quarta-feira, 28 de setembro de 2022

OFERTA (Leonard Cohen)


Dizes que o silêncio
tem mais de paz que de poemas
mas se para oferecer-te
eu trouxesse o silêncio
(tão bem que o conheço)
devolver-mo-ias dizendo
    Aqui não há silêncio
    aqui apenas há outro poema

 
GIFT (Leonard Cohen)

You tell me that silence
is nearer to peace than poems
but if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
you would say
This is not silence
this is another poem
and you would hand it back to me

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

quadra 108


A solidão não se deita
com o homem que sempre te ama:
tem meio metro de estreita
a teia da vossa cama.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

poesia vertical 1-14 (traição a roberto juarroz)


Há um lugar próprio para as mãos,
ao mesmo tempo maior e menor do que elas,
um lugar onde as mãos são tudo o que são
mas também algo mais.
É esse lugar onde não há
como eu esperava
outras mãos à espera das minhas.

- - - 

POESÍA VERTICAL 14 (ROBERTO JUARROZ)

He encontrado el lugar justo
donde se ponen las manos,
a la vez mayor y menor que ellas mismas.

He encontrado el lugar
donde las manos son todo lo que son
y también algo más.

Pero allí no he encontrado
algo que estaba seguro de encontrar:
otras manos esperando las mías.

domingo, 4 de setembro de 2022

eu não sou eu (traição a Juan Ramón Jiménez)



Eu não sou eu.
Sou quem
ao meu lado não vejo
mas que hei de ver de quando em quando
como de quando em quando esqueço,
quem, sereno, se cala quando falo,
quem, amável, perdoa quando odeio,
quem se passeia por onde não estou,
quem há de resistir no dia em que eu morrer...

- - -

EU NÃO SOU EU (JUAN RAMÓN JIMÉNEZ)

Yo no soy yo.

Soy este
que va a mi lado sin yo verlo,
que, a veces, voy a ver,
y que, a veces olvido.
El que calla, sereno, cuando hablo,

el que perdona, dulce, cuando odio,
el que pasea por donde no estoy,
el que quedará en pie cuando yo muera...


sábado, 3 de setembro de 2022

mulher-gato (traição a Enrique Jardiel Poncela)


    


    Tinha os olhos verdes dos gatos, tão dos gatos que até fosforesciam na escuridão.
    Como era fácil o meu amor por ela!
    À noite, e graças às felinas propriedades daqueles olhos, eu nunca acendia a luz para ver as horas no relógio. Nem para ler um livro quando estava com insónia. Bastava-me pedir: «Flérida, querida, podes focar os olhos no livro para eu ler um pouquinho?»
    Enfim, era a mulher ideal se esquecermos o espírito demasiado gatesco, pois adorava deitar-se dentro do braseiro, deliciava-se com peixe, feria-me com os seus arranhões.
    Para mim, nada disto era imperdoável.
    Imperdoável era ela sair da cama nas madrugadas de janeiro e subir ao telhado para os seus passeios ao luar.

- - -

    MUJER-GATO (ENRIQUE JARDIEL PONCELA)

    Aquella mujer tenía unos ojos verdes, como los de los gatos, y eran tan iguales a los de los gatos, que hasta fosforescían en la oscuridad.
    ¡Qué cómodo resultaba amarla!
    Porque gracias a las felinas propiedades de sus ojos, en la noche uno veía la hora del reloj, sin tener que encender la luz. Y para leer un libro en los momentos de insomnio, tampoco hacía falta encender la luz. Bastaba con decirle a ella:
    — Flérida, hija, haz el favor de enfocarme los ojos al libro, que voy a leer un ratito.
    En fin, era una mujer ideal. Lo malo estaba en que, a causa de su espíritu gatuno, le encantaba echarse en la tarima del brasero, y adoraba el pescado, y daba unos arañazos terribles. 
    Y aun esto podía perdonársele.
    Lo que ya no se le podía perdonar era el que en las noches de enero se levantase de madrugada y se subiese al tejado a dar paseítos bajo la luna.



quarta-feira, 24 de agosto de 2022

quadra 107

 
Nada me diz o destino,
a origem nada me diz,
é-me bastante o caminho
para poder ser feliz.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

quadra 106


Erros e erros no que faço,
no que calo, no que digo
- mas o meu maior fracasso
é ter sonhado contigo.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

quadra 105 (quatre-vingts ans)


(Para T. J. M. A.
no dia do seu 80.º aniversário)


São oitenta e de certeza
serão oitenta os seguintes,
mas à grande e à francesa
chamar-lhes-ei quatro-vintes.




sábado, 13 de agosto de 2022

primeiro café da tarde XLV


é muito provável que tenha chegado ontem
em tempos pericovídeos
o meu último cartão de cidadão
    ão ão ão
    ão ão ão

informa que tenho para gastar
quase nove anos até maio de dois mil e trinta e um
mais vida menos vida   
    ida ida ida
    ida ida ida

mas que admira
eu que faço quase tudo o que quero
não aproveitar tamanha prorrogação
    ão ão ão
    ão ão ão

pode ser até que em dois mil e vinte e sete
a carta de condução já tenha ido para o beleléu
e com ela éu
    éu éu éu
    éu éu éu

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

quadra 104


Mantém sempre no sentido:
pode acontecer agora
muito do que é garantido
acontecer vida fora.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

quadra 103


Um outro mundo te valha
se costumas, neste mundo,
ver como inútil migalha
a passagem de um segundo.


quarta-feira, 10 de agosto de 2022

quadra 102


Não é tudo o meu caminho
nem tudo de que preciso
quando me afasto um pouquinho
e a lágrima se faz riso.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

quadra 101


Não há dia em que não lembre
aquela outra narrativa
em que o lumaréu de sempre
na minha chama se aviva.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

quadra 100


Com a morte sempre presente
o homem que nunca desiste
evita que o dia invente
o dia que não existe.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

quadra 99


Se buscares vigilante
aquilo que mais te importe,
sempre haverá quem se espante
de ser tanta a tua sorte.

domingo, 31 de julho de 2022

quadra 98


A minha verdade acaba
na garganta, isso que admira?
Se sou homem de palavra
tudo o que digo é mentira.

sábado, 30 de julho de 2022

quadra 97


Hoje que o outono se agrava
e me sei menos de cór
não estou tão bem como estava
mas sou bastante melhor.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

quadra 96


Não te corre mal o dia
porque nem sequer te corre:
"és", na tua hipocrisia,
mais morto do que quem morre.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

quadra 95


Sem tardança mas sem pressa
fosse eu outro ao sol que espreita,
com a arte de quem começa
isento de quem se deita.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

quadra 94


Homem, tu? Isso é difícil:
não és de palavra honesta,
comprovas em cada míssil
que nenhuma alma te resta.

quadra 93


Homem, tu??? Isso é difícil:
não és de palavra honesta,
comprovas em cada míssil
que o teu coração não presta.

terça-feira, 26 de julho de 2022

quadra 92



Saberes que a vida é curta
é o que mais te consterna
mas insistes na conduta
de vivê-la como eterna.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

quadra 91

Deixa-te de listas breves
sobre as faltas que há em mim,
completa-as, faz o que deves,
descreve-me até ao fim.

quadra 90


Deixa-te de listas breves
sobre as faltas que há em mim,
completa-as, faz o que deves,
tritura-me até ao fim.

domingo, 24 de julho de 2022

quadra 89


Uma só moeda que sobre
no meu bolso ao fim do mês
é mais que as duas do pobre
que sofre por não ter três.

sábado, 23 de julho de 2022

quadra 88


Esquece o que ontem prometia,
busca o simples e o sorriso,
não sofras antes do dia
em que sofrer é preciso.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

quadra 87


Com tais actos pões a nu
que não vales cinco paus:
pior, pior do que tu
só tu nos teus dias maus.

sábado, 16 de julho de 2022

inverno



O que de nós fez tanto nós
foi um acaso, a descoberta
de que não há bicho tão só
como o que aceita a morte certa.

Não é de estranhar, assim sendo,
que ainda se faça de espera
a rota cama sem remendo
onde fizemos primavera.

Mas já não tenho horas no pulso
nem telemóvel no costume
e até sorrio no decurso
deste sumiço que nos une.


domingo, 10 de julho de 2022

soneto do meu amor serôdio


Será que estou demasiado velho
para o homem homem que hoje me acredito,
ainda carne e osso, a ver se tenho
no teu regaço zelos de menino?

Será que, acreditando, não me aleijo,
fartando o sono de sonhar contigo,
com tamanhas saudades do teu beijo
como se isso não fosse tão perigo?

Será que ainda podes ser amiga
se o desfecho me espera e a barba é branca
e eu sou da noite quase todo o dia?

Será que estou cansado e isso te cansa?
Serás jovem de mais por culpa minha?
Serei pouco homem se a mulher é tanta?

quarta-feira, 29 de junho de 2022

quadra 86


Amiúde sem frufru
volitas neste meu caos,
não há pior do que tu
quando estou nos dias maus.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

putineio

putineio s.  arte menor de enredar os outros, justificando comportamentos agressivos com argumentos autocomiserativos, à maneira de Hitler e Putin, não esquecendo muitos outros governantes (árabes, israelitas, chineses, etc., etc., etc.)

primeiro café da tarde XLIV


eu putinelho
abutre do futuro e de outros passados
carcereiro de vertigens e invasor evasivo
violador de esperas e de esperas dissimulado

eu putinelho
latejando à superfície
da sonolência do mundo
registando as fraquezas da função humanoide

eu putinelho
crepitando de enfados enfadado de imprevistos
cobrindo de óxido e carcaças
os actos exaltados dos que me rejeitam

eu putinelho
ceptro-trono-coronado hiperoculado
no cume da minha colina informo que

não passais de vermes
no largo lento cego túnel de um suposto sonho
apenas sois um eco longínquo
abafado distorcido incompreensível
frémito quase imperceptível
da mera suspeita das raízes

eu putinelho
ceptro-trono-coronado hiperoculado
no cume da minha colina aviso que

nunca me cansarei do deus que sou

terça-feira, 14 de junho de 2022

primeiro café da tarde XLIII


Sempre dei ao desencontro
o nome de semente,
sempre vi nele a força possível
e a flor final.

Digamos, sem presunção,
que sempre compreendi.

Por isso digo que não,
nunca serei suficiente
para perdão que me peçam.

domingo, 12 de junho de 2022

putinelho

putinelho deprec. s. indivíduo com atitudes e comportamentos próprios ou semelhantes aos de Putin, caracterizados pela mentira descarada e pela agressividade própria que supostamente previne a de outros; indivíduo que simula autocomiseração para obter os seus intentos.

putinesco, aputinado

Putinesco, aputinado - adj. relativo ou semelhante aos comportamentos e atitudes de Putin, caracterizados pela óbvia mentira desavergonhada e pela agressividade imperialista sob um manto de falsa autocomiseração.

sábado, 28 de maio de 2022

primeiro café da tarde XLII


ouve, maria, tu não
me ponhas o coração
a cozer em lume brando,
não, não, maria, nem quando
no final desta modorra
tiveres tempo e pachorra
para fogões e outras ciências,
não, não, maria, não, não
que eu sei das tuas ausências:
não vou permitir, ah não!,
que me esturriques o coração.

sábado, 7 de maio de 2022

sábia

Que velozes os dias
há dias começados:
ainda ontem media
ditas sem desenganos,
isenta de passados,
já hoje sei de tudo
acerca do futuro.

terça-feira, 8 de março de 2022

covídeo

covídeo adj.  de ou relativo à epidemia de covid-19 ou ao período de tempo em que ela ocorreu.* 

*Utilizado, creio, com significado em parte sobreponível, já li o termo 'covídico'. Gosto menos da sua sonoridade, embora talvez seja mais intuitavemente cunhável.

segunda-feira, 7 de março de 2022

covidice

covidice s.f. (pejorativo) atitude/comportamento que se explica pelo receio extremo ou descabido de se ser contaminado pelo coronavírus.

sábado, 1 de janeiro de 2022

1/100. MORIBUNDO LENTO


Rebecca e eu vivíamos no Velho Moinho, a oitenta quilómetros da capital e longe de todas as tentações. Chegáramos havia pouco mais de seis meses, num vinte e nove de julho quente e abafado que não pressagiava os ventos e as chuvas do outono, muito menos o frio que se lhes juntaria durante um longo e autoritário inverno.

«Vai correr tudo bem, não vai, Valentyn?», perguntara-me ela enquanto puxava o travão de mão do seu velho calhambeque. Consultei a hora no telemóvel. A contagem do tempo começava trinta e nove minutos depois das catorze horas. «Não te preocupes, Rebecca.»

Para Rebecca, as palavras – havia sempre que prová-las com actos. E agora que eu era um mero humano isso era ainda mais necessário. Mas prendeu por instantes a minha mão na sua e disse o que havia a dizer, depois de tudo por que passáramos. «Sim, Valentyn. O importante agora é vivermos de acordo como o planeado. Um dia de cada vez.»

O planeado era a minha desistência. Todos, Rebecca e eu incluídos, contávamos com a minha desistência. No último instante, antes de me perfurarem o coração com uma estaca ou uma bala de prata, os tutores tinham-me dado o benefício da dúvida. E eu aceitara as condições impostas. Era agora um moribundo lento, essa foi a melhor expressão que arranjei para me definir, embora nunca a proferisse em voz alta para não obrigar Rebecca a sabê-la. Se tudo corresse como previsto, o meu fim seria dali a vinte ou trinta anos.

Ao longo dos meses seguintes fui acreditando que desistira mesmo. Até nas horas mais difíceis, aquelas em que ressacava da antiga ânsia noctívaga. Não está na minha natureza aceitar a morte mas empenhava-me nela com todo o artifício do meu génio. Chegava a sentir-me aliviado face à minha nova condição de homem rasteiro, preparado para tudo o que pudesse correr mal no meio daquele tudo bem correr que Rebecca esperava.