quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Soneto da São Silvestre de 2020



A trinta e um de dezembro apuro o ouvido
e afino a vista, já ninguém me tira
ser antónio, estou mais que decidido
a buscar em janeiro essa vampira
que me dessangre calma, generosa,
que, moribundo eu já, me parta os ossos
e me sugue o tutano enquanto goza
de uma vida escusada e sem remorsos.
Duas romãs, um par de diospiros,
pouco antes da tragédia talvez tente
duas léguas na estrada e com suspiros
na última são silvestre, é evidente.
De tudo isto a minha única mentira
há de ser em janeiro a tal vampira.


PS1: A São Silvestre, nesta década a minha primeira contra mim apenas, entretanto já se correu (Casarão-Dagorda-Peral-Casarão: 10 km, 48m56s. Não está mal, fiz o que pude sem ter quem puxasse por mim...)
PS2: Definitivamente, a partir de hoje digo diospiros e não dióspiros... Zeus não se importará.
PS3: Obrigado à bela romãzeira-diospireira, assim mesmo e não necessariamente plantada.
PS4: A vampira, ofereceram-ma certas passagens do enorme Romain Gary, em "A Promessa". Por exemplo: «Sempre sonhei ser arruinado moral, física e materialmente por uma mulher: deve ser maravilhoso, apesar de tudo, poder fazer alguma coisa de grande na vida" (p. 138, trad. Augusto Abelaira, Livros do Brasil, 2019).

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXVI

Algo me diz que vislumbras
a tristeza que me habita.
Imagino-te às vezes noite e sono,
espera e sonho lutando por mim
ou por tudo o que um dia prometi.
Mas já não sou promissor, basta seres
mais decidida para o entenderes.
Antes disso e se puderes
deixa uma garrafa cheia
no lugar da vazia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXV


Serei velho adolescente, derradeiro
canto de cisne
 enquanto me deres
dois ou três segundos de tontura
na tua atenção.
Mas que isso te não ocupe: incrédulo
de seres todas as mulheres,
nunca serei o homem que não queres.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

quadra 79


Toda a noite o meu outono
geme e tirita de inverno
que toda a noite sem sono
ardo e crepito no inferno.

quadra 78

Como conciliar o sono
se neste frio de inverno
em dias de ainda outono
também arde o meu inferno?

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXIV


Confunde-me essa tua busca exaustiva das simetrias.
Acreditas mesmo nelas?
Pondo que existem, passa-te ao lado
o encanto dos breves e ligeiros desencontros,
o sorriso com que chegas, o chapéu com que partes?
E nós? Preferes ignorar ao espelho
a longa e completa assimetria
do nosso rasto, da nossa alma?