sexta-feira, 20 de novembro de 2020

quadra 77


Chama-se homem esse bicho
de sonho, espera e alma acesa, 
incapaz do que é preciso
para amar a natureza.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

quadra 76



Desta infinita chatice,
deste tempo malfazejo,
sobrará a covidice
de me negares um beijo.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

quase como tu


Como tu, sou papagaio,
minto e cedo à carne fraca;
como tu, mal me distraio
também corto na casaca.

Como tu, com pouco ou nada
para o burgo contribuo;
como tu, não dou passada
que não seja de recuo.

Como tu, fiz-me acrobata
no céu raso deste à toa;
já vês: apenas me falta,
como tu, ser de Lisboa.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

quadra 75


Como tu, sou papagaio,
minto e cedo à carne fraca;
como tu, mal me distraio
também corto na casaca.

domingo, 15 de novembro de 2020

quadra 74


Só me tornei afeiçoado
aos pormenores da vida,
quando aceitei, já cansado,
que ela está quase perdida.

sábado, 14 de novembro de 2020

quadra 73


Como é estranha a vida em sonho,
como à parte dos meus dias,
quanta mentira lhe ponho
se ainda há pouco me sorrias.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

homem


Do que fui sou homem livre,
sem apego à história e ao verbo,
pouco me importa o que tive
se o que tive não conservo.

Faço por que seja um fio
este caminho que rasgo,
que ao homem basta o respiro
para logo fazer estrago.

Luto por erros ligeiros,
propensos quase ao olvido,
para ser homem a sério
há que não ter existido.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

quadra 72


Se aconteceu habituar-me
a esta distância entre nós,
para morrer de saudade
basta ouvir a tua voz.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

quadra 71


Como sempre despertou-me,
sem prodígio nem surpresa,
no murmúrio do teu nome
a minha única certeza.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

primeiro café da tarde XXXIII

À Irmã Maria José de Belém (Emília Matos),
a querida Tia Madre (10.ago.1943-02.11.2020)


Recordarei
com o riso fácil e largo
o amor às narrativas,
a chamada aos domingos,
a missão que se faz vida.
Recordarei,
porque mo ensinaste,
quão grande a coragem de crer em deus,
quão maior a arrogância de o negar.
Ignoro quantos verões me faltam
destes de não chegares,
mas enquanto os houver
recordarei.


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

epifanias




Representante do que uns designam de realismo sujo e outros apenas de escrita minimalista, Raymond Carver aborda o quotidiano, numa linguagem quotidiana, com uma sobriedade quotidiana.

A proposta é a de uma ausência de literatura. Mas é uma proposta mal sucedida: os doze episódios do livro são percorridos por desempregados, alcoólicos, divorciados e desentendidos, gente fazendo pela vida sob uma pena que, além de dominar os segredos do diálogo e da narrativa, detém a mestria da sua conjugação.

Acresce que resultam epifanias e redenções de pequenas quebras de rotina, de frases simples, de gestos previsíveis. E também aqui há literatura.


Catedral
Raymond Carver
Trad.: João Tordo
2010 (original: 1983)

domingo, 8 de novembro de 2020

para ser maior




Raskólnikov leva uma vida de extrema pobreza: abandona os estudos por falta de dinheiro, encosta o sono numa almofada de roupa velha, deve já várias rendas do cubículo que habita, come quando calha. Talvez seja tudo isto o alimento para a lição que retira da História: vários grandes homens, como ele crê ser, tiveram de cometer crimes no início da vida para poder cumprir o seu destino. E fizeram-no sem hesitações nem remorsos.

Decide seguir o exemplo e assassinar uma velha agiota, um ser menor, desnecessário, prejudicial à sociedade (um piolho, nas suas palavras) e cujo dinheiro pode ser usado em seu proveito e dos outros. Já de início, no entanto, hesita. E quando finalmente se decide, comete vários erros. O maior dos quais o de assassinar também a irmã da agiota, que entretanto surge na cena do crime, a casa onde ambas vivem. A atrapalhação é tanta que, embora retire da casa algumas jóias e uma carteira, decide escondê-las até de si próprio.

A obra é uma longa viagem pela mente de Raskólnikov, os temores e as dúvidas que antecedem e, sobretudo, se sucedem ao crime. Talvez, afinal, ele não seja o grande homem que imaginou ser. Talvez por isso mereça o castigo que merecem os homens menores. E é ele próprio que vai de encontro, aos poucos, desse castigo. O seu percurso é, no fundo, o de descobrir que também é um piolho. E a redenção só acontece no momento em que percebe que um homem banal também pode ser amado.

Crime e Castigo
Dostoiévski
Trad.: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editorial Presença, 2001

haikai xxi


pardais aninhados
nos esconsos do nosso tecto:
o regresso a casa.

sábado, 7 de novembro de 2020

quadra 70

As sortes são fugidias,
não iluda o reviralho:
a estrampalhar-nos os dias
há de haver sempre um trampalho.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

piccolino

 


«Se conheço bem o meu senhor, ele não poderá passar muito tempo sem o seu anão». Quem o diz é o próprio anão, que vai descrevendo no seu diário o ódio e o nojo que sente pela espécie humana, incluindo ele próprio e os outros anões. No fundo, é o desprezo pela vulnerabilidade que perpassa este grande livro de Pär Lagerkvist (1891-1974).

Num dos antigos principados da actual Itália e numa época do Renascimento onde grassavam a fome, a guerra e a peste, o anão Piccolino é a personificação do mal. A publicação do livro em 1944 e o nosso próprio auto-conhecimento levam-nos a perceber que esse mal é intemporal. O mal é intrínseco à espécie humana.

Com Piccolino percebemos como cada um de nós tem a tendência, por mais longínqua que nos pareça, para comparar e catalogar. Para odiar o melhor porque é melhor. Para odiar o pior porque é pior. Para odiar o igual porque nos repete. Quem não tem um Piccolino dentro de si? Devemos estar sempre vigilantes para que ele não se manifeste.



O Anão
Pär Lagerkvist
Trad.: João Pedro de Andrade (original de 1944: Dvärgen)
Ed.: Antígona

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

a transparência do essencial

Ainda antes de O Perfume (1985) e A Pomba (1987), Patrick Süskind encetava com este O Contrabaixo (1981) a sua análise do poder de pequenos pormenores e acontecimentos na vida das pessoas.

Pela posição, pela visibilidade e pela função, o contrabaixo dir-se-ia transparente. E, no entanto, é o único instrumento imprescindível, aquele sem o qual todos falhariam numa orquestra. Ele vinca e simboliza a existência do seu intérprete.

Talvez tenha de ser assim com muitos. São sempre necessários aqueles que acendem as luzes com que outros se iluminam. O drama é que não sejam e talvez não possam ser reconhecidos. Como as notas graves com que um contrabaixo constrói o caminho.


El Contrabajo
Patrick Süskind
Trad.: Pilar Giralt Gorina (original de 1981: Der Kontrabass)
Ed.: Seix Barral

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

quase tudo isto


Durante alguns anos, Bill Bryson decidiu compreender melhor a "história" do universo, desde o Big Bang até o aparecimento e evolução do homem. E como tinha dificuldade em compreender a literatura sobre os temas em causa, decidiu ser ele a abordá-los.

O resultado é o seu A Short History of Nearly Everything. Escrito por um leigo, é de leitura fácil e estimulante. Também não parece conter grandes incorrecções: as que se encontram são as da própria ciência, que de 2003 para cá, como não podia deixar de ser, as foi actualizando.

A narração das ideias e descobertas que nos ajudam a compreender o mundo é feita sempre com o foco nas personalidades e contradições, generosidades e ódios, ambições e desapegos dos seus protagonistas. E talvez o maior interesse deste livro esteja mesmo nesta verdadeira história, a"pequena história" dos homens que vêm aumentando o nosso conhecimento de quase tudo.

A Short History of Nearly Everything
Bill Bryson
Black Swan
2004 (1.ª ed.: 2003)

terça-feira, 3 de novembro de 2020

adolescência roubada



Quatro de agosto de 1944. Vinte e cinco meses após se terem escondido num anexo secreto dos escritórios da Opekta, Anne Frank e mais sete pessoas, entre as quais os pais e a irmã, são descobertos e presos pelos nazis. Com excepção de Otto, o seu pai, todos morreriam nos campos de extermínio para onde foram enviados. Anne Frank e a irmã Margot sucumbiriam ao tifo que alastrou em Bergen-Belsen no inverno de 1944/1945.

Mas não caiu nas mãos dos nazis um pedaço da vida de Anne: o diário que ela manteve entre 12 de junho de 1942, data do seu décimo-terceiro aniversário, e 1 de agosto de 1944. Esquecido no anexo e recuperado mais tarde pelo pai, é o testemunho de uma adolescência roubada. Nele, Anne vai dando conta dos conflitos entre os habitantes confinados ao anexo; das discussões acerca de temas tão díspares como a política, a guerra, as refeições; do uso cuidadoso do autoclismo para não chamar a atenção dos funcionários em baixo; dos sonhos adiados; dos planos para o futuro; da impossibilidade de ter um espaço para si; da tristeza e da esperança; do medo e do alívio. Kitty, a personagem que ela inventa por trás das páginas do diário, é quem que lhe permite lidar com tudo isto.

Na primavera de 1944, Anne Frank começa a rever o seu diário. Tem a intenção de dá-lo a conhecer ao mundo depois da guerra. Esta é a versão dita definitiva, sem os cortes e correcções a que o pai o sujeitaria antes de o publicar em 1947. A descoberta da sexualidade; a atracção por Peter, outro dos habitantes do anexo; a relação difícil com a mãe – tudo aqui volta a ser confessado a Kitty. Tudo aqui é revivido por esta infeliz rapariga que nos retratos nos aparece sempre com um sorriso, um suave e contido sorriso, e cujas palavras nunca desistem da vida.


The Diary of a Young Girl
Anne Frank
Eds. Otto J. Frank, Mirjam Pressler
Trad. Susan Massotty
2012
Original: Het Achterhuis [O Anexo Secreto]

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

cão fiel do nosso exagero


e nem por isso bebi
e nem às tantas de ti
pedaço de fantasia
em mesa de esquecimento
o corpo que percorria
a noite que percorrendo

e nem por sonos sonhei
e nem de buscas te sei
sussurros com pedra fria
palavras que à boca invento
digamos que não havia
mais tu do que não havendo

e nem por muito se quis
e nenhuma alma condiz
talvez como quem te queira
verdades como te quero
mentiras desta maneira
em tempos já fui sincero

e nem por tudo o que faz
furtivo artista capaz
de saltos sob a fogueira
em cinzas do meu desvelo
por brasas como se esgueira
cão fiel do nosso exagero

               Leceia e 27 de outubro em 2018

domingo, 1 de novembro de 2020

descendente de barão





Eulálio d'Assumpção, centenário orgulhoso e descendente de barão, derrama as suas memórias no leito do hospital onde a morte o espera. Repisa-as para não se esquecer de quem é: «Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço de alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar.»

À medida que a medicação e a proximidade do fim lhe vão retirando lucidez, as memórias confundem-se, assim como se confundem aqueles com quem as partilha: a enfermeira que melhor o trata, os outros enfermeiros e os médicos mal-humorados, a filha, alguém que toma pelo pai assassinado há muito. Mas uma dessas memórias serve sempre de esteio a todas as outras: a do inesperado e repentino desaparecimento da sua mulher, a exuberante Matilde de «pele castanha», pouco depois do nascimento da filha de ambos.

O texto de Chico Buarque foge de um modo exímio à narrativa linear, plasmando o pensamento reinventado e confuso do velho moribundo e fixando de um modo natural o preconceito e a arrogância de um homem que se orgulha de descender de gente nobre e importante e que, apesar de tudo, não resiste aos encantos de uma bela mulata.

Leite Derramado
Chico Buarque
2009
D. Quixote