domingo, 23 de junho de 2019

SONETO DO QUE FUI


Quando surgiste sem aviso nem
paninhos quentes, eu nem ai nem ui
optei por ser cortês. Já tu? Que bem
refastelado estás, ó tu que fui.

Que bem refastelado no sofá,
sempre a mandar bitaites com esse ar
incomplacente, armado em marajá
do espaço em volta no meu novo lar.

Quem diabo és tu, ó tu que fui, quem és
para me atrapalhar a vida assim
e me cansar e me atirar aos pés
do fantasma escondido no jardim?

Com que empáfia me impões a tua missa,
com que lata, ó criatura empatadiça!

                                                   Leceia e 2016

sexta-feira, 14 de junho de 2019

SONETO DO MEU INFERNO


Quando auspiciaste que seria gorda
a minha sorte aqui por estes lados,
fizeste-o no suposto de que eu sou da
cidade como a chuva cai no asfalto.

E um par de anos depois, eis-me nas lonas,
amigo António. Estavas enganado
nisso de que eu poderia encontrar outra
vida no ramerrame do povoado.

Se um dia destes viesses visitar-me,
compreenderias que não estou mais perto
de mim, que o mesmo excesso me rebate.

Se viesses visitar-me saberias
que não deixei de ser o meu inferno
por ter variado a guerra dos meus dias.
                                                
                                                                            
                                                                             Leceia e 2016

sábado, 1 de junho de 2019

primeiro café da tarde II

Não sei por que me dizes que sou um mau cidadão
quando critico este inacreditável
sistema que me suga a alma,
não sei por que me chamas de categórico
quando na minha deprimida dicotomia
opino que a prosperidade não se exibe.

Não sei por que me vincas a desistência
quando lamento o assassínio da figueira
sem nunca ter lutado por ela,
não sei por que garantes que o meu receio
é merecido em face dos crimes que cometi.

Não sei por que me tiras a cama
quando bebo em taça de vinho,
não sei por que nunca reconheces
que estou aqui,
não sei por que nunca arranjaste piedade
para admirar em mim um gesto que fosse.

Não sei por que nunca entendeste
que a falha me persegue e o elogio
é o meu ponto fraco.
Não sei por que ainda estás aqui.
Não sei por que te amo ainda.