sábado, 30 de outubro de 2021

o talento de amar-te



hoje quase me deu para telefonar-te
de madrugada e quando ia a manhã a meio
também se adormeci e se fazia tarde
quase quase à noitinha e à hora em que me leio
no cansaço do sol nos desmandos da lua

hoje quase me deu para me pôr brejeiro
e ao longe desnudar-te até que fosses nua
e de tão servo teu brincar a ser teu dono
no constante cadinho em que fiel se apura
à beira da tua alma o abismo do meu corpo

hoje quase me deu para reinventar-te
quando a meio do sono antecipasse o sonho
e o vento como agora aflito nos buscasse
nos escaninhos da espera entre as esperas de quem
da obstinação fizesse a sua única arte

hoje quase me deu para ser o que vem
hoje quase me deu para ser o que parte
hoje quase me deu para ser o que tem
entre astilhas da morte o talento de amar-te

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

transparência e luz no teu aniversário







parti de lisboa     madrugada ainda
    para aqui chegar antes da confusão
    por isso alunei algumas horas antes
    da hora em que é comum abrirem os mercados
queria à-vontade para investigar
    todas as ofertas através das montras
    espreitar o líquido mais importante
    avaliar     talvez     os preços mais em conta
mas devo dizer-te que esta minha ideia
    logo desde o início me pareceu má
    pois nada encontrei dessa lua saudosa
    onde fomos jovens e nos conhecemos
tudo está mudado     nada lembra os dias
    em que os dias eram de hoje e entusiasmo
    sem a demasia de amanhãs e esperas
percorri cidades     aldeias e vilas
    e     dentro de todas     ruas avenidas
    sempre em busca de água     essa água cristalina
    em cujo sabor matávamos a sede
mas também aqui se vão impondo a sede
    e os gestos com que ela não se intensifique
    também aqui a água é paga a peso de ouro
    apesar de muita e menos poluída
de nada serviram os tempos antigos
    de bom selenita     mineiro capaz
    já ninguém se lembra de quanto entreguei
    para a construção deste mundo habitável
a única mensagem que me transmitiram
    é a de que está proibida a terráqueos
    a venda de bens     abundantes ou não
    que tenham origem no solo lunar
pouco lhes importa que o meu bisavô
    tenha aqui nascido     inteiro para a lua
    e que o seu avô tivesse combatido
    para aqui morrer durante meio século
    e que há poucos anos eu tivesse sido
    um dos que inventaram este paraíso
para resumir-te todo o meu sucesso
    dir-te-ei     sem sorriso     que apesar de tudo
    alguém mais ousado enfim me prometeu
    o mais bem medido litro e meio de água
    numa das melhores garrafas de plástico
    a um preço acessível entre os excessivos
está pronta amanhã     tem calma que haverá
    transparência e luz no teu aniversário
    vais poder matar um pouquinho da sede
    saltando uma ou duas dessas dez pastilhas
    com que diariamente tentamos esquecê-la
mas olha     maria     não é só na terra
    que a água potável se tornou tesouro
muito em breve     a lua será outro mais
    desses cemitérios de antigas demandas
    que vão construindo as invenções do homem
não temos futuro     talvez esta seja
    a última das minhas viagens à lua