quinta-feira, 13 de agosto de 2020

primeiro café da tarde XX

A Jorge Fortes. Para ele, eu ando metido em trabalhos de Sísifo.


É comum que ao fim da tarde o sol me encontre
de moscatel na mão à espera da noite lampa,
os olhos postos na pedra extirpada
que do chão se ergue acima do que sou.
É essa a hora em que peso o tripálio do dia,
enquanto evaporo na língua a serôdia
solução sob o peso da penumbra.
É essa a hora de Sísifo sem amargura,
ardiloso e rotinado Sísifo no trabalho
da minha retina.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

primeiro café da tarde XVIII


Chatos. Que chatos são os teus amigos.
Ao fim da manhã chegam e depois
da usual mesura ao nosso amor antigo
pedem que eu te defina com um termo ou dois.
Um me basta, confesso-lhes, tu és
por arte e natureza indefinível.
Desiludidos, vão-se embora sem café.
O Antóneo? Que rasura, pá, que baixo nível.


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

primeiro café da tarde XIX


O riso ao colo
do nosso fácil desprendimento,
coabitávamos no paraíso
e não havia tempo.

Entretanto arranjámos tempo
para ter tempo
e tempo de sobra
para não o ter.

Quem diria, se pudesse dizê-lo, que um dia
prescindiríamos de nós?
Não haver tempo era o nosso amor.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

primeiro café da tarde XVII


A insuficiência mitral é ligeira e ligeira
a hipertrofia auricular esquerda.
Também ligeira é a hérnia na cárdia
assim como ligeira parece a decadência do fígado.
Ligeiro o ódio aos condutores assassinos,
ligeira a burguesice,
ligeiros estes breves desatinos
que tornam ligeira a velhice.
Ligeira a anemia,
ligeira a vontade na corrida,
ligeira a hipercolesterolemia,
ligeira,
muito ligeira,
a vida.