parte ser directa,
pouco mais se sabe dela.

"Quererá dançar comigo
a mais bela desta sala?",
ter-lhe-á proposto o atrevido,
que às vezes perde quem cala.

Logo a moça, gozo à flor
dos lábios, volve serena:
"Pudesse eu dizer, senhor,
o mesmo de si. Que pena..."

Pronto e sério, o poeta apara
o golpe e devolve a finta:
"Quando assim é, minha cara,
faça como eu faço: Minta!"

sábado, 13 de abril de 2013

.

Para quê desejares-me tanto mundo se já tanto dele me entregaste?

assim (2001)

o tiquetaque surdo sei-o de cor mas não é fácil
saber que o sei nem quando a noite me deixa só
não sou despertador a que dou corda
e me acorda
sou apenas o que me acorda

.


Tudo, sim. E, claro, também este exausto eco que me crê de mais.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

sonho

Bati à tua porta a noite inteira
e de manhã ma abriste; desconfiado,
lento, o passo indeciso, fui entrando;
instalei-me, puxei de uma cadeira,
sorri de me saber tão ao teu lado,
acordei entre beijos. Até quando?

quinta-feira, 11 de abril de 2013

poema de um homem morto (2011)

Acordo, ponho-me a pé
vai o dia noite ainda
e preparo dois cafés
a contar com a tua vinda.

É de há tanto o teu atraso
e este medo a que te atrases
que tudo o que sempre faço
vive da hora em que voltasses.

E esqueço que isto se acaba
na suspensão do teu corpo,
que já não bastam palavras
ao poema de um homem morto.

.

Nunca cheguei a pintar as paredes, não tenho candeeiros, o colchão está assente em caixas abarrotadas com livros inúteis, há quatro anos que tudo em redor acumula pó. É de assim que eu gosto. O meu rumo é o rumo das coisas.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

7. "Um Pinguim na Garagem" - a opinião de Cristina Alves

 
Foi um post em As Leituras do Corvo que me chamou à atenção para um livro, de autoria portuguesa, com a premissa “se um dia um de nós descobrisse que é o clone do próprio pai?”. Publicado pela Caminho, é um história de Ficção Científica disfarçada – um jovem descobre ser um clone do pai, facto que marca toda a sua existência.
Ainda que a história se centre na influência que poderá ter, no crescimento e desenvolvimento de uma pessoa, o facto de se ter sido clonado, muitos dos episódios resumem-se a algo que já hoje existe, a expectativa depositada pelos pais no rebento que pensam moldar à sua imagem. Independentemente da sua carga genética, cada indivíduo é um indivíduo, e se dois irmãos gémeos podem ser tão díspares quanto o azeite e a água, um clone, vivendo algumas décadas mais tarde, tendo como pais outras pessoas, será, com certeza um indivíduo distinto.
Assim se distingue luis, clone de luis, que veio ao mundo para contornar a esterilidade do casal, um rapaz fisicamente igual ao seu pai, de modos bem diferentes, de ideias ainda mais desiguais, que vive obcecado pela semelhança que observa no espelho todas as manhãs. Os mesmos olhos, as mesmas mãos em porte diferente que, ao lado da rigidez quase militar do pai, o faz sentir um falhado profissional e emocionalmente.
luis, divorciado, sobrevive num pequeno apartamento que ocupou com um casal de cães e que o ajudam a manter a lixeira que o rodeia.  É neste marasmo em que se encontra, que nos relata episódios de infância, as brincadeiras de escola, os amigos com os quais ainda mantém contacto: a ex-mulher e pedro. Inibido pelo criticismo do pai, o discurso de luis é uma eterna comparação, um rol de possibilidades não concretizadas, um questionamento constante em torno da divergência caracterizado por uma perspectiva depressiva tipicamente portuguesa.

projecto (2002)

Não sei porquê, pouco se fala nisso...
Morria o beijo em tua boca breve
quando fechaste os olhos ao perigo
e abandonaste a luta a quem se atreve.

Valeu a pena ter batido leve.
Agora sou o lobo em desatino,
o fiel aprendiz, o moço imberbe
que bebe em corpo de cadela em cio.

Vou ladrar-te ao ouvido o que te quis,
segredar-te que tens o que pediste,
jurar que nunca mais saio daqui.

Vou arranhar-te a alma, se ela existe,
ou, se não, construí-la de raiz,
vou tomar-te ao vazio de arma em riste.

terça-feira, 9 de abril de 2013

ao vento (1999)


folha ao vento ao vento ao vento
ao vento que em vento vais
invento que em vento vens
em venvais da minha vez

em venvais da minha vez
em meu sol de frenesi
folha ao vento ao vento ao vento
o que eu não faço por ti

o que eu não faço por ti
enquanto aqui me souber
neste ao vento ao vento ao vento
folha ao vento ao nosso vento

folha ao vento ao nosso vento
nós ao vento ai nós ao vento
a ver quem primeiro chega
quem primeiro ao fim do vento

quem primeiro ao fim do vento
de saber-te e me saberes
eu ao vento ao vento e tu
folha ao vento ao vento adeus

segunda-feira, 8 de abril de 2013

ciência maior

Sabia dessa facilidade
para empurrares o meu planeta
lento e pesado, com as suas tardes
aciduladas e alvas primevas;
centras o olhar e duas palavras,
esperas, sorris - e é quanto me basta.

.


Habitas-me.

domingo, 7 de abril de 2013

querida

faltou-me sempre saber de ti e demasiado foi o tempo
em que te inventei
às vezes receio que sejas de porcelana     eu bem sei
e outras vezes atento mais à menina do que à mulher
é como se quisesse juntar a pedaços do que vives
pedaços do que viveste e eu perdi
desculpa-me     dá-me tempo
deixa-me continuar a ouvir o teu sorriso
para te entender melhor


.

"Uns têm a mulher, mas não têm o desejo. Outros têm o desejo, mas não têm a mulher. Eu tenho o desejo e tenho a mulher. E o que é melhor: tenho a mulher que desejo." Sinceramente, não sei se li de alguém ou se inventei. Talvez um pouco de cada. Há vinte anos que faço a 'confissão' e hoje voltei a fazê-la por brincadeira, só porque sei que provoca sorrisos. É uma grande mentira, claro, porque a minha verdade começa e acaba na segunda frase. Nunca me passou pela cabeça ter alguém: mulher que eu ame, quero-a e desejo-a livre como o vento; mulher que eu ame não é minha, é comigo quando e se assim quiser.

sábado, 6 de abril de 2013

. (2011)


o mundo é melhor quando vejo o teu sorriso de mulher feliz
mas eu sou um homem rasteiro e as cotovias já não estão onde as deixaste

6. "Um Pinguim na Garagem" na Magnética

ACP in http://magneticamagazine.com/Outubro de 2009, p. 89

"Luís Caminha não é um autor muito conhecido em Portugal, o que lamentamos. Nasceu em Angola, viveu em Madrid e, mais recentemente, em Lisboa. Já quis ser psicólogo clínico antes de ter começado a estudar Química. É tradutor, revisor e escritor. Este é o seu primeiro romance, com uma estreia auspiciosa, que se lê num ápice. A conflituosa relação entre pai e mulher não é sufocante; os amores frustrados são facilmente reconhecíveis (ou vividos) pelo leitor, bem como as incertezas, os actos despropositados e as indefinições de identidade. Os conflitos e as preocupações de um dia-a-dia cosmopolita: o trânsito, os horários e o cansaço de Lisboa que amanhece, perdida entre o fumo do cigarro deste personagem viciante."

sexta-feira, 5 de abril de 2013

quadra 62

Chamo-te assim de querida,
com peito aberto e sincero,
porque és mulher, flor e vida,
e, claro, porque te quero.

és tu, mulher

atrás da porta     ao virar da esquina
na rua torta por trás da minha
és tu     mulher
ao fim da tarde      na alma de um livro
na pele do que há-de      em copo de vidro
és tu     mulher
neste poeirento poiso de cima
no vai de vento que ainda ontem vinha
és tu     mulher
sobre esta cama que me crê outro
e que me atraca ao cais do teu porto
és tu     mulher

quinta-feira, 4 de abril de 2013

reaferição (2011)

agora estou bastante mais calmo     mas a seguir ao ataque tive medo     imaginava que uma grande parte do meu coração estivesse morta para sempre
mas disseram-me que não é bem assim e que     se tiver cuidado     ainda posso viver uns dez a vinte anos

quando sair daqui     vou comprar um daqueles canais de cinema     sento-me no sofá e ponho-me a ver filmes românticos o dia inteiro     dizem que faz bem ao coração
também sou capaz de voltar a comer chocolate     tenho descurado o chocolate          há coisas na vida de que só me lembro quando se vão e outras de que só me lembro quando as reencontro      é o caso do chocolate


já da maria nunca me esqueço     que saudades da maria          se calhar também lhe telefono          ou não     se calhar ela não iria querer pôr-se ao meu lado no sofá a ver filmes românticos          nós passávamos os dias na horizontal     em forma e alagados em suor          não     não íamos habituar-nos a este problemazinho que agora tenho no coração     além disso ela já está bem acompanhada

o médico garantiu que isto não tem necessariamente de mudar a minha vida     dependerá de mim          vai poder continuar a dormir com mulheres     joão     mas     claro     uma de cada vez e durante menos tempo do que antes
dormir     perguntei muito sério          e ele sorriu     aproveitando para dizer que dormir dormir até pode ser mais do que antes     as maratonas     essas é que acabaram

disse-me também que os cães são boa ideia mas que     se calhar     era melhor eu ficar só com um          mas     doutor     não me disse que ainda tenho o coração todo?          ele não percebeu logo     fez uma pausa e avisou-me     todo mas um pouco mais fraquinho

se calhar     sendo assim     não vou viver os mais dez a vinte anos          os cães são velhinhos     bastar-me-ia morrer com eles          aliás     nem quero mais nada     até porque a maria     toda a gente sabe     anda toda maluquinha lá pelo inglês da pila grande     ou pela pila grande do inglês     ela não se alongou em explicações e as poucas em que se alongou não me faziam assim tanta falta

quanto ao vinho     ainda não falei disso com o médico     tenho um certo pudor     e acho que ele está de pé atrás com a minha veia etílica
mas sempre vou ouvindo dizer que ...

quarta-feira, 3 de abril de 2013

5. 2001-2010 (Miguel Real)

in Letras comvida, 2º semestre 2010 (pág. 18):
http://www.lusosofia.net/textos/20111102-revista_letras_comvida__n__mero_2___2___semestre_de_2010.pdf

«No campo do romance como arte, destacaram-se dez superiores revelações na primeira década [2001-2010] – Filomena Marona Beja, no campo do romance social (As Cidadãs, 1998, A Sopa, 2004, A Cova do Lagarto, 2007 e Bute Daí, Zé!, 2010), Gonçalo M. Tavares (mais de duas dezenas de títulos, coroados pelo notabilíssimo Viagem à Índia, 2010) na epistemologia filosófica racional aplicada à construção narrativa, José Luís Peixoto, autor da mais bela narrativa lírica da década (Nenhum Olhar, 2000) e de Livro (2010), romance-resumo dos diversos estilos da história da literatura portuguesa do século XX, Patrícia Portela, autora dos romances mais imaginosos e experimentais da década, Odília ou a História das Musas do Cérebro de Patrícia Portela (2007), e Para Cima e não para o Norte (2008), João Tordo (Hotel Memória, 2006, Três Vidas, 2008, e O Bom Verão, 2010), uma autêntica revelação na arte de contar história fundindo escrita jornalística e escrita estética, valter hugo mãe (o nosso reino, 2004, o remorso de baltazar serapião, 2006, o apocalipse dos trabalhadores, 2007, e a máquina de fazer espanhóis, 2010), Patrícia Reis (Amor em Segunda Mão, 2006, Morder-te o Coração, 2007, e sobretudo No Silêncio de Deus, 2008), Henrique Levy (O Cisne de África, 2009, Praia-Lisboa, 2010), Luís Caminha (Um Pinguim na Garagem, 2009) e Maria Antonieta Preto (Chovem Cabelos na Fotografia, 2004, e A Ressurreição da Água, 2009), indubitavelmente a nossa melhor contista, resgatadora das lendas de um Alentejo profundo.»

princípio de incerteza (2002)

de tanto madrugar-te
o viço na rosa
não mais consentir
que o fim da manhã:

     de espinhos colhida
     para água em que bebo
     já cadáver guardar-te
     com o jardim na memória

     e indignado de que a meu lado
     já não sejas a de outrora
     pôr-me a chorar de triste
     e deitar-te fora

haikai xviii


o teu nome:
semente de grito
no meu silêncio

do bem que te quis (1986)

Agora bebo muito
e enquanto é noite
escrevo cartas de amor
para as mulheres mais inacreditáveis
que possa inventar.
Depois deito-me a chorar,
gritando, às vezes
gargalhando,
entorpecido, sem sono
na cama solitária
onde morreste um dia
do bem que te quis.

beijo

baloiço de lua     tempo
das aves que arribaram
nas margens das minhas mãos

promessa de fruto vermelho
na criança dos meus brinquedos

cal das manhãs que a noite guarda

terça-feira, 2 de abril de 2013

a maria não me deixava fumar (1988)

Puxo distraído de um cigarro
e ajeito-o levemente
a um canto da boca.
Entretanto, nem reparo
que este movimento
rotineiro banalizado
é uma procura.
Acendo-o como quem não quer
nem aquilo nem coisa nenhuma
e arranco do tabaco consumido
o fumo que posso.
Retenho-o porque o amor
esteve em nossos corpos.

A Maria não me deixava fumar.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

haikai xvii


Um beijo nosso:
o meu corpo em cristais
da tua vida.

alma



Na verdade, tu és sempre assim:
alma dos meus rouxinóis;
se não fosses tão dentro de mim
eu diria que me dóis.

no reino da patarata (1987)

Parece que estou doente
no reino da patarata
e que a rapariga mente
quando à noite já está farta.
Ah! Porquê tanto alvoroço?,
esse olhar que compromete?
o riso de cão sem osso,
a companhia que é frete?
Por que me sinto leproso,
desvairado sem colete?,

vespa voejando um poço
que à sua sede promete?

Por que sinto estar doente
no reino da patarata
e que a rapariga mente
porque está farta e bem farta?

Desisto. Um raio que a parta!