sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Soneto desgovernado


Se exausto um dia o futuro
atirasse ao lixo o enredo
e desistindo de tudo
desistisse deste azedo,
se de esperanças e apuros
se deixasse tarde ou cedo
displicente face ao furto
por ontem deste brinquedo,
se atribuísse ao céu escuro
a persistência do albedo
e compreendesse quão curto
inventa amor, quão veneno,
se exausto um dia o futuro
quisessse ser desgoverno...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

perspectiva da alma (Mario Benedetti)


Meu irmão corpo     estás cansado
do cérebro à misericórdia
do paladar ao vale do desejo

quando me dizes     alma ajuda-me
a minha comoção visita a angústia
e até o próprio ar é vulnerável

meu irmão corpo     no trabalho pões
músculo e estômago     também os nervos
rins e brônquios     também o diafragma

quando me dizes     alma ajuda-me
sei que estás condenado     que és matéria
e a matéria é propensa a desfiar-se

meu irmão corpo     sei-te bem
fui hóspede e anfitriã das tuas dores
rampa modesta do teu sexo ávido

quando me pedes     alma ajuda-me
sinto que o frio me rebaixa
que magia e doçura se me vão

meu irmão corpo     tu és tão fugaz
conjuntural efémero brevíssimo
imóvel por efeito de um arquejo

e eu que tenho por uso ser a vida
acabarei estreitando os teus ossinhos
alma incompleta sem as tuas vísceras

                                                            Para Qh,
                                                            traição a 'Desde el alma' (Mario Benedetti),
                                                            Casarão e 2021, 11 de janeiro
                                                            

o silêncio do mar (Mario Benedetti)

O silêncio do mar
brama um juízo infinito,
mais concentrado que o de um cântaro,
mais implacável que duas gotas

quer aproxime o horizonte quer nos entregue
a morte azul das medusas
as nossas suspeitas não o deixam

o mar escuta como um surdo
é insensível como um deus
e sobrevive aos sobreviventes

Nunca saberei o que dele espero
nem o conjuro que deixa nos meus artelhos
mas quando estes olhos se cansam de ladrilhos
e esperam entre a planície e as colinas
ou em ruas que se fecham sobre mais ruas
então, sim, náufrago me sinto e só o mar
pode salvar-me

                                                            Para Qh.,
                                                            traição a 'El silencio del mar' 
                                                            (Mario Benedetti), 
                                                            Casarão e 2021, 11 de janeiro

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

soneto ancestral


um vórtice de febre me devora
às vezes     um imenso mar de cinza
que esbate os tímpanos     que grita ao rasto
da minha pele entre algas de silêncio

uma náusea inquieta que me afunda
um dilúvio de plástico e alcatrão
que as fronteiras desfaz     que cega as vozes
na densidade destes peixes podres

sorri-me     então     um vago tiritar
um saber e de cór as cefaleias
da côr     essas que esgueiram em camisa
por entre as horas     os invernos todos

quando assim acontece     tudo é dentro
e quando não     é porque tudo é fora

                                     Lisboa, 17.09.2010

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

intermezzo osculatório


O averiguador consultava a ocorrência num papel. Responda-me só a uma coisa, senhor...

Pergunte, respondeu o senhor, sem se incomodar com as reticências.

Vejo que está calmo. Não se preocupa?

Com quê?

Com o que pode vir a acontecer-lhe. Sobretudo, com o que pode vir a acontecer à sua mulher.

Bastante.

Não parece. Talvez não saiba que pode ter de cá passar esta noite. Esta e outras... Que pensa disso?

É como disse. Preocupo-me.

Sim, claro. Preocupa-se. Já agora, pode explicar-me melhor com quê?

Com tudo. Com o que possa ter feito. Com o que os outros possam pensar de mim. Sobretudo, com a passagem do tempo.

O averiguador não queria acreditar. O meu amigo não pode dizer isso. É óbvio que não se preocupa. Está a esquecer-se da razão por que devia preocupar-se a sério.

Beijei a minha mulher, não é?

Ó meu amigo, beijou-a quando ela estava desprevenida e beijou-a à moda antiga. Sem um contrato prévio e sem máscara osculatória. É óbvio que não se preocupa com a opinião dos outros. É ainda mais óbvio que não se preocupa com a saúde dela. E, claro, não se preocupa nada com a lei.

Se eu lhe disser que provavelmente estava a dormir? Que estava no meio de um sonho quando o fiz?

Dormia, pois então. Acordemos em que dormia. Mas o que fez ao certo, enquanto dormia?

Aproximei-me dela, está visto. Só isso.

Só isso? Só isso seria muito. Mas parece-me que não foi só isso, pois não?

Recordo-me de que ela acordou aos gritos.

E de que se recorda mais quando ela acordou aos gritos?

Os meus lábios confundiam-se com os dela. Mas num primeiro instante...

A frase ficou presa porque nos lábios do averiguador se desenhou uma breve mas indesmentível onda de repulsa, que tentou disfarçar com um incentivo a que o outro continuasse. Num primeiro instante?

Num primeiro instante, os lábios dela pareciam dançar com os meus. Senti como antigamente a humidade da sua boca, o veludo da sua língua. No princípio estranhei. Éramos de novo aprendizes. Não beijávamos há... Não nos beijávamos desde a proibição.

À palavra proibição, sem espera nem disfarce, o averiguador olhou para o averiguado com o sorriso largo de quem obtinha por fim o que desejava. A sua mulher está em choque pelo crime cometido.

Mas ela parecia corresponder.

Ela estava a dormir. De qualquer modo...

De qualquer modo parecia corresponder.

Não é essa a informação que temos. A sua mulher não concordou com o beijo. Acordou aos gritos, apresentou queixa de imediato e a informação que tenho do centro de quarentena é de que vive em sobressalto com receio de estar contaminada. Não está arrependido?

O averiguado soltou um suspiro e, pela primeira vez, pareceu reconhecer o seu erro. É a minha mulher. Estávamos a sonhar.

Isso para mim são pormenores que só no julgamento serão tidos em conta. O que eu sei e o que apenas me interessa é que a beijou sem o seu consentimento, o que significa que ela é vítima de um crime e não cúmplice, como tem querido fazer-me crer.

Crime...

Sim. Há mais de uma década que os beijos estão proibidos e há mais de meia que foi agravada a moldura penal para quem os dá. Existem, como sabe, certos procedimentos obrigatórios para quem opta por gestos afectuosos. No mínimo são necessários um contrato escrito entre os osculantes e o uso de máscaras osculatórias por ambos.

Eu sei, mas...

Mas estava a dormir.

O averiguado baixou a cabeça e desistiu da defesa. Talvez não estivesse.

Aliviado, o averiguador deixou que um silêncio crescesse sobre as lágrimas que começavam a escorrer no rosto do outro. Vamos, não esteja assim. Toda a gente comete erros. O passo principal já foi dado ao reconhecer o crime. Agora é pagar por ele e seguir em frente. Retocou a máscara para se certificar de que estava bem colada ao nariz, levantou-se e mandou vir o carcereiro. Passa cá a noite e amanhã é apresentado ao juiz.

Já se faziam choro largo as lágrimas do criminoso. Enquanto o carcereiro o encaminhava para a cela, apenas pôde pronunciar, entre soluços, Por favor, avisem a minha mulher...


in Saúde Ambiental - Caderno de notas soltasEds.: Ricardo R. Santos, Osvaldo Santos e António Vaz Carneiro (ISAMB - Instituto de Saúde Ambiental)