domingo, 28 de julho de 2019

SONETO DO CHICORONHO

Cristo-Rei Lubango
Imagem Wikipedia
O puto chicoronho - eu já nem sei
o tempo há que isso foi. Sei todavia
do seu costume em acabar o dia
com dois paus imitando o Cristo-Rei.

Descalço no quintal, junto à capoeira,
alheio sempre à chuva e à cacimba,
com um fio os malcruza, o fio ainda
que usa para ordenar a vida inteira.

Pudesse ver-me quem pudesse vê-lo:
mora já o doutor da mula ruça
nesse canhestro ruço de mau pêlo
que sobre o seu brinquedo se debruça.

Resumir-me-á quem me quiser num esboço:
«Ó homem, tu foi tudo a traço grosso.»

                                                                                                            Leceia e 2017

sexta-feira, 26 de julho de 2019

primeiro café da tarde X


Grande e pontual é o cuidado
com que disseco os cadáveres da vida,
durante a lua toda, todas as noites,
com o deciso bisturi do teu não.
Ignoro outra maneira de sobrevoar a morte,
outra arte mais justa que a deste delongado corte
com que busco a madrugada,
esse prenúncio de luz para lançar a espera
à terra sempre fértil da partida.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

fingimento XXIX


Se eu fosse jovem... Melhor:
se eu fosse um pouco mais jovem
e te soubesse de cór
no território e por ordem...

Se eu ao menos fosse a tempo
de esquecer o que aprendi
e rir do que fui perdendo
no percurso até aqui...

É provável que fosse outra
a nossa história futura,
que valesse a vida toda
toda a minha ao pé da tua.

sábado, 20 de julho de 2019

SONETO UMA DÉCADA PASSADA


Alguma vez olhaste para trás?
Distraída que fosse, alguma vez
te deu para espreitar como se fez
o caminho que leva aonde estás?

Já suspeitaste acaso que talvez
alguém te siga o rasto? Que o fugaz
sopro das horas nunca foi capaz
de varrer toda a poeira em que não crês? 

Imaginas sequer que lá atrás,
ao largo, bem ao largo do que vês,
obstinado te segue esse rapaz
de que em mim nunca o tempo se desfez?

Tens ideia do rumo que lhe dás
por menos importância que lhe dês?

                                              Leceia e 2017

domingo, 14 de julho de 2019

SONETO DO PASSADO QUE ME TRAÍA


No tempo das princesas eras essa
de caracóis compridos e sardinhas
em cujo colo se extinguia a pressa
de que todas as horas fossem minhas.

Pouco pontual e nada assídua, vinhas
no gesto de quem sempre recomeça,
sem lastro de lembranças comezinhas
nem o veneno oculto da promessa.

Sendo assim, ainda hoje me pergunto
por que razão fui eu puxar o assunto
do teu passado de feitiçarias,

por que razão me pus insatisfeito
para tornar a cama onde me deito
patíbulo do bem que me fazias.

                                                            Lisboa e 2014
                                                            (A primeira quadra desponta noutros
                                                             sonetos bem mais antigos e que a merecem
                                                             menos.)

sexta-feira, 12 de julho de 2019

primeiro café da tarde III

Havia, como há, que ser acrítico
para traduzir o coração.
Mais confiante do que agora,
em jovem fazia o trabalho em cima da mesa
com a ajuda de meia dúzia de glossários e outra meia
de rudimentos gramaticais.

Mas não tinha, como não tenho, competência.
É óbvio que neste tão pouco saber de quase nada
ainda não descobrira a perene
intraduzibilidade cardíaca.

Já nem recordo se ao cardiograma inútil
e imperfeito
lhe chamava poema,
se ao percurso da caneta
sobre a sua espera.

Só hoje vislumbro que o poema é sempre
a inesperada arritmia do sol ao nascer.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

SONETO DA MINHA FÉ INESPERADA

(Para Luís Jardim, 1947-2013)

Cheio de pressa em perceber ao certo
se havia solução para o teu mal,
eu teria acorrido ao hospital
onde entraste de urgência, aqui tão perto.

A mão na tua, para ver que tal
ias da operação a peito aberto,
do cirurgião teria descoberto
que a morte, no teu caso, era o normal.

E em pranto junto à cama derradeira
onde convalescias do conserto
da tua velha aorta rebentada,

dir-te-ia então: "Talvez desta maneira
Deus e tu se conheçam", e, ao dizer-to,
quão grande a minha fé inesperada.

                                                                                                      Lisboa e 2014