sábado, 23 de janeiro de 2021

um destino prometido


Naquela que Romain Gary dizia ser a primeira das autobiografias que escreveu, La promesse de l'aube,  é-nos contada a sua vida desde a infância, na Polónia, até o final da Segunda Guerra Mundial. Judeu russo nascido em Vilnius, marca a sua escrita uma capacidade incomum para expor sem pejo nem rebuço todas as ânsias que o impeliram desde criança.

Um profundo e correspondido amor o une à mãe, ex-actriz que não se poupa a esforços para dar ao filho a oportunidade de ele cumprir um destino importante. Um destino que para ela é inevitável e de que todos os actos do jovem são uma promessa. Assim, sem pausa o incentiva a fazer o que é preciso para ser grande: um grande escritor, um grande embaixador, um grande artista, um grande homem. Sem pausa o defende de tudo e de todos. Sem pausa mostra ao mundo que o filho é diferente. Quanto a ele, por amá-la ao ponto de não querer desiludi-la nem nas suas expectativas mais megalómanas, desde cedo torna seu o sonho de satisfazer os sonhos da mãe.

Mesmo depois de morrer, essa mulher forte e capaz de tudo para amparar o filho continuará a ser a bússola no percurso deste, um percurso pautado pelo fino sentido de humor dos que são capazes de rir de si próprios, por um desconcertante à-vontade para confessar os actos mais insensatos e por uma assombrosa incapacidade para desesperar.

A Promessa
Romain Gary
Livros do Brasil, 2019
Ed. original: La promesse de l'aube (1960)
Trad.: Augusto Abelaira (cap. XXII: Manuel Reis)
Rev.: Susana Baeta

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

quadra 84


Adiar parcas e demos
mais do que nunca é preciso.
Mas como, se nós não temos
nem um pouco de juízo?

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

quadra 83


Só hoje, que isso faz parte
deste invulgar mundo adiado,
eu percebo que beijar-te
já é coisa do passado.

sábado, 16 de janeiro de 2021

soneto sem futuro


Dizem com todo o aparato
que viver é homicídio
e eu dou, tíbio, de barato
que urge agora o suicídio.

Dizem «mete-te no quarto,
adia esse suicídio»
e eu, mais que farto, refarto,
solto o meu riso covídeo.

Dizem «não faças teatro
com esse teu riso covídeo»
e eu, finalmente sensato,
desenvolvo o amoricídio.

Dizem «é só uma fase».
Que importa agora? Sou quase.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

quadra 82


Dizem «mete-te no quarto,
adia um pouco o suicídio»
e eu, mais que farto, refarto,
solto o meu riso covídeo.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Esperança e Amor


Enforquei minha Esperança,
mas Amor foi tão madraço
que lhe cortou o baraço. (CAMÕES)

Lembro-me bem de Esperança
ao colo embalando Amor
e este dizendo, em voz mansa,
«aceito seja o que for».
Cadáver já, bolorenta,
enforcada em triunfo escasso,
ainda hoje Esperança inventa
para Amor no seu regaço:
só por ela ainda Amor tenta
depois que se fez madraço.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O maior defeito de Belisa


Mil defeitos tem Belisa,
à parte o maior defeito:
o de ainda ser amiga
deste palerma perfeito.

Quem a entenda, quem a estude
há de atentar no conceito
de nunca a muita virtude
casar com o pouco defeito,
pois, de uma forma imprecisa,
mil defeitos tem Belisa.

À parte um, que é mais pecado,
todos há que perdoar-lhe,
que amar tanto ou demasiado
nunca foi mero detalhe:
brilhe, pois, o que é perfeito
à parte o maior defeito.

Não pode é passar em claro
aquele que tanto a apouca,
há que fazer-lhe o reparo,
há que dizer-lhe que é louca
por que entre vícios persiga
o de ainda ser amiga...

Amiga de quem na vida
nunca soube ser amigo,
amiga comprometida
de quem vê nisso perigo,
amiga inteira e a preceito
deste palerma perfeito.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

quadra 81



Mil defeitos tem Belisa
além do maior defeito:
o de ainda ser amiga
deste palerma perfeito.

domingo, 3 de janeiro de 2021

quadra 80

Eu isto, eu aquilo, o meu
percurso, esta minha vida,
foi assim que aconteceu
em mim outra alma perdida.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Soneto do maior erro



São vidas a vida, o tempo
baralha, parte e reparte
aquilo que cá por dentro
se assemelha a um só combate.
O problema de lembrar-te
e lembrar-me como lembro
é sempre o de esconder a arte
com que invento, se me invento.
Falta-me, pois, fantasia,
ponho em tudo igual momento,
pouco estudo e nada aprendo
se me sou tão demasia,
se juro nós e o que fomos
para essência do que somos.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

inventário


Rezingão, amuado, mau,
rancoroso, solitário,
burro, palerma, calhau,
trol sem alma nem horário.

Desistente, preguiçoso,
infeliz, desamorado,
monstro, zombie, e é forçoso
que de sonhos dispensado.

Se tenho de falar mal,
falo de mim. Só faltou
na lista atrás que afinal
escrevo melhor do que sou.