domingo, 29 de dezembro de 2019

primeiro café da tarde XIII

Para a Rayen
(Los Andes, Chile, 2002 - Oeiras, Portugal, 20.xii.2019)


Venho reaprendendo o uso do tempo
desde a tua partida, os meus olhos
ainda reféns dos teus havia muito enevoados.
Surpreso sempre nos vaivéns da espera,
a tua respiração continuará a ser
durante meses a minha rotina.
Talvez um dia destes consiga
reabitar a cama de que me achavas dono,
essa cama que quiseste partilhar comigo
durante um par de noites antes do princípio do fim.
Não tem sido fácil tudo isto sem ti,
meu tranquilo amor chileno,
à minha demanda tem-lhe faltado
a incrível precisão da tua bússola.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

primeiro café da tarde XII


Enquanto ignorei a inoportuna impossibilidade
de todos os meus descaboucados futuros,
nenhuma luz me cegou, em nenhuma fogueira ardi,
na tua existência se ia construindo a casa.

Às vezes penso como seria essa casa.
Não a casa casa, claro, mas a casa um tecto e tanto faz quantas paredes
empoeirados pelos pedaços desatentos da minha indolência,
cimentados pela inevitável busca da tua vontade.

Todos os dias eu experimentaria os sonhos que medisses
para ti e para nós, mesmo quando estivesse doente, até mesmo
quando tentasses o amor com os teus magoados apodos
ante a instalação paulatina da minha fácil rotina.

Não sabes disso, como poderias saber?, mas durante grande parte
da minha última vida fui guardião corajoso do sol das manhãs.
Antes da me extinguir tive a longa expectativa de à noite
nos derramar no teu regresso. Paulatino e sábio porque era tudo meu.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Canto do meu cisne

Imagem Wikipedia













A verdade é que depois
de nós tudo se repete
e sigo menos que dois
na modorra deste frete.

Estou velho como fui novo,
sem esperas nem desencanto,
perder-te nunca foi estorvo
do que vivi entretanto.

Mas gosto ainda de exibir-te
por entre as folhas de outono:
és o canto do meu cisne
mesmo quando te abandono.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

quadra 65


Tem calma, senta-te e pensa,
sempre estiveste em bom porto:
no fundo, é pouca a diferença
entre ir vivendo e estar morto.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

primeiro café da tarde XI


Eritemas a espera,
buscas álacres o prurido,
talvez um bicho tivesse
rastejado a noite inteira
esta preguiça,
talvez um bicho em busca
do melhor compasso
para o delírio.
Sem talvez é evidente
que o bicho eras tu.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

SONETO DEL HOMBRE SORPRESO


Me gusta tu manera inteligente
de buscar poco a poco lo que pienso
con hechizos y trampas que suspenso
me retienen en ti ahora y siempre.

Me gusta en nuestra casa tu caliente
mirada que es hogar, me gusta el viento
de tu habla que a veces no comprendo
cuando te enteras que la vida miente.

Si te abrazo me gusta, si te beso,
si tu cuerpo se va hacía el mio,
si parece que quieres como quiero.

Tu tan mujer, yo hombre tan sorpreso,
me gusta si en verano tengo frío
y mi amor es todo el amor que espero.


Lisboa y 1983

sábado, 9 de novembro de 2019

primeiro café da tarde XIV


Grande e pontual é o meu cuidado
na dissecção do nosso cadáver,
durante a lua toda, todas as noites,
com o deciso escalpelo do futuro antigo.
Ignoro outra maneira de sobrevoar a morte,
outra arte mais justa que a deste delongado corte
com que busco a madrugada.
Prenúncio de luz para lançar a espera,
é ela, a madrugada,
a terra sempre fértil do que me deixaste.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Hoje Adrianus fica em casa


Van Gogh, Worn Out (At Eternity's Gate)
Imagem Wikipedia
À lareira, Adrianus espera
nessa paz de quem tem fé,
sem chorar o jovem que era
nem lembrar o velho que é.

O final já não o aterra
(na verdade é sonho até),
que foi larga a sua guerra
e entre apuros feita a pé.

No limiar da eternidade,
espera a noite em fim de tarde,
na alma um Deus de almas serenas.

Não se adianta nem se atrasa:
hoje Adrianus fica em casa,
hoje Adrianus espera apenas.

agua selenita


Ayer viajé a la Luna por el agua que te gusta. Me dijeron en todos los mercados que ahora su venta es prohibida a extranjeros, que solo la pueden comprar los selenitas. Sin embargo, hubo un selenita que me prometió una botella. Una sola, por un precio que casi no puedo.

Mañana es tu cumpleaños y me iré a buscarla. Quizás sea mi ultimo viaje, cariño. Poco a poco se van acabando nuestros intereses fuera de Marte.

domingo, 3 de novembro de 2019

primeiro café da tarde IX


Cansado de estar nada e ser ébrio,
deste nós antigo aos gritos na praça,
de mim nas madrugadas quando o teu rosto é sério,
dos nossos papéis serôdios em peça inacabada,
de que a minha vida seja uma pausa na tua
e a tua na minha o que se adivinha,
de ter perdido o meu catre no fim da rua,
de ter falhado e por isso viajar de lado.
Cansado de um nunca estar que é estar sempre ébrio,
deste choro a vendaval no trânsito da espera,
de ser nada, deste quotidiano tédio
por ter sido o que fui quando fui o que era.


sexta-feira, 1 de novembro de 2019

SONETO DA CONSTRUTORA DO MEU PASSADO

Imagem Photosearch

Não consigo inibir-me de um sorriso
no momento em que dizes, rapariga,
que a nossa história foi bem sucedida,
que não há que chorar qualquer prejuízo.

Agarras-me na mão com um suspiro,
pões o teu ar mais sério e rejubilas,
«Eu sempre fui, Antóneo, tua amiga,
tu foste sempre, Antóneo, meu amigo.»

E atestas esse invento e bom prenúncio
com uma lista de episódios nossos
que são notáveis mas que não recordo.

Até na despedida investes fundo
nesse modo sincero e despojado
com que vais construindo o meu passado.

soneto pubentíssimo II

Botticelli: O nascimento de Vénus 
Ontem ainda
estavas aqui,
linda, tão linda,
ao pé de mim.

Mas na ânsia infinda
cheio de ti,
não entendi
que a noite finda.

Agora, só,
choro a lembrança,
crio a ilusão.

E tenho dó
da sem-razão
que é ter esperança.

                                                                                         1978*


*Agora que chamo sonetos a sonetilhos e quejandos, este é de facto o mais antigo dos meus sonetos sobreviventes. Tinha eu 10 ou 11 anos e acabava de conhecer Afrodite num livro de História comprado a alfarrabista. Entretanto, a palavra 'linda', da primeira quadra, foi caindo bastante no meu dicionário literário. A segunda quadra sofreu um pequeno ajuste pouco depois e já não me recordo daquela que a antecedeu. Quanto aos tercetos, torço o nariz à rima pobre, de que hoje fujo a sete pés. A mantê-la, a última estrofe merecia um bom retoque. Mas para que há de um homem com mais de meio século alterar os sonhos da criança que foi?

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

tantas musas e uma só

Ao poeta Jorge Fortes, no seu natalício


Já não sei eu quanto ocupa
o amplo harém das minhas musas,
rumando ao céu e sem culpa,
galgando por sobre a turba
enjoada de almas obtusas.

Fi-lo de pedras e plantas
ontem roubadas aos livros,
retiro e alma das calhandras 
tecto e paz dos pintassilgos,
e à espera em cada janela
sopra sempre o canto d'ELA.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

primeiro café da tarde VIII


Sou escultor e estou com a mosca. Talvez por isso
ao nascer do sol me ponha a enxotar poemas.
A verdade é que estou pelos cabelos
de trabalhar as tuas mãos.
E depois não é só.
Durante a noite inteira me acorrentaste
ao chão da cama com três fumos travessos,
e o fumo do meio trazia a loucura de um diastema.
Chegaste mesmo a sussurrar, num canto da nossa pele,
antóneo, estou afeita a ter-te
de soslaio.
Ah, ingrata!, estou exausto, pelos cabelos
de trabalhar as tuas mãos,
tão pelos cabelos que os olhos
nem são o mais impotente
dos meus modos,
tão exausto que não dares por nada
tem sido o corpo que damos
ao nosso nome.
Sim, estou exausto, demissionário, pelos cabelos,
estou por estes dias um poeta morrendo
de trabalhar as tuas mãos.

sábado, 26 de outubro de 2019

SONETO DO MEU FANTASMA EGOÍSTA


Tenho uma foto de quando
eras tu quase menina,
ao meu lado caminhando
com essa pose magrebina.

E há um fantasma nefando

nessa foto clandestina
ansioso de que, chorando,
lhe incendeies a rotina.
Um fantasma nesse dia
que por vãos de pesadelo
se alenta em chama tardia.

Um fantasma que imagina

oportuno o seu desvelo,
eras tu quase menina.

terça-feira, 8 de outubro de 2019

primeiro café da tarde VII


Em que linha dessa vossa leitura da vida se deu
a abrupta descoberta de que éramos quincalha?
Imagino que logo ali nalguma do proémio, não é?,
entre aquelas de que por berço nos sobrevoais.

E, no entanto, o vosso viés é largo e a crença demasiada.
Um dia destes, se quiserdes,
encontramo-nos num dos nossos dois ou três sonhos
junto às madrugadas de sexta-feira.
Apesar de breves, são densos como o chumbo.
Ou, para sermos precisos,
como o ouro a sério.

Qual quincalha, qual quê.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

primeiro café da tarde VI


O mapa antecipava menos inóspita
a nossa vereda vicinal
mas o pior no seu trânsito tem sido
este hábito de a percorrermos sem guardas
contra zoeiras e aguilhões.

Se o ardor nos endomingou,
e isso deveria ter sido evitado,
a complicação maior é, no entanto,
quem bate à porta do outro já o fazer exausto
e descobrindo-se iluso.
Perene se foi fazendo o desencontro
das nossas febres terçãs.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

.

Todas as religiões monoteístas têm um princípio incompatível com a minha religião: o homem como ser privilegiado.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

SONETO DOS TRANSPARENTES

Imagem Wikipedia















O cão que toda a vida acorrentado,
a rosa que hoje à noite assassinada,
a pomba moribunda que na estrada,
o deus que sem futuro nem passado,

o grito súbito que desprezado,
a mão que de verdugos decepada,
a lágrima que a meio da piada,
o verso que na estrofe sem cuidado,

a vítima que há muito amortalhada,
o beijo que dos beijos desgastado,
a cabeça que à espera de almofada,
o ex-abrigo que em ruínas ao meu lado,

este homem de ambições que desde sempre
tem sido aos vossos olhos transparente.

                                                  Leceia e 2015

sábado, 17 de agosto de 2019

SONETO DO CÃO ACORRENTADO

Imagem Canal Ciências Criminais











Black arrasta a corrente à procura de um naco
de céu caído. Em vão. Apenas morde,
neste tão derradeiro ano disto que é morte,
os repisados vãos do seu metro quadrado.

Passa os dias assim apesar de cansado
de outros dias assim apesar da má sorte
que lhe impõe a renúncia apesar do transporte
aos cuidados da mãe apesar de passados.

Um minuto à tardinha, o carcereiro vem
renovar a ração, saber da água também,
tratar da merda no ar que chateia o vizinho.

Black quer-lhe bem. Pele e osso, a cabeça vergada,
fica a vê-lo partir e nunca pede nada,
aprisionado já no seu próprio latido.

                                                                  Leceia e 2015

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

SONETO DA VELHA TENTAÇÃO


van Gogh,Kop van een skelet met
brandende sigaret

Retirou desinquieto
o que tinha na algibeira,
pendurou a corda ao tecto,
pôs-se em cima da cadeira.

Tinha aquilo todo o aspecto
de tolice passageira
e, no entanto, circunspecto,
avançou com a brincadeira.

Desde então, de olhar vazio
no meu passo de inseguro,
tem-me feito o desafio
de acabar com o futuro.

Desde então, a minha vida
é viver a minha vida.

                         Leceia e 2014*

*as duas primeiras estrofes,
pouco menos velhas do que eu.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

SONETO PUBENTÍSSIMO

J.-J.-F. Le Barbier,
Cupido numa Árvore (1795-1805)
Quando na praia as ondas se perdiam
de encontro às rochas ou beijando a areia
e enfim ao astro ardente sucediam
os encantos da noite e a lua cheia,

oh quantas vezes houve que se ouviam
ao longe, ao longe, em som de melopeia,
tão sentidas canções que pareciam
de deusa, de nereida ou de sereia.

E embora em tua voz não encontrasse
timbre que fosse assim dulcissonante
nem conseguisse ver em tua face

a beleza, o candor desconcertante
que naquelas acaso imaginasse,
não há ninguém que como tu me encante.

Lisboa, 1980 *

O mais antigo dos sonetos sobreviventes.

SONETO DA CONFERÊNCIA DOS PARDAIS

Distribuição do Passer domesticus
Wikipedia













Agora que o verão aquece mais
e eu passo a noite de janela aberta,
às cinco e muito pouco me desperta
a longa conferência dos pardais.

Ao coro dos meus dias sempre iguais
esse coro se junta. E bem alerta,
olhos no tecto, escuto à descoberta
de mundos que não vêm nos jornais:

feitura dos ninhos ainda ignora
qualquer licença. A ocupação veloz
sucede sem aviso de última hora.

Cada ramo é futuro de uma voz.
E de sono e alva se constrói a aurora,
apesar de ontem, apesar de nós.

                                          Lisboa e 2011

terça-feira, 13 de agosto de 2019

SONETO DO ESCRITOR MENOR

van Gogh, O par de sapatos
(1886)
Dou três explicações, bastam-me três,
para o baldão que foi a minha vida,
e não ponho de parte que talvez
concorram todas em igual medida.

A tunda no toutiço, vez traz vez,
pela mínima falta cometida;
os piolhos de que a casa se desfez
afogando-me em spray insecticida;

e o ter nascido no lugar errado
um século depois da época certa:
tudo se conjurou neste meu estado.

Nunca tentei sequer saber de cór
o momento do rogo, a hora da oferta
que dissimulam um escritor menor.

                                                                                                            Leceia e 1016

domingo, 11 de agosto de 2019

SONETO DO POETA EM BANHO-MARIA

Jacob Peter Gowy (1635-37)
The Flight of Icarus

Talvez nunca de vós fosse entendida
a extensão da fogueira que, secreta,
me devorava quando fui poeta,
quando, poeta, eu devorava a vida.

A rara obstinação que da partida
supostamente falsa até a meta
me dirigia o voo em linha recta,
talvez nunca de vós fosse entendida.

Nunca de vós o extinto ruflo dessa
minha asa espatifada em céu rasante,
fatal desastre para quem duvida.

Nunca de vós o ocaso da promessa,
qual a lasciva chama que ofegante
falece na matéria consumida.

                                                                                                 Leceia e 2016

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

SONETO DOS JOVENS RETÓRICOS

Lecomte du Nouÿ,
«Démosthène s'exerçant
à la parole» (1870)

Parecia haver sempre uma palavra
com o peso certo, fosse clandestina
no relato ordinário da rotina,
fosse remanso em estrépito de aldraba.

Éramos jovens, pouco se nos dava
com que régua o futuro se media
e ainda menos quão válida e precisa
era a sua leitura, quão exacta.

Para sermos sinceros, e apesar
de não o termos querido confessar,
nunca a verdade foi a nossa presa.

Mesmo hoje que o silêncio nos contém,
indústrias há que nos parecem bem
apenas pelo efeito da surpresa.

Leceia e 2016

sábado, 3 de agosto de 2019

SONETO DE FACTO

De facto, o giradiscos ainda risca
os cansados vinis de Jacques  Brel
e no cinzeiro jaz a última prisca
com o carmesim do teu adeus cruel.

De facto, a Lady continua arisca:
quando tento fazer o teu papel
sem ronrons me gadanha e segue à risca
a intolerância com que te é fiel.

De facto, como tu me prometias,
enche cada escaninho dos meus dias
a memória do dia em que partiste.

De facto, hoje como ontem ao teu lado
cumpro a pena de um homem condenado
a esta triste alegria de ser triste.

                                                                                         Leceia e 2015 / Lisboa e 1993

domingo, 28 de julho de 2019

SONETO DO CHICORONHO

Cristo-Rei Lubango
Imagem Wikipedia
O puto chicoronho - eu já nem sei
o tempo há que isso foi. Sei todavia
do seu costume em acabar o dia
com dois paus imitando o Cristo-Rei.

Descalço no quintal, junto à capoeira,
alheio sempre à chuva e à cacimba,
com um fio os malcruza, o fio ainda
que usa para ordenar a vida inteira.

Pudesse ver-me quem pudesse vê-lo:
mora já o doutor da mula ruça
nesse canhestro ruço de mau pêlo
que sobre o seu brinquedo se debruça.

Resumir-me-á quem me quiser num esboço:
«Ó homem, tu foi tudo a traço grosso.»

                                                                                                            Leceia e 2017

sexta-feira, 26 de julho de 2019

primeiro café da tarde X


Grande e pontual é o cuidado
com que disseco os cadáveres da vida,
durante a lua toda, todas as noites,
com o deciso bisturi do teu não.
Ignoro outra maneira de sobrevoar a morte,
outra arte mais justa que a deste delongado corte
com que busco a madrugada,
esse prenúncio de luz para lançar a espera
à terra sempre fértil da partida.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

fingimento XXIX


Se eu fosse jovem... Melhor:
se eu fosse um pouco mais jovem
e te soubesse de cór
no território e por ordem...

Se eu ao menos fosse a tempo
de esquecer o que aprendi
e rir do que fui perdendo
no percurso até aqui...

É provável que fosse outra
a nossa história futura,
que valesse a vida toda
toda a minha ao pé da tua.

sábado, 20 de julho de 2019

SONETO UMA DÉCADA PASSADA


Alguma vez olhaste para trás?
Distraída que fosse, alguma vez
te deu para espreitar como se fez
o caminho que leva aonde estás?

Já suspeitaste acaso que talvez
alguém te siga o rasto? Que o fugaz
sopro das horas nunca foi capaz
de varrer toda a poeira em que não crês? 

Imaginas sequer que lá atrás,
ao largo, bem ao largo do que vês,
obstinado te segue esse rapaz
de que em mim nunca o tempo se desfez?

Tens ideia do rumo que lhe dás
por menos importância que lhe dês?

                                              Leceia e 2017

domingo, 14 de julho de 2019

SONETO DO PASSADO QUE ME TRAÍA


No tempo das princesas eras essa
de caracóis compridos e sardinhas
em cujo colo se extinguia a pressa
de que todas as horas fossem minhas.

Pouco pontual e nada assídua, vinhas
no gesto de quem sempre recomeça,
sem lastro de lembranças comezinhas
nem o veneno oculto da promessa.

Sendo assim, ainda hoje me pergunto
por que razão fui eu puxar o assunto
do teu passado de feitiçarias,

por que razão me pus insatisfeito
para tornar a cama onde me deito
patíbulo do bem que me fazias.

                                                            Lisboa e 2014
                                                            (A primeira quadra desponta noutros
                                                             sonetos bem mais antigos e que a merecem
                                                             menos.)

sexta-feira, 12 de julho de 2019

primeiro café da tarde III

Havia, como há, que ser acrítico
para traduzir o coração.
Mais confiante do que agora,
em jovem fazia o trabalho em cima da mesa
com a ajuda de meia dúzia de glossários e outra meia
de rudimentos gramaticais.

Mas não tinha, como não tenho, competência.
É óbvio que neste tão pouco saber de quase nada
ainda não descobrira a perene
intraduzibilidade cardíaca.

Já nem recordo se ao cardiograma inútil
e imperfeito
lhe chamava poema,
se ao percurso da caneta
sobre a sua espera.

Só hoje vislumbro que o poema é sempre
a inesperada arritmia do sol ao nascer.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

SONETO DA MINHA FÉ INESPERADA

(Para Luís Jardim, 1947-2013)

Cheio de pressa em perceber ao certo
se havia solução para o teu mal,
eu teria acorrido ao hospital
onde entraste de urgência, aqui tão perto.

A mão na tua, para ver que tal
ias da operação a peito aberto,
do cirurgião teria descoberto
que a morte, no teu caso, era o normal.

E em pranto junto à cama derradeira
onde convalescias do conserto
da tua velha aorta rebentada,

dir-te-ia então: "Talvez desta maneira
Deus e tu se conheçam", e, ao dizer-to,
quão grande a minha fé inesperada.

                                                                                                      Lisboa e 2014

domingo, 23 de junho de 2019

SONETO DO QUE FUI


Quando surgiste sem aviso nem
paninhos quentes, eu nem ai nem ui
optei por ser cortês. Já tu? Que bem
refastelado estás, ó tu que fui.

Que bem refastelado no sofá,
sempre a mandar bitaites com esse ar
incomplacente, armado em marajá
do espaço em volta no meu novo lar.

Quem diabo és tu, ó tu que fui, quem és
para me atrapalhar a vida assim
e me cansar e me atirar aos pés
do fantasma escondido no jardim?

Com que empáfia me impões a tua missa,
com que lata, ó criatura empatadiça!

                                                   Leceia e 2016

sexta-feira, 14 de junho de 2019

SONETO DO MEU INFERNO


Quando auspiciaste que seria gorda
a minha sorte aqui por estes lados,
fizeste-o no suposto de que eu sou da
cidade como a chuva cai no asfalto.

E um par de anos depois, eis-me nas lonas,
amigo António. Estavas enganado
nisso de que eu poderia encontrar outra
vida no ramerrame do povoado.

Se um dia destes viesses visitar-me,
compreenderias que não estou mais perto
de mim, que o mesmo excesso me rebate.

Se viesses visitar-me saberias
que não deixei de ser o meu inferno
por ter variado a guerra dos meus dias.
                                                
                                                                            
                                                                             Leceia e 2016

sábado, 1 de junho de 2019

primeiro café da tarde II

Não sei por que me dizes que sou um mau cidadão
quando critico este inacreditável
sistema que me suga a alma,
não sei por que me chamas de categórico
quando na minha deprimida dicotomia
opino que a prosperidade não se exibe.

Não sei por que me vincas a desistência
quando lamento o assassínio da figueira
sem nunca ter lutado por ela,
não sei por que garantes que o meu receio
é merecido em face dos crimes que cometi.

Não sei por que me tiras a cama
quando bebo em taça de vinho,
não sei por que nunca reconheces
que estou aqui,
não sei por que nunca arranjaste piedade
para admirar em mim um gesto que fosse.

Não sei por que nunca entendeste
que a falha me persegue e o elogio
é o meu ponto fraco.
Não sei por que ainda estás aqui.
Não sei por que te amo ainda.



terça-feira, 21 de maio de 2019

isto


Quando me ponho a recordar
Há que dizer que não recordo:
A minha vida não tem vida
Dessas com dias e lugar.
Isto lhe chamo e é sol e mar
Juntando as horas sem relógio.
A minha vida é toda a vida.

terça-feira, 9 de abril de 2019

primeiro café da tarde I


No mapa das nossas almas
deverias ter estudado as fronteiras menos dúbias:
talvez se traçasse nelas a promessa.
Foi pouco avisada essa tua metáfora
que fez de nós verdades como o sábado,
certeza de nós como as primaveras com que minto.

Mas, para te ser franco,
também não está mal assim: agora
é óbvio que a nossa tontura serôdia
não tinha futuro.
Se há dias em que ainda somos
também há esta nova história
de que nunca fomos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

soneto do ex-pirómano


No ano 2009 tornei-me outro.
Frágil. Bem mais poltrão do que pensara
possível. Tanto assim que caí morto
no incêndio que aticei à velha casa.

Certo é que, desde então, perdi o gosto
pirómano. Hoje não transporto nada
nos meus gestos que possa fazer fogo
e furto-me com zelo a tudo o que arda.

Dizem amigos que perdi o gás,
que o combustível de falhar em frente
é o que me embaraça o passo atrás.

E eu rio do eufemismo. Diariamente,
na casa em cinzas arranjei maneira
de atirar cinzas à cidade inteira.

Lisboa, 2014

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

por medo ao céu o voo abortado (IV)


O tempo não é sólido na sua totalidade,
há curvas fracturadas
para quem as procure,
ou por sorte as encontre,
onde se deixa atravessar
pelas mãos.

Nalgumas dessas viagens líquidas
que agora aprendi a fazer com elas
tenho por destino as tantas vezes que te chamei amor
e, ao lado desse, outro mais extenso e cheio de horizontes
desimpedidos
onde acreditei amar-te.
Digo acreditei porque não estou certo
de que tenha sido assim,
apenas  de que nunca estive mais próximo
de ter sido assim.

Quando regresso as mãos
ao estranho torpor destes dias
sei um pouco mais sobre a minha cobardia.
A tragédia maior
na minha vida foi
por medo ao céu o voo abortado.


Leceia, 18 fev 2019

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

SONETO DO CÃO TRANSPARENTE

(Para o Piloto)


Chamemos-lhe dono. Abre a porta da
casa, o sol já a trinta graus,
e faz que não vives. Agora há os
vaivéns da tua dor errada,
esses gemidos abafados
que o vento rouba à madrugada
e deposita noutro lado,
longe, bem longe, de quem passa.

Ignora-os também. Nem sequer
ao despedir-se da mulher
percebe os vestígios da cauda
feliz de quando foste novo.

Havia um tapete à entrada
onde sonhaste antes de morto.


Leceia, 2016 [Para o Piloto]

domingo, 20 de janeiro de 2019

o edifício desta ausência (V)


Creio que o inicio de tudo
foi no café solitário
os que tomámos a meias,
que nalgum desses
dez mil ou quase percursos
num gesto se construíram toda a espera e os seus impulsos.

De algum modo, o meu cansaço
e as suas noites ergueram
o edifício desta ausência.
Nos alicerces
é habitual dar por mim
contando milagres para que o nosso não tenha fim.