segunda-feira, 30 de março de 2020

quarentena



Há muito que não te abraço,
há muito que não te beijo,
há muito que nada faço
de acordo com o meu desejo.

Mas desde que sou um perigo
para o mundo e coiso e tal,
tenho sonhado contigo
mais do que me era habitual.

Talvez eu esteja diferente,
talvez mais teu como quem
no final da espera invente
o que a espera já não tem.

sábado, 28 de março de 2020

fingimento xxxv


Não vale a pena o caminho
que hoje percorres, pedinte,
bebe essa taça de vinho,
conforma-te e enche a seguinte.

Só ao caíres de sono
sobre o teu velho sofá,
podes voltar a ser dono
do que na vida não há.

Por isso, espera quieto
nesse cantinho da sala
pelo fantasma no tecto
de todo o amor que te cala.

segunda-feira, 23 de março de 2020

fingimento xxxiv


Quando a conversa se estende
percebo que tens receio
de que às tantas eu invente
descabido galanteio.

Não sabes que se pergunto
tão curioso como vais,
não estou a puxar assunto
para alguma coisa mais.

Desconheces, rapariga,
tudo de que sou capaz,
o silêncio, esta alma antiga
a um canto da tua paz.

domingo, 22 de março de 2020

não desistas (M. Benedetti)



Não desistas, há sempre tempo
para a chegada e o recomeço,
a aceitação das sombras, o enterro dos medos,
o lastro largado, o reinício do voo.

Não desistas porque a vida
é continuação da viagem,
perseguição dos sonhos,
desprendimento do tempo,
estudo dos escombros, descoberta do céu.

Queime-te o frio,
morda-te o medo,
o sol se esconda, cale-se o vento,
não vaciles, por favor.
Tens na alma fogo ainda,
vida ainda nos sonhos.
Porque a vida é tua, teu o desejo,
porque assim quiseste, porque assim te quero eu.

Porque o vinho existe. E o amor também.
Porque o tempo cura todas as feridas.
Abre as portas, retira os ferrolhos,
abandona as muralhas que te protegeram.

Vive a vida e aceita o desafio,
recupera o riso, faz-te ao canto,
baixa a guarda, estende as mãos,
abre as asas, tenta de novo.
Celebra a vida, recupera os céus.

Queime-te o frio,
morda-te o medo,
o sol se ponha, cale-se o vento,
não vaciles, por favor.
Tens na alma fogo ainda
porque é um começo cada dia,
porque esta é a hora, este o melhor momento.
Porque não estás só.
Porque eu te quero.


Para Kh., traição a 'No te rindas' (Mario Benedetti) em Leceia e 22, março de 2020

sábado, 21 de março de 2020

trinta e seis de febre


Suporto os dias ao largo
do tempo que o sol inventa,
as noites acostumado
às planuras desta senda.

Sou sem demora nem prece
como quem faz que acredita
e difícil me adormece
o esquecimento da vida.

Portanto, nada de novo
na clausura que me serve:

para inventar o meu estorvo
bastam trinta e seis de febre.

sábado, 14 de março de 2020

SONETO SEM FUTURO


«Vens-me com essa lábia toda
de vida assada e nós assim,
que não há nada que nos ponha
nos abas cruéis de outro jardim.
Mas olha, Antóneo..., eu pus-me gorda
de convicções neste interim,
o que mais hoje me envergonha
é o que foste para mim.
Como pudeste, na modorra
da tua vida sem pilim,
presumir que eu era senhora
para futuro tão chinfrim?
Esquece essa história, inventa outra
com mais amor, com menos fim.»



quinta-feira, 12 de março de 2020

SONETO AMARGO


Hoje, pelo que sei, nunca perdoas nada.
É pouco de admirar, recordo-me de que antes,
mas bem antes da guerra, éramos nós amantes,
já sabias ser má. Eu achava piada
e ria-me a bom rir do teu mando na estrada,
pé no acelerador, sanguessuga ao volante,
e até dos palavrões e do amuo incessante
com que ias assistindo à minha vida errada.

Eras fatal quando eu à noite me ocultava
na busca pertinaz que dos outros me trava,
no antigo pormenor, meu constante demónio.
Quando menos mulher neste corpo açorado,
já tinhas esse dom para pôr-me de lado:
«Eu também estou aqui. Lembra-te disso, Antóneo.»

                                       Leceia e 12 de março em 2020

sábado, 7 de março de 2020

estertor


Vejam-me só como se fez
passado em duas ou três horas,
no dia em que eu morrer de vez
há de chover como tu choras.

Vejam-me só como esse verde
na tua íris madurece,
no dia em que eu não tiver sede
será por mim a tua prece.

Vejam-me só como hoje dorme
nesta vontade o extinto pulso,
no dia em que eu me for de fome
soltarás o último soluço.


quarta-feira, 4 de março de 2020

este amor antigo


É fascínio com barrunto
de noitibó insistente
por burguesas sem assunto
no passeio desta gente.

Também é outro domingo,
nas suas mãos o missal,
se um subtil olhar distingo
junto à pia baptismal.

Mas é acima de tudo
a janela e toda a lua
se por máscara no Entrudo
ela se veste de nua.

segunda-feira, 2 de março de 2020

SONETO DO APÁTRIDA


Se por acaso fosses de Lisboa
e arranhasses os erres à francesa,
e arranjasses maneira, com certeza,
de perder sempre e sempre estar na boa;

se te poluísse o riu à beira-mar
e de friu tiritasses pelo inverno,
e fosses prá-frentex sem ser moderno,
homem comum de um modo peculiar;

se ali pelo Natal, envergonhado,
te visitasse um pouco de passado
nos olhos de um sobrinho do seu tiu;

bem melhor estarias do que agora,
de esperanças ancião que já não chora,
apátrida de um mundo que ruiu.