domingo, 16 de novembro de 2014

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Por negligência ou para não estragarmos o nosso dia, optamos por não pensar no que que metemos à boca. Simplesmente não queremos saber.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

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Por estes dias é o aniversário de Kazuo Ishiguro, que escreveu dois dos mais belos livros que eu já li e que mais me influenciaram: "Os Despojos do Dia" e "Nunca Me Deixes". Um escritor enorme, que tem a capacidade, nada comum entre autores portugueses, de encontrar um narrador e não se intrometer nas suas opiniões.

10 "argumentos" a favor das touradas e o que a maior parte de nós pensa deles


1 - Se se abolissem as touradas, os touros bravos extinguir-se-iam.

1' - Sim, as touradas existem porque existem touros bravos. Mas não é verdade que estes tivessem de acabar se as touradas fossem abolidas: isso só aconteceria se os aficionados do espectáculo não fossem aficionados do animal. E se assim tivesse de ser, se na verdade não há amor ao animal mas apenas amor ao seu uso e aos maus-tratos que lhe são infligidos, talvez fosse preferível que ele deixasse de existir. Um animal quer-se livre: livre na vida e na morte.

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2 - As touradas não podem ser abolidas porque são uma tradição antiga.

2' - Uma tradição não justifica, por si, a sua prática. As tradições têm origem em tempos antigos, em que as sociedades e as mentalidades eram bastante diferentes das actuais. Mas as comunidades evoluem, aperfeiçoam a sua forma de viver e pensar. Por essa razão, a escravatura foi abolida e as mulheres podem votar. Também por essa razão, já não se sacrificam animais para obter a clemência ou os favores das entidades divinas. O respeito pelos animais faz, cada vez mais, parte do nosso modo de pensar. Ainda que nos esforcemos por esquecê-lo em favor das rotinas e facilidades quotidianas.

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3 - Temos de tolerar a opinião dos outros: quem não gosta de touradas deveria respeitar a opinião contrária.

3' - Não podemos confundir opinião com prática. Quem não gosta de touradas pode respeitar a opinião de quem gosta. Mas também tem o direito de criticar a prática que aquela opinião, por si só, não legitima.

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4 - Quem é contra as touradas, é-o por 'birra'. Muitas vezes não se preocupa sequer com outros actos reprováveis contra outros animais (humanos incluídos).

4' - O facto de se ser contra as touradas não impede que se seja contra todos os maus tratos a outros animais. Temos o direito de nos preocuparmos com tudo e, ao mesmo tempo, é impossível abordarmos tudo. No meu caso concreto, tenho a firme convicção de que a insensibilidade perante o sofrimento dos animais está na origem de muitos dos problemas da humanidade. E por dedicar mais da minha energia visível a defendê-los não quer dizer que não sofra com todas as injustiças que o homem também comete contra os seus semelhantes.

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5 - Se não gostas das touradas, tens bom remédio: não vejas.

5' - Ou, na sua variante mais virulenta, algo como isto que me disseram há tempos: "Não é um copinho-de-leite da cidade como tu que vai dizer o que um ribatejano pode ou não pode fazer." Vivemos num mundo que, pelo menos teoricamente, nos permite exprimir opiniões. Eu nunca vivi nos países em que se pratica a mutilação genital das mulheres, por exemplo, e não é por por ser um 'copinho-de-leite da cidade' (o que até nem é verdade) que vou abster-me de tomar posição.

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6 - Os touros são agressivos e devem ser lidados.

6' - Não faz sentido classificar o touro de 'agressivo' pelo seu comportamento na arena: são os instintos de sobrevivência e de autodefesa que o fazem investir. Ele não tem como escapar da situação em que o põem, atiçando-o, picando-o, ferindo-o, sangrando-o, rasgando-lhe os músculos e os tendões. Todos os animais lutam pela vida, atacando, fugindo ou evitando o confronto. Qual destas alternativas tem o touro metido numa arena?

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7 - O touro praticamente não sofre quando é lidado na arena.

7' - O touro tem sistema nervoso central como nós, e por isso, de certeza, sentirá dor, medo, ansiedade, desamparo. Mesmo que optemos por ser cegos ante os sinais de que o animal sofre, nunca poderíamos provar que não sofre. E, na ausência dessa prova, não deveríamos fazer nada que comprometesse o seu bem-estar.

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8 - A tauromaquia é uma arte e, como tal, tem de se manter.

8' - Mesmo que seja arte (será?), a arte não legitima o sofrimento físico e psicológico de um ser vivo. É difícil defender, hoje em dia, os circos romanos. E, no entanto, a luta entre gladiadores era considerada uma arte.

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9 - As touradas tornam o touro nobre.

9' - Nobreza é um conceito inventado pelos homens, o touro na arena apenas luta pela vida. Só isso, não há aqui nobreza nenhuma.

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10 - A luta pela abolição das touradas é uma campanha dos países ricos do norte da Europa contra os países pobres do sul da Europa.

10' - Também se poderia dizer, então, que a luta pelos direitos da mulher à igualdade é uma luta dos países da Europa contra os países africanos. De qualquer modo, basta investigar um pouco para perceber que sempre houve lutas internas contra as touradas e que os 'pobres de espírito' que agora se insurgem contra esta prática não são necessariamente influenciados pelos países mais ricos da Europa.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

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Primeiro de novembro de 2014, Brittany Maynard: escolheu morrer quando ainda era ela que podia fazer essa escolha.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

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De quanto tempo precisa o homem para reconhecer o que é óbvio! De quanto tempo para afastar um pouco a máscara dos seus interesses mesquinhos...

terça-feira, 28 de outubro de 2014

o valor da coisa


"[...] importa não esquecer que a Autora na data da operação já tinha 50 anos e dois filhos, isto é, uma idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens, importância essa que vai diminuindo à medida que a idade avança."

E, deste modo, após dezanove anos em tribunais, uma mulher viu reduzido o valor da indemnização que anteriormente lhe fora concedida por lhe ser impossível ter relações sexuais depois de operada. Os juízes, dois "machos" e uma "fêmea" com mais de 50 anos (as aspas percebem-se à luz do que opinam) parecem acreditar piamente que sexo sem procriação é coisa de somenos, ainda mais quando já se pariu duas vezes. Subentendido está que a importância é de somenos sobretudo para as mulheres.

Gostaria, posto isto, de perguntar-lhes se o sexo também é menos valioso para homens ou mulheres jovens mas estéreis. Ou para casais jovens que têm de recorrer a técnicas de fertilização que prescindem do sexo. Ou para quem tem o azar de preferir pessoas do mesmo sexo.

Suponho que os meritíssimos decidam com base na própria experiência, uma vez que não pode haver estudo sério que conclua o mesmo que eles. Talvez tenham perdido algum do gosto que tinham pela coisa (chamo-a assim a partir de agora porque, enfim, no limite tem tão pouca importância que nem merece ser nomeada)... Ou perderam-no todo... Terão banido, até, a coisa dos seus dias; ou, se não, reduziram bastante o  número de vezes em que a praticam. E, claro, quando se reduz a frequência de um acontecimento também se diminui a sua qualidade: há algo mais lógico? Claro que não, eles são juízes.

Já agora, também gostaria que os meritíssimos me informassem se a coisa vale menos nos meus 47 anos do que nos longínquos 20. Aconselhar-me-iam a dirigir-me a um médico da especialidade para saber quanto vale a minha coisa? Ou se acaso sofro de alguma patologia por ainda gostar muito da coisa? Já agora, como se quantifica o gosto pela coisa?

Meritíssimo juízes, a que indemnização eu teria direito se alguém me retirasse a coisa?

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

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Sonhei que os veterinários eram obrigados a jurar Hipócrates e que tinham sido abolidos os quingravecos.

domingo, 19 de outubro de 2014

a incomensurabilidade das vidas


Daniel Oliveira é o escandalizado interveniente do programa 'Eixo do Mal' que há dias descarregou a sua diarreia verbal sobre todos aqueles que defenderam Excalibur, o cão recentemente assassinado em Espanha.

Espanha tinha meios suficientes para ter posto o animal de quarentena e investigado a hipótese de ele ser portador do vírus ébola. Espanha também perdeu uma oportunidade de tentar perceber se o vírus se consegue alojar e desenvolver em cães e, desse modo, ser um potencial perigo para o homem. Mas Espanha preferiu matar o familiar de Javier e Teresa, casal que não precisava de maior sofrimento do que aquele por que já passa.

Eu costumava concordar com Daniel Oliveira noutras questões. E concordo. Só que o seu antropocentrismo/especismo já me levaram a retirar-lhe tempo de antena há uns tempos (sim, já teve outras intervenções do mesmo teor): não posso confiar em alguém que tem a atitude que ele tem para com os animais. Daniel Oliveira, o valor das vidas é incomensurável. E para mim, um tipo que põe o homem no centro de tudo e não tem respeito pela vida dos outros animais não é, simplesmente, um homem bom. Isso é coisa do século passado. O mundo evolui e, felizmente, as suas perplexidades são, cada vez mais, as perplexidades que trago de menino.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

o ataque dos países ricos


Muitos argumentos a favor das touradas assentam na importância das tradições e da tolerância para com a divergência de opiniões. Não resistem a um minuto de raciocínio, na medida em que os seus porta-vozes reduzem o respeito pelo mundo ao respeito pelas suas práticas e confundem liberdade de opiniões com liberdade de acções. Surpreende-me, no entanto, a quantidade de gente com influência que não se detém a contar dois dedos de testa.

Bem... na verdade, surpreende-me e não me surpreende... A vida tem-me ensinado que as pessoas raramente usam a razão de um modo imparcial: procuram os argumentos em defesa daquilo em que acreditam e não querem pensar, ou talvez nem possam, para descobrir aquilo em que devem acreditar.

Talvez eu faça o mesmo quando defendo o direito dos animais não humanos a viverem em paz e não terem de conviver com a insensibilidade dos homens. Sendo assim, tenho de saber qual é o meu ponto de partida, aquele que nunca mudarei. E é ele o de que o ser humano não é superior a nenhum outro animal só por ter maior aptidão para, usemos um eufemismo, dominar a natureza. Mas, ainda por trás deste, há outro: o de que todo o animal sofre quando é maltratado e pouco me importa a medida desse sofrimento, para mim é suficiente que sofra. E, ainda por trás deste: o de que, por definição, todo o animal existe e eu não tenho motivação, nem sobranceria nem crueldade suficientes para confinar e acabar com qualquer existência.

O "argumento" da moda utilizado pelos defensores das touradas é o de que todos estes ataques às touradas que se têm intensificado ultimamente fazem parte de um plano dos países ricos do norte da Europa contra os coitadinhos dos espanhóis e dos portugueses. E eu penso para comigo, encaminhado por aqueles pontos de partida: Ainda que seja verdade, isso que importa? Em Portugal não se criticam também os actos bárbaros cometidos noutros países? Benditos sejam se por eles se mudar alguma coisa do muito que por aqui anda mal.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

uma palavra tua, Francisco...


Papa Francisco,

Tendo a distrair-me e a julgar que o meu corpo é o centro de tudo e a espécie a que pertenço o centro do mundo. Mas, apesar de não frequentar a Igreja, os ensinamentos de Cristo têm sido uma das referências na minha luta diária contra esta tendência ego-antropo-cêntrica.

Infelizmente, tenho-me apercebido de que as pessoas "mais religiosas" do meu país estão entre as menos atentas à natureza. Em Portugal há, por exemplo, uma antiga ligação entre as touradas e a Igreja Católica e os maiores defensores desse "espectáculo" de tortura são católicos. Aqui, os principais ataques dirigidos aos defensores de animais são feitos por supostos católicos praticantes.

Ora, eu não creio que Cristo defendesse as torturas e, em geral, os maus-tratos infligidos aos animais nas áreas da diversão, da investigação e da indústria alimentar. Até porque é minha convicção de que no amor aos animais começa o amor à obra de Deus. Sei que no Antigo Testamento são comuns os sacrifícios a Deus; mas também tenho a ideia de que Cristo firmou um pacto novo entre Deus e os homens e que, há muito tempo, essas práticas bárbaras deixaram de fazer sentido. Estarei errado?

Tenho a certeza, pelo que vou seguindo do teu pontificado, que te empenhas em defender os que não têm voz. Então, diz-me, por que razão os fiéis continuam tão insensíveis ao sofrimento das outras espécies? Sobretudo gostaria de saber: será que uma palavra tua, criticando abertamente os maus-tratos aos animais e dando exemplos desses maus-tratos - será que uma palavra tua não os faria pensar melhor no que andam a fazer?

Um abraço do

luís

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Talisca, Mourinho, Jesus, Mourinho


Talisca, jogador do Benfica, marcou três golos fáceis em Setúbal e os deuses enlouqueceram. Lê-se no sítio d'A Bola:

1) 14.09, José Mourinho: «Dizem que Talisca é desconhecido, mas é tão desconhecido que só não está a jogar em Inglaterra porque não tem “work permit” (licença de trabalho). Se a tivesse, estaria cá. Havia muitas equipas inglesas, grandes e importantes, que o queriam.»

2) 15.09, Jorge Jesus: «... o Benfica mais uma vez demonstrou muita qualidade no que faz. Para mim, pelo jogos que o Talisca fez no Brasil, conheciam tanto o Talisca como eu conheço o d`Artagnan.»

3) 18.09, José Mourinho: «Parece que é íntimo com o D´Artagnan, ele anda a ler Dumas. Eu limito-me à minha identidade. Não leio Dumas. Tenho uma vida diferente, um nível cultural diferente, procuro educar-me e procuro um dia não ser acusado de andar aos pontapés ou de andar a agredir a pobre da gramática.»

Jesus é famoso pelas suas intervenções menos correctas. Mas, nesta troca de palavras, é Mourinho quem se espalha ao comprido com o seu donzinho de arrogância:

- depois de, em 1), ter esvaziado de mérito os que compraram o jogador (que, note-se, ainda não é um grande jogador só por ter apontado três golos num jogo);

- e depois de ter lido mal a afirmação 2), suavizada com um 'para mim', de um Jesus picado (para quem souber ler: do que Jesus afirma, apenas se pode depreender que conhece o nome d'Artagnan, não que o conhece e muito menos que lê Dumas; antes pelo contrário);

- Mourinho conclui em 3) que Jesus é "íntimo com" d'Artagnan e que se arma aos cucos a ler Dumas apesar de ser inculto!

Ó Mourinho, esperemos que limitares-te à tua identidade não implique torceres o que os outros dizem quando isso te dá jeito.  Toda a gente comete erros gramaticais quando se exprime oralmente, tu inclusive, mas talvez fosse boa ideia leres mais romances, Dumas incluído, para cometeres menos erros de interpretação. Além do mais, não se descortina que mal daí viria para a tua identidade.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

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"Hoje o me dever era cantar a pátria, alçar a bandeira, sair à praça [..] Mas tu faltas-me há tantos dias [...]  e estou que não posso dar outra batalha."

Silvio Rodríguez sempre foi um dos meus poetas preferidos e ao som do seu canto percorri boa parte da minha vida. Esta é uma das canções a que uso regressar e fico sempre sem palavras ante o engenho com que o amor a outra pessoa e o amor à liberdade de um país se entretecem neste modo tão conseguido.

Isto à parte discordar das posturas políticas do homem, acérrimo e acrítico fidelista. Mas a obra deixa de ser o homem quando passa a ser de todos.

sábado, 23 de agosto de 2014

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Sou daqueles a quem o Estado português carrega por tudo e por nada. Indignam-me, sobre todas as más canalizações do meu dinheiro, as que patrocinam torturas e assassínios. O Estado português não pode gastar dinheiro para patrocinar desumanidade.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

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Torturam um animal, assassinam-o a sangue frio, riem do triunfo sobre um inocente. Depois, à noitinha, têm o descanso do guerreiro junto dos seus. Pararam de aprender quando aprenderam a matar. Vida completa, a destes homens.

sábado, 2 de agosto de 2014

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A corrida de 28 de agosto no Campo Pequeno foi cancelada. Por falta de dinheiro e de público. Diria eu: por falta de dinheiro por falta de público.

Acredito que o respeito pelos animais faz parte da forma de pensar da nossa sociedade. Com o tempo, os mais distraídos também perceberão que as touradas não podem ser excepção e que representam um enorme desrespeito por todos os seres vivos nela envolvidos.

Tenho a certeza de que este cancelamento é mais um a caminho do cancelamento definitivo deste espectáculo bárbaro.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

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Ontem percebi, numa discussão com um defensor das touradas, que uma boa parte da nossa sociedade, pelo menos uma parte maior do que eu pensava, tem o homem como medida de tudo e a desculpa de tudo nas tradições.

Um homem que tem por chão o amor à vida e o respeito por todos os seres vivos não pode argumentar com outro que se desloca no chão acrítico das tradições e da prepotência de uma espécie sobre todas as outras. Os dois habitam casas diferentes e apenas se podem anunciar pelo disparo. Mas eu não sou atirador, hei-de continuar a viver onde vivo, com a indicação de quem sou e de portas abertas a quem quiser entrar.

A minha medida é a vida, o meu limite o sofrimento desnecessário. E cada vez vai cabendo mais nesse sofrimento desnecessário.

domingo, 9 de março de 2014

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

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A ONU acaba de pedir a Portugal que se afaste as crianças da violência das touradas. Talvez um dia seja possível a criminalização de todos os maus-tratos a animais (sejam eles touros, cavalos ou as próprias crianças que assistem a maus-tratos...). A proposta da ONU é pouco ambiciosa mas não podia ser mais: muitos adultos foram crianças que aprenderam a ter prazer na tortura de outros seres vivos. Há que mudar mentalidades e isso não se consegue com pressa. Mas também não se consegue com pausas.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

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Só vivemos enquanto nos aproximamos desse lugar de acesso impossível chamado utopia.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

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A esquerda e a direita são antropocêntricas. A primeira acredita na bondade dos homens e é mais humanitária do que a direita, é verdade, mas no modo como lidam com a natureza ambas são desumanas e sinónimas de exploração, matança, terrorismo, insensibilidade e destruição.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Ó Miguel, já não era sem tempo

Sempre gostei dos nacos de prosa de Miguel Esteves Cardoso e embora já quase não compre jornais nunca deixei de espreitar o que ele escreve e fica disponível no Público em rede. E até sorrio daquilo com que discordo. Como há tempos aqui pus, a respeito de uma perplexidade dele relacionada com a expressão "é conforme".

Há dias, uma sua interessante reflexão no Público (A Vida Agendada, 03.01.2014) recordou-me os encantos de escrever com caneta (embora, no meu caso, sempre tenha escrito muito mais rápido no teclado, fossem eles da máquina de escrever ou do pc). Mas o que me chamou mais a atenção foi o modo como acaba o último parágrafo: "Cada vez uso menos o telemóvel e cada vez me sinto mais livre e contente. E o meu mundo não só não desabou como melhorou qualitativamente. Já não era sem tempo. Que estranha frase esta última. Que quererá dizer?"

Não percebo onde está a estranheza da expressão 'Já não era sem tempo' (bem bonita, por sinal). Quer simplesmente dizer que... já não era sem tempo. Nem sequer é um caso de dupla negação, como em 'não há nada' (que costumo evitar escrever porque não gosto). 'Já não era sem tempo' é para ler literalmente. O 'não' nega tudo o que vem a seguir: 'Já não era sem tempo' = 'Já não (era sem tempo)' = 'já era com tempo' = 'já estava a demorar (a acontecer)'.

Como admirador que sou do MEC, estou a pensar ir ao lançamento do seu próximo livro e, entre um olá e o percurso da sua caneta numa dedicatória que eu lhe peça, dizer-lhe contente: "Parabéns, Miguel, por este novo livro. Já não era sem tempo'.