quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Soneto da São Silvestre de 2020



A trinta e um de dezembro apuro o ouvido
e afino a vista, já ninguém me tira
ser antónio, estou mais que decidido
a buscar em janeiro essa vampira
que me dessangre calma, generosa,
que, moribundo eu já, me parta os ossos
e me sugue o tutano enquanto goza
de uma vida escusada e sem remorsos.
Duas romãs, um par de diospiros,
pouco antes da tragédia talvez tente
duas léguas na estrada e com suspiros
na última são silvestre, é evidente.
De tudo isto a minha única mentira
há de ser em janeiro a tal vampira.


PS1: A São Silvestre, nesta década a minha primeira contra mim apenas, entretanto já se correu (Casarão-Dagorda-Peral-Casarão: 10 km, 48m56s. Não está mal, fiz o que pude sem ter quem puxasse por mim...)
PS2: Definitivamente, a partir de hoje digo diospiros e não dióspiros... Zeus não se importará.
PS3: Obrigado à bela romãzeira-diospireira, assim mesmo e não necessariamente plantada.
PS4: A vampira, ofereceram-ma certas passagens do enorme Romain Gary, em "A Promessa". Por exemplo: «Sempre sonhei ser arruinado moral, física e materialmente por uma mulher: deve ser maravilhoso, apesar de tudo, poder fazer alguma coisa de grande na vida" (p. 138, trad. Augusto Abelaira, Livros do Brasil, 2019).

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXVI

Algo me diz que vislumbras
a tristeza que me habita.
Imagino-te às vezes noite e sono,
espera e sonho lutando por mim
ou por tudo o que um dia prometi.
Mas já não sou promissor, basta seres
mais decidida para o entenderes.
Antes disso e se puderes
deixa uma garrafa cheia
no lugar da vazia.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXV


Serei velho adolescente, derradeiro
canto de cisne
 enquanto me deres
dois ou três segundos de tontura
na tua atenção.
Mas que isso te não ocupe: incrédulo
de seres todas as mulheres,
nunca serei o homem que não queres.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

quadra 79


Toda a noite o meu outono
geme e tirita de inverno
que toda a noite sem sono
ardo e crepito no inferno.

quadra 78

Como conciliar o sono
se neste frio de inverno
em dias de ainda outono
também arde o meu inferno?

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

primeiro café da tarde XXXIV


Confunde-me essa tua busca exaustiva das simetrias.
Acreditas mesmo nelas?
Pondo que existem, passa-te ao lado
o encanto dos breves e ligeiros desencontros,
o sorriso com que chegas, o chapéu com que partes?
E nós? Preferes ignorar ao espelho
a longa e completa assimetria
do nosso rasto, da nossa alma?

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

quadra 77


Chama-se homem esse bicho
de sonho, espera e alma acesa, 
incapaz do que é preciso
para amar a natureza.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

quadra 76



Desta infinita chatice,
deste tempo malfazejo,
sobrará a covidice
de me negares um beijo.

terça-feira, 17 de novembro de 2020

quase como tu


Como tu, sou papagaio,
minto e cedo à carne fraca;
como tu, mal me distraio
também corto na casaca.

Como tu, com pouco ou nada
para o burgo contribuo;
como tu, não dou passada
que não seja de recuo.

Como tu, fiz-me acrobata
no céu raso deste à toa;
já vês: apenas me falta,
como tu, ser de Lisboa.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

quadra 75


Como tu, sou papagaio,
minto e cedo à carne fraca;
como tu, mal me distraio
também corto na casaca.

domingo, 15 de novembro de 2020

quadra 74


Só me tornei afeiçoado
aos pormenores da vida,
quando aceitei, já cansado,
que ela está quase perdida.

sábado, 14 de novembro de 2020

quadra 73


Como é estranha a vida em sonho,
como à parte dos meus dias,
quanta mentira lhe ponho
se ainda há pouco me sorrias.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

homem


Do que fui sou homem livre,
sem apego à história e ao verbo,
pouco me importa o que tive
se o que tive não conservo.

Faço por que seja um fio
este caminho que rasgo,
que ao homem basta o respiro
para logo fazer estrago.

Luto por erros ligeiros,
propensos quase ao olvido,
para ser homem a sério
há que não ter existido.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

quadra 72


Se aconteceu habituar-me
a esta distância entre nós,
para morrer de saudade
basta ouvir a tua voz.

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

quadra 71


Como sempre despertou-me,
sem prodígio nem surpresa,
no murmúrio do teu nome
a minha única certeza.

terça-feira, 10 de novembro de 2020

primeiro café da tarde XXXIII

À Irmã Maria José de Belém (Emília Matos),
a querida Tia Madre (10.ago.1943-02.11.2020)


Recordarei
com o riso fácil e largo
o amor às narrativas,
a chamada aos domingos,
a missão que se faz vida.
Recordarei,
porque mo ensinaste,
quão grande a coragem de crer em deus,
quão maior a arrogância de o negar.
Ignoro quantos verões me faltam
destes de não chegares,
mas enquanto os houver
recordarei.


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

epifanias




Representante do que uns designam de realismo sujo e outros apenas de escrita minimalista, Raymond Carver aborda o quotidiano, numa linguagem quotidiana, com uma sobriedade quotidiana.

A proposta é a de uma ausência de literatura. Mas é uma proposta mal sucedida: os doze episódios do livro são percorridos por desempregados, alcoólicos, divorciados e desentendidos, gente fazendo pela vida sob uma pena que, além de dominar os segredos do diálogo e da narrativa, detém a mestria da sua conjugação.

Acresce que resultam epifanias e redenções de pequenas quebras de rotina, de frases simples, de gestos previsíveis. E também aqui há literatura.


Catedral
Raymond Carver
Trad.: João Tordo
2010 (original: 1983)

domingo, 8 de novembro de 2020

para ser maior




Raskólnikov leva uma vida de extrema pobreza: abandona os estudos por falta de dinheiro, encosta o sono numa almofada de roupa velha, deve já várias rendas do cubículo que habita, come quando calha. Talvez seja tudo isto o alimento para a lição que retira da História: vários grandes homens, como ele crê ser, tiveram de cometer crimes no início da vida para poder cumprir o seu destino. E fizeram-no sem hesitações nem remorsos.

Decide seguir o exemplo e assassinar uma velha agiota, um ser menor, desnecessário, prejudicial à sociedade (um piolho, nas suas palavras) e cujo dinheiro pode ser usado em seu proveito e dos outros. Já de início, no entanto, hesita. E quando finalmente se decide, comete vários erros. O maior dos quais o de assassinar também a irmã da agiota, que entretanto surge na cena do crime, a casa onde ambas vivem. A atrapalhação é tanta que, embora retire da casa algumas jóias e uma carteira, decide escondê-las até de si próprio.

A obra é uma longa viagem pela mente de Raskólnikov, os temores e as dúvidas que antecedem e, sobretudo, se sucedem ao crime. Talvez, afinal, ele não seja o grande homem que imaginou ser. Talvez por isso mereça o castigo que merecem os homens menores. E é ele próprio que vai de encontro, aos poucos, desse castigo. O seu percurso é, no fundo, o de descobrir que também é um piolho. E a redenção só acontece no momento em que percebe que um homem banal também pode ser amado.

Crime e Castigo
Dostoiévski
Trad.: Nina Guerra e Filipe Guerra
Editorial Presença, 2001

haikai xxi


pardais aninhados
nos esconsos do nosso tecto:
o regresso a casa.

sábado, 7 de novembro de 2020

quadra 70

As sortes são fugidias,
não iluda o reviralho:
a estrampalhar-nos os dias
há de haver sempre um trampalho.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

piccolino

 


«Se conheço bem o meu senhor, ele não poderá passar muito tempo sem o seu anão». Quem o diz é o próprio anão, que vai descrevendo no seu diário o ódio e o nojo que sente pela espécie humana, incluindo ele próprio e os outros anões. No fundo, é o desprezo pela vulnerabilidade que perpassa este grande livro de Pär Lagerkvist (1891-1974).

Num dos antigos principados da actual Itália e numa época do Renascimento onde grassavam a fome, a guerra e a peste, o anão Piccolino é a personificação do mal. A publicação do livro em 1944 e o nosso próprio auto-conhecimento levam-nos a perceber que esse mal é intemporal. O mal é intrínseco à espécie humana.

Com Piccolino percebemos como cada um de nós tem a tendência, por mais longínqua que nos pareça, para comparar e catalogar. Para odiar o melhor porque é melhor. Para odiar o pior porque é pior. Para odiar o igual porque nos repete. Quem não tem um Piccolino dentro de si? Devemos estar sempre vigilantes para que ele não se manifeste.



O Anão
Pär Lagerkvist
Trad.: João Pedro de Andrade (original de 1944: Dvärgen)
Ed.: Antígona

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

a transparência do essencial

Ainda antes de O Perfume (1985) e A Pomba (1987), Patrick Süskind encetava com este O Contrabaixo (1981) a sua análise do poder de pequenos pormenores e acontecimentos na vida das pessoas.

Pela posição, pela visibilidade e pela função, o contrabaixo dir-se-ia transparente. E, no entanto, é o único instrumento imprescindível, aquele sem o qual todos falhariam numa orquestra. Ele vinca e simboliza a existência do seu intérprete.

Talvez tenha de ser assim com muitos. São sempre necessários aqueles que acendem as luzes com que outros se iluminam. O drama é que não sejam e talvez não possam ser reconhecidos. Como as notas graves com que um contrabaixo constrói o caminho.


El Contrabajo
Patrick Süskind
Trad.: Pilar Giralt Gorina (original de 1981: Der Kontrabass)
Ed.: Seix Barral

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

quase tudo isto


Durante alguns anos, Bill Bryson decidiu compreender melhor a "história" do universo, desde o Big Bang até o aparecimento e evolução do homem. E como tinha dificuldade em compreender a literatura sobre os temas em causa, decidiu ser ele a abordá-los.

O resultado é o seu A Short History of Nearly Everything. Escrito por um leigo, é de leitura fácil e estimulante. Também não parece conter grandes incorrecções: as que se encontram são as da própria ciência, que de 2003 para cá, como não podia deixar de ser, as foi actualizando.

A narração das ideias e descobertas que nos ajudam a compreender o mundo é feita sempre com o foco nas personalidades e contradições, generosidades e ódios, ambições e desapegos dos seus protagonistas. E talvez o maior interesse deste livro esteja mesmo nesta verdadeira história, a"pequena história" dos homens que vêm aumentando o nosso conhecimento de quase tudo.

A Short History of Nearly Everything
Bill Bryson
Black Swan
2004 (1.ª ed.: 2003)

terça-feira, 3 de novembro de 2020

adolescência roubada



Quatro de agosto de 1944. Vinte e cinco meses após se terem escondido num anexo secreto dos escritórios da Opekta, Anne Frank e mais sete pessoas, entre as quais os pais e a irmã, são descobertos e presos pelos nazis. Com excepção de Otto, o seu pai, todos morreriam nos campos de extermínio para onde foram enviados. Anne Frank e a irmã Margot sucumbiriam ao tifo que alastrou em Bergen-Belsen no inverno de 1944/1945.

Mas não caiu nas mãos dos nazis um pedaço da vida de Anne: o diário que ela manteve entre 12 de junho de 1942, data do seu décimo-terceiro aniversário, e 1 de agosto de 1944. Esquecido no anexo e recuperado mais tarde pelo pai, é o testemunho de uma adolescência roubada. Nele, Anne vai dando conta dos conflitos entre os habitantes confinados ao anexo; das discussões acerca de temas tão díspares como a política, a guerra, as refeições; do uso cuidadoso do autoclismo para não chamar a atenção dos funcionários em baixo; dos sonhos adiados; dos planos para o futuro; da impossibilidade de ter um espaço para si; da tristeza e da esperança; do medo e do alívio. Kitty, a personagem que ela inventa por trás das páginas do diário, é quem que lhe permite lidar com tudo isto.

Na primavera de 1944, Anne Frank começa a rever o seu diário. Tem a intenção de dá-lo a conhecer ao mundo depois da guerra. Esta é a versão dita definitiva, sem os cortes e correcções a que o pai o sujeitaria antes de o publicar em 1947. A descoberta da sexualidade; a atracção por Peter, outro dos habitantes do anexo; a relação difícil com a mãe – tudo aqui volta a ser confessado a Kitty. Tudo aqui é revivido por esta infeliz rapariga que nos retratos nos aparece sempre com um sorriso, um suave e contido sorriso, e cujas palavras nunca desistem da vida.


The Diary of a Young Girl
Anne Frank
Eds. Otto J. Frank, Mirjam Pressler
Trad. Susan Massotty
2012
Original: Het Achterhuis [O Anexo Secreto]

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

cão fiel do nosso exagero


e nem por isso bebi
e nem às tantas de ti
pedaço de fantasia
em mesa de esquecimento
o corpo que percorria
a noite que percorrendo

e nem por sonos sonhei
e nem de buscas te sei
sussurros com pedra fria
palavras que à boca invento
digamos que não havia
mais tu do que não havendo

e nem por muito se quis
e nenhuma alma condiz
talvez como quem te queira
verdades como te quero
mentiras desta maneira
em tempos já fui sincero

e nem por tudo o que faz
furtivo artista capaz
de saltos sob a fogueira
em cinzas do meu desvelo
por brasas como se esgueira
cão fiel do nosso exagero

               Leceia e 27 de outubro em 2018

domingo, 1 de novembro de 2020

descendente de barão





Eulálio d'Assumpção, centenário orgulhoso e descendente de barão, derrama as suas memórias no leito do hospital onde a morte o espera. Repisa-as para não se esquecer de quem é: «Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço de alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar.»

À medida que a medicação e a proximidade do fim lhe vão retirando lucidez, as memórias confundem-se, assim como se confundem aqueles com quem as partilha: a enfermeira que melhor o trata, os outros enfermeiros e os médicos mal-humorados, a filha, alguém que toma pelo pai assassinado há muito. Mas uma dessas memórias serve sempre de esteio a todas as outras: a do inesperado e repentino desaparecimento da sua mulher, a exuberante Matilde de «pele castanha», pouco depois do nascimento da filha de ambos.

O texto de Chico Buarque foge de um modo exímio à narrativa linear, plasmando o pensamento reinventado e confuso do velho moribundo e fixando de um modo natural o preconceito e a arrogância de um homem que se orgulha de descender de gente nobre e importante e que, apesar de tudo, não resiste aos encantos de uma bela mulata.

Leite Derramado
Chico Buarque
2009
D. Quixote

sábado, 31 de outubro de 2020

primeiro café da tarde XXXII


Corria o ano de mil novecentos e noventa e quatro,
limpava-se longamente a estátua do marquês e eu
endeusava um par de mulheres.
Nesse tempo era costume essa minha tendência, ninguém
era tão jovem, excessivo, prometeico como eu,
havia mais morte do que hoje no meu corpo de ontem
e, como é óbvio, mais sonho.

Era o ano em que se limpava longamente o marquês
e em várias camas amor embalava,
Vénus partia com o olhar de quem chegasse
Afrodite chegava com a certeza de quem partisse.
Eu? Eu limitava-me a inventar o tempo,
subtil arrogante como os bons xadrezistas.

No tabuleiro do ano em que se limpava longamente
a estátua do marquês,
sessenta e quatro casas para duas deusas,
nenhuma para mim.

arrependimento


Aborreço o alvoroço à minha volta,
a TV, as conversas, o paciente
olhar dos outros para o meu desnorte,
o trabalho escusado sobre a porta,
as pantufas até de quem pretende
calmar ao fim da tarde o meu galope.

Mas o que mais aborreço
é este arrependimento,
rato sôfrego cá dentro:
amigo do meu amigo
gostaria de ter sido
na tormenta que me coube,
de ter travado em palavra
a hipocrisia que a trava
sempre que a vida ma trouxe.

Aborreço que todos os domingos
as melgas se organizem e por turnos
venham saber se continuo vivo,
aborreço que os espectros desavindos
no meu passado de animal nocturno
sempre me assombrem sem passar recibo.

Mas o que mais aborreço
é este arrependimento,
rato sôfrego cá dentro:
imune ao medo e ao perigo
de perder o já perdido,
quem me dera ter amado
as coisas simples da vida
sem a ânsia de quem precisa
nem o peso do passado.

               2018, outubro, Leceia

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Adolf e Gustl


August Kubizek e Adolf Hitler conhecem-se, ainda adolescentes, quando assistem a uma ópera em Linz. Estamos no final de 1904 e é o início de uma amizade assimétrica, assente no amor de ambos pela música e numa complementaridade feliz: Adolf precisa de alguém com quem partilhar as suas ideias e fantasias, August é bom ouvinte e admira o espírito crítico e a confiança em si próprio que o outro demonstra.

No início de 1908, pouco depois de Adolf ter sido rejeitado pela Academia de Belas Artes de Viena e de a sua mãe ter morrido, ele consegue convencer o pai de August a deixá-lo prestar provas no Conservatório em Viena. August é bem-sucedido e inicia os seus estudos musicais. Vivem juntos durante cinco meses num quarto infestado e escuro da capital austro-húngara, August seguindo uma educação formal, Adolf estudando e interessando-se literalmente por tudo, apesar de as suas paixões maiores serem a arquitectura e a política. As leituras ávidas, nos livros e na sociedade vienense, apuram o pensamento do futuro Führer.

A aversão a que o contradigam, as dificuldades económicas crescentes, talvez algum mal-estar face ao sucesso de August no Conservatório, precipitam a separação: durante uma ausência deste, Adolf abandona o quarto que ambos partilham. O reencontro dá-se apenas trinta anos depois, após a anexação austríaca e às portas da Grande Guerra. As ideias e fantasias que Adolf erguera em jovem para o povo germânico estão em vias de concretização. E apesar de August nos garantir não concordar com muitas delas, é inegável ao longo do texto a amizade e a admiração que nunca deixou de sentir por Adolf Hitler.

The Young Hitler I Knew
August Kubizek
2011
Frontline Books
(Obra Original: Adolf Hitler, Mein Jugenfreund, 1953)

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

primeiro café da tarde XXXI


Janela é vislumbre:
memória do que não-fomos,
abertura para o que deveríamos não-ser,
prenúncio do que não-seremos.




pouco me importa

Poema para Moliendo Café, de Hugo Blanco

Pouco me importa quantas vezes junto à sua porta
me apunhalou a sangue frio por ser eu quem sou,
pouco me importa e na verdade nem receio a hora
do riso a mais que ela desata nos meus funerais.

Se ainda me quer mal, pouco me importa:
a morte tem um quê de quase morta
se não acaba a manhã nem a noite é fatal.

               Leceia e 9 de julho em 2018

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

primeiro café da tarde XXX


De início era para ser diferente:
isto pertencia e não era suposto
de modo algum sobressair.

O busílis começou quando
algumas concretizações d'isto se tornaram memoráveis
a outras concretizações d'isto.

Surgiram a ausência, o ciúme, a inveja,
o vazio, a morte, a falta que me fazes.

Cresceu a esperança de que, seja como for,
ao menos um dia também eu te falte.

a primeira maratona de um poeta




Turb(i)-, pode ver-se no Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa, é um "elemento de formação de palavras que exprime a ideia de agitação, desordem". À entrada do seu primeiro romance, Chico Buarque apresenta-nos algumas palavras que esse elemento integra. Entre elas: estorvo, distúrbio, perturbação, turvo, turbulência, turbilhão, trovão, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar.

Um homem bate à porta. Quem será? Lembra alguém. Tem barba. Talvez o protagonista "já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto". Num exercício onírico em que a escrita sobressai face ao enredo, o protagonista vagueia a partir daí, em fuga ou não, em busca ou não, desistente ou não, num mundo estranho. Ou talvez apenas num mundo que é um estorvo porque estorvo são os outros, ele próprio, a vida.

O texto é o da primeira maratona de um poeta: senhora da narração, a linguagem não dá tréguas ao leitor. Nesse sentido, aqui e ali, a surpresa de me ter evocado uma outra obra cuja filigrana me enredou há uns tempos: "um pinguim na garagem" de um tal de luís caminha.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

o regresso do soldado


Poema para a Serenata de Schubert D 950 n.º 4.
[Poema original de Ludwig Rellstab: "Leise flehen meine Lieder"]

Ninguém sabe em toda a aldeia
o que ele viu por lá,
quantos corpos nas trincheiras
tem a dor que traz.

Vem diferente, olha de lado,
já não diz olá;
mata ainda, corre o boato,
neste vão de paz.

Cabisbaixo, mãos nos bolsos,
cai de quando em vez,
destruído de remorsos
pelo mal que fez.

Os seus olhos entretanto
são rubis de dor,
sangue e choro mesmo quando
toda a luz se for.

É talvez herói de guerra,
desertor talvez,
morto como quem só espera
pela sua vez.


               Leceia e 2 de julho em 2018

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

o poder desnudado



O jovem D. Filipe, IV de Espanha, III de Portugal, encontra o paraíso nos braços da cortesã Marfisa. Saber-se-á por palavras desta que o soberano não o é em amores e que ao quarto ensaio nem chegou a arrancar. Mas também se saberá que tem potencial e que com mais uns tantos encontros aprenderia a agradar mulheres.

Seja como for, a perfeição para o rei foi o corpo nu da cortesã adormecida. De regresso ao palácio e guloso de beleza, faz saber à rainha que deseja vê-la nua. A novidade tem pavio curto e em breve todo o reino a comenta. E se o povo não acha nisso nada de mais, já na corte soa o alarme para as consequências que tamanho pecado teria nos destinos de Espanha. Deus não perdoa desaforos.

Com fina ironia, vocabulário original e narrativa escorreita, Ballester apresenta-nos os argumentos e enredos com que clero e nobreza pretendem evitar ou promover o que para uns é pecado e para outros o simples cumprimento da natureza. As lutas de bastidores, as intrigas, a ânsia de poder, as solicitações de autos de fé são os mesmíssimos na corte dos Áustrias como em qualquer grupelho político desses em que hoje votamos.

Cronica del Rey Pasmado
Gonzalo Torrente Ballester
1989

domingo, 25 de outubro de 2020

quadra 69

in Stylommatophora

Por aqui não tenho império
nem promessa ao que hoje houver,
sem lamento nem mistério
sou nas mãos de um deus qualquer.

sábado, 24 de outubro de 2020

porque arrulham e as rolas são aves


Pensei dar-lhes o nome de rolas
que nas nossas memórias ficasse:
têm a textura das aves em fuga
e o desejo de fuga das aves,
o arrulho das noites em espera
o aroma impreciso do que há-de.

Porque agora já tudo me sobra,
que faço eu do que nunca me cabe?
Pensei dar-lhes o nome de rolas
porque arrulham e as rolas são aves.

Quando o amor nesses dias poalhava
de mistérios teu corpo sem dono,
quis mantê-las em conchas de mão,
concebê-las em sonos de sonho,
percorrê-las enquanto houvesse onde
conhecê-las em quandos de outono.

Que faço eu do que nunca foi meu,
se hoje acabo e já nada me cabe?
Talvez dar-lhes o nome de rolas
porque arrulham e as rolas são aves.

                    Leceia e 25 de junho em 2018 (1.ª versão: Lisboa em 1991)

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

dois modos de passar por aqui




Narciso, amante das catalogações, cientista, pensador. Goldmund, amante da natureza, sedutor, artista. Estes dois homens tão diferentes, opostos no jogo de artifício de Hermann Hesse (1877-1962), completam-se e atraem-se.

O beijo de uma cigana e um conselho de Narciso encetam a errância de Goldmund na busca de si através dos sentidos, da sensualidade e da arte, da relação com os outros e da forma que os materiais adquirem sob o trabalho das suas mãos.

É Goldmund quem encontra a mãe primordial, essa que sempre procurou e que nunca conseguiu representar, essa que dá um sentido à sua existência e que o chama de novo para dentro de si. No fim, pergunta ao amigo: «Como poderás morrer um dia, Narciso, se não tens Mãe? Sem Mãe não é possível amar. Sem Mãe não é possível morrer.» Não morre quem nunca viveu.

Narciso y Goldmundo
Hermann Hesse
Editorial Sudamericana
Luis Tobío [trad.]

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

quadra 66

foto Wikipedia

Possa eu dizer de tudo isto,
quando sofrer xeque-mate,
que avancei preso por fios
mas nunca fui bonifrate.



quarta-feira, 21 de outubro de 2020

da própria cicuta


Eu hoje olhei para trás
como quem olhasse em frente
e senti que era capaz
de ter feito bem diferente.

Podia ter sobrevoado
este abismo em estar de menos,
não ter ido assim cansado
por caminhos tão pequenos.

Podia ser de combate
todo o peso no meu rosto
não tivesse posto a tarde
entre as tardes do sol-posto.

Podia que à flor da pele
me doesse a dor impoluta
de quem por taça fiel
beba da própria cicuta.

                         Leceia, 2018 [1.ª versão: Lisboa, 2011]

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Também Asperger




Em homenagem aos seus estudos de psicopatia autista, Hans Asperger (1906-1980) tem hoje o nome associado a uma síndrome pertencente ao espectro do autismo: a síndrome de Asperger. Mas este famoso psiquiatra infantil, director da Clínica de Educação Curativa da Universidade de Viena no período da anexação alemã, mostrava-se no início da carreira avesso a diagnósticos e acreditava que a atenção e o cuidado necessários davam oportunidades de desenvolvimento a qualquer criança.

Entretanto, e num intervalo temporal bastante curto, as ideias nacional-socialistas foram-se tornando manifestas no conteúdo e na retórica dos seus textos. A partir de certa altura começou a defender que algumas crianças, pela sua associabilidade, eram casos perdidos e um fardo para a comunidade germânica (Volk). Hoje sabe-se que Asperger contribuiu para o programa de 'eutanásia' infantil levado a cabo no Terceiro Reich, tendo enviado, directa e indirectamente, várias crianças para a clínica de Spiegelgrund, onde algumas eram "educadas" e outras eram sujeitas a experiências científicas e paulatinamente debilitadas com barbitúricos até morrerem.

Há quem defenda que Asperger não teve opção e que muitas das suas decisões foram até no sentido contrário, de proteger crianças em perigo. Mas isso não justifica as que ele tomou com base no seu diagnóstico de "criança não educável". Asperger, que teve mesmo a coragem de não se inscrever no partido nazi nem de abandonar a prática católica durante todo o Terceiro Reich, nunca pôs em causa o regime e agiu sempre por moto próprio. Várias funções a que se foi candidatando exigiam uma atitude eugenista e ele sabia-o.

Título: Asperger's Children - The origins of autism in nazi Vienna
Autor: Edith Sheffer
Data: 2018
Editora: W. W. Norton & Company

segunda-feira, 19 de outubro de 2020


Quanto caminho te falta
de sol antes da hora exacta
e essa hora que breu a faz?
No teu olhar quantas estrelas
se extinguirão e ao perdê-las
quanto pó te cobrirá?

Se eu não cair, por castigo,
antes de ti ou contigo,
com que arte serei de estar?
Se essa espera em corpo gasto
for sepulcro do teu rasto,
quanto pó me cobrirá?

E quando, como previsto,
tudo faltar a tudo isto,
que mais há para inventar?
O cadáver do que fomos
mais o cadáver em torno,
quanto pó os cobrirá?

Dará as cartas de novo
à mesa do mesmo jogo
o deus que de início as dá?
Ou também ele será nada
e, pó sobre pó, não tarda,
quanto pó nos cobrirá?

                              Leceia, 11 de maio de 2018

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

primeiro café da tarde XXIX


Lembra-me da era pré-covídea, já lá vão três décadas
e ainda isso não era pecado,
as manhãs que passei à tua porta
de olhos ávidos e gaforina ao vento
à espera de que chegasse a hora.

A hora nunca era a mesma
e, consoante a que fosse, assim se me guardava
mais ou menos o coração da tresloucada correria
que era o sintoma da tua existência.

Quando isto se descovidizar,
espero ter o à-vontade necessário para poder confidenciar-te,
cara a cara na esperança de que mo perdoes,
que fui investigador exaustivo do teu caminho.

Também na esperança de que investigação
e confidência te lisonjeiem,
espero ter o à-vontade necessário
para a minha chegada e a tua partida.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

primeiro café da tarde XXVIII


Tens razão 
no que dizes acerca

da minha deplorável tendência para desopilar o fígado
com estereótipos à mesa do café,

deste penoso hábito com que insisto
em desenrolar a mesma história desanxabida.


Entendo

que rejeites os pretextos que dou
para as mulheres serem assim e os homens assado,
os portugueses por aqui e os espanhóis por ali,

que negues humor, mesmo eu sorrindo,
aos supostos cambiantes das minhas aborridas
e emolientes narrativas cinzentas.


Irrita-te, bem sei que te irrita,
sob a ameaça do silêncio eu não saber calar,
no ábaco da existência ser nula a soma
do que penso com o que faço e do que faço com o que digo.


Como é evidente, falta-te aceitar
que sou um mau café.
Só depois de o fazeres, deixarás de sofrer
a trágica comédia dos meus dias.

sábado, 10 de outubro de 2020

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

primeiro café da tarde XXVII


À saída de criança, escrevia autobiografias futuras.
Eram de má qualidade, apesar de alinhavadas
no seio de Afrodite e no sonho de Alexandre.

Só anos mais tarde se descobriu incapaz
para os compromissos e a rotina da carne a dois.
E anos ainda mais tarde,
quando o exército o arrebatou ao colo da mãe,
percebeu que abominava liderar
que tentassem liderá-lo.

Esperavam-no muitas mais tareias,
reinvenções e redescobertas do que não buscava.
Talvez porque tenha passado por tudo
menor do que é,
foi-se resumindo a depois, foi recuando
a não agora.

Hoje ainda poderia arranjar uma história no cômputo dos fracassos.
Sempre se arranja.
Mas hoje que a inexorável passagem do tempo lho permite,
hoje não lhe apetece.
Continuam a interessar-lhe apenas
as autobiografia futuras, presente exercício de vaidade,
e basta atentar à sua vida em fio, àquele
ar fraldiqueiro com que vai à guerra,
para entendermos que ao meio século e tal de vida
se lhe acabaram as narrativas.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

primeiro café da tarde XXVI


Desconheço em que momento da vida
se revelou ser o que na aparência estava,
apenas sei que hoje não me arrependo
de muitas decisões que já chorei.
Tivessem sido outros os meus sonhos,
as minhas encruzilhadas, os meus apegos e desapegos,
tivesse tido a oportunidade de outra vida,
e as tentações teriam sido as mesmas.
Talvez pudesse recordar agora mais sorte,
talvez mais azar, talvez mais gente
entendendo e aceitando este apelo do transitório,
esta busca da partida.
Nada mais do que isso.
Na minha lápide ficaria bem
que fiz do amor um simples endereço
mas amei.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

quadra 68


Ainda hoje me pergunto
que valor tem o meu dia
se nunca encontrei assunto
para o que a vida pedia.

quadra 67


Vive a vida instante a instante,
não descanses demasiado,
a morte é já o bastante
para quem anda cansado.

                                      Lx, 1985

domingo, 4 de outubro de 2020

soneto à tua partida


António Rodrigues dos Santos (1942-1999)

Vão contigo, meu pai, todos os dias
de voar longe com as tuas asas,
tão robustas, serenas, decididas,
meu pai: tão minhas sem as ter roubadas.

Tanto tinha de tua a minha vida
que isto agora é só fim, vazio, nada,
abandono e tristeza, alma perdida
de saber que não voltas para casa.

O tempo acaba no teu corpo frio
sob o desassossego dos meus beijos
inúteis, pai, que já não tens regresso.

Escutasses o lamento do teu filho
nesta imensa recusa, neste anseio
de que, existindo, Deus te faça eterno.


                             Lisboa, maio de 1999

sábado, 3 de outubro de 2020

primeiro café da tarde XXV


Pergunto-me
se esta perene beleza multicolor
me invade com o fito do invasor,
se a sua vida me dana e ao mundo que escolhi,
se acaso o escolhi,
se tê-la nos meus dias não é antes
um paulatino, gradual, certo, imprevisto
desencolhimento do fim,
se acaso é fim,
se é acaso o meu fim,
se é o meu desencolhimento acaso.
Pergunto-me se esta perene beleza multicolor
me desarruma e,
se me desarruma,
desarruma porquê
desarruma o quê em mim?,
se me desatina e,
se me desatina,
que perco eu com o desatino
que perco eu do que não é meu?
Pergunto-me se o melhor remédio para o desconforto
ante o alarde desta perene beleza multicolor
não será contemplar e sorrir,
contemplar, sorrir e abanar a cabeça
num gesto de tão parvo,
tão parvo que cheguei aqui,
contemplar, sorrir e abanar a cabeça
sem rancor ao que fui,
sem inveja ao que poderia ter sido,
sem mágoa sequer pelo estafermo que estou.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

primeiro café da tarde XXIV


Quem me dera, amoriga, como tu
não me lembrar de nada, talvez dizer:
se as vidas bifurcam num par de meses
o que será delas num par de décadas...
Ao menos pudesse dizer que me lembro
de muito pouco, que só quando o azar
me esgaravata as memórias
ainda sofro a noite prolongada
que teve início na tua ausência.
Daria tudo para que no pouco do que me lembro
houvesse pouco mais do que este despertar sem remédio
do que uma pitada do teu sorriso a trinta de setembro,
do que um adeus.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

primeiro café da tarde XXIII


Setembro me assisa, a mim que estou
ora hilota em caterva de passados
ora caprichoso sem tempo.
Setembro foi outro monte
de pedras levantado,
setembro o regresso da pânria
ao sol mais fagueiro.




quarta-feira, 23 de setembro de 2020

primeiro café da tarde XXII


É-me subterrâneo o fim desde o dia
em que despertei e o outro morria,
quem sabe daí este ar sorridente
que é mais de saber-te que de contente.
Um pouco longínquo, eu sei, mas de mim,
das esperas descabidas que já tive,
de amanhãs para os quais eu nunca vim.
Mais uma tentativa de quem vive.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

primeiro café da tarde XXI



Tarde ou cedo o homem há de ser homem,
presa e predador das palavras e acima de tudo
mau. Tarde ou cedo, há de pisar o céu de alguém
sem querer saber de quem.
Tarde ou cedo a sua natureza hirudínea
há de secar o mais anódino que não lhe seja igual
apenas e porque não lhe seja igual.
Tarde ou cedo, querulante e falso,
não há de ser que não remenique
não há de estar que não chame ocupação
à alegria das hirondinas.
Tarde ou cedo, à parte vento, nostalgia e marte,
o homem há de ser homem.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

primeiro café da tarde XX

A Jorge Fortes. Para ele, eu ando metido em trabalhos de Sísifo.


É comum que ao fim da tarde o sol me encontre
de moscatel na mão à espera da noite lampa,
os olhos postos na pedra extirpada
que do chão se ergue acima do que sou.
É essa a hora em que peso o tripálio do dia,
enquanto evaporo na língua a serôdia
solução sob o peso da penumbra.
É essa a hora de Sísifo sem amargura,
ardiloso e rotinado Sísifo no trabalho
da minha retina.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

primeiro café da tarde XVIII


Chatos. Que chatos são os teus amigos.
Ao fim da manhã chegam e depois
da usual mesura ao nosso amor antigo
pedem que eu te defina com um termo ou dois.
Um me basta, confesso-lhes, tu és
por arte e natureza indefinível.
Desiludidos, vão-se embora sem café.
O Antóneo? Que rasura, pá, que baixo nível.


quinta-feira, 6 de agosto de 2020

primeiro café da tarde XIX


O riso ao colo
do nosso fácil desprendimento,
coabitávamos no paraíso
e não havia tempo.

Entretanto arranjámos tempo
para ter tempo
e tempo de sobra
para não o ter.

Quem diria, se pudesse dizê-lo, que um dia
prescindiríamos de nós?
Não haver tempo era o nosso amor.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

primeiro café da tarde XVII


A insuficiência mitral é ligeira e ligeira
a hipertrofia auricular esquerda.
Também ligeira é a hérnia na cárdia
assim como ligeira parece a decadência do fígado.
Ligeiro o ódio aos condutores assassinos,
ligeira a burguesice,
ligeiros estes breves desatinos
que tornam ligeira a velhice.
Ligeira a anemia,
ligeira a vontade na corrida,
ligeira a hipercolesterolemia,
ligeira,
muito ligeira,
a vida.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

SONETO DOS SÁBIOS

Retrato de João Santos (Savimbi)

(Salomão sonhando com a rainha de Sabá,
inspirado num retrato de João Santos - Savimbi)

Descubro que não está morta,
que esta noite baterá
outra vez à minha porta
a rainha de Sabá.
Sem cortejo nem fartura,
sem alarde nem aviso,
só ela à minha procura
porque é disso que eu preciso.

No meu corpo impaciente
o febril olhar despido,
neste fastio os seus lábios
inventando o que ela invente,
brincaremos ao olvido
e, meu Deus, seremos sábios!

                                                                             Cadaval e 20 de julho em 2020

quarta-feira, 6 de maio de 2020

6 de maio


Que dia o que agora começa!
Há de fazer-te, sob a lua,
A certa e sólida promessa
De que és mulher e a estrela é tua.
Irmã da luz, não tenhas pressa:
Já ri o sol por te encontrar
Ao fim da tarde junto ao mar.

domingo, 3 de maio de 2020

SONETO DE UMA VIDA INTEIRA


Quando fores velhinha e nós olvido
e eu do que sou nem rasto nem ruína,
talvez reencontres num papel perdido
o homem que nestes versos te imagina.

Sempre à espera de um troço repetido
na tua busca sempre de menina,
pus neles o sinal mais bem medido
de uma longa jornada clandestina.

Pois fiz de cada instante um desafio,
uma nova alvorada da cegueira
com que me vias tiritar de frio.

Pois dia a dia fiz da vida inteira
o sonho de um só dia. E desconfio
que faria outra vez de igual maneira.

quinta-feira, 23 de abril de 2020

primeiro café da tarde XVI



Se em tempos covídeos um dia destes
chegarem as primeiras
abordagens hirudíneas,
não te surpreendas, amigo.
Estar aqui é tender para o desastre
e recomenda-se guardar sangue
para o sangue que for preciso.
Bem sei que és um caso
banal entre os que não se acautelam.
Ainda assim,
não te surpreendas, amigo.
És enxarcado nos ossos,
pouco importa que tragam o dilúvio.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

proposta


Quando chegares a casa
hás de contar-me o teu dia;
ainda que eu seja homem
de silêncios e alma fria,
isto de andares calada
já não tem nenhuma piada
ao pé da piada que tinha.

terça-feira, 14 de abril de 2020

primeiro café da tarde XV



Dizem que é da cotovia o nosso plano
para a exploração minuciosa do céu e da madrugada.
E, no entanto, somos autores desse mergulho 
que nada espera da recta.
Cedo ou tarde se entenderá a calúnia
que nos atribui o plágio entre canto e canto.
Se não tem futuro a cotovia
ainda há dúvidas de que somos cotovia?

quarta-feira, 8 de abril de 2020

menoridade


Suserana minha,
eu sou escravo teu,
de meu o que tinha
deixou de ser meu.

Para te querer
não me quero a mim,
para me perder
basta ser assim.

E este sentimento
que tanto me dura
nas asas do alento
creio ser ventura.

Desde que te vi
e nos fiz aqui
e me consenti
tudo isto por ti.

          À Susana, da minha turma do 10.º ano, janeiro de 1985.
          Confeccionado sem sal nem pimenta
          na Escola Secundária dos Anjos, Lisboa,
          durante uma aula de alquimia.
          É óbvio que a Susana nunca leu os versos.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

SONETO DO ZOMBIE


Não há pátio nem varanda
nem janela para a praça,
nem alor de salamandra
quando à noite o frio ameaça.

No relógio que se atrasa
um remate que se adianta,
vou mofando pela casa
enquanto isto não desanda.

Sou um zombie: há quem diga
não haver melhor palavra
que me acerte ou me defina.

É provável. Não procuro
o que nunca procurava,
não há alma sem futuro.

segunda-feira, 30 de março de 2020

quarentena



Há muito que não te abraço,
há muito que não te beijo,
há muito que nada faço
de acordo com o meu desejo.

Mas desde que sou um perigo
para o mundo e coiso e tal,
tenho sonhado contigo
mais do que me era habitual.

Talvez eu esteja diferente,
talvez mais teu como quem
no final da espera invente
o que a espera já não tem.

sábado, 28 de março de 2020

fingimento xxxv


Não vale a pena o caminho
que hoje percorres, pedinte,
bebe essa taça de vinho,
conforma-te e enche a seguinte.

Só ao caíres de sono
sobre o teu velho sofá,
podes voltar a ser dono
do que na vida não há.

Por isso, espera quieto
nesse cantinho da sala
pelo fantasma no tecto
de todo o amor que te cala.

segunda-feira, 23 de março de 2020

fingimento xxxiv


Quando a conversa se estende
percebo que tens receio
de que às tantas eu invente
descabido galanteio.

Não sabes que se pergunto
tão curioso como vais,
não estou a puxar assunto
para alguma coisa mais.

Desconheces, rapariga,
tudo de que sou capaz,
o silêncio, esta alma antiga
a um canto da tua paz.

domingo, 22 de março de 2020

não desistas (M. Benedetti)



Não desistas, há sempre tempo
para a chegada e o recomeço,
a aceitação das sombras, o enterro dos medos,
o lastro largado, o reinício do voo.

Não desistas porque a vida
é continuação da viagem,
perseguição dos sonhos,
desprendimento do tempo,
estudo dos escombros, descoberta do céu.

Queime-te o frio,
morda-te o medo,
o sol se esconda, cale-se o vento,
não vaciles, por favor.
Tens na alma fogo ainda,
vida ainda nos sonhos.
Porque a vida é tua, teu o desejo,
porque assim quiseste, porque assim te quero eu.

Porque o vinho existe. E o amor também.
Porque o tempo cura todas as feridas.
Abre as portas, retira os ferrolhos,
abandona as muralhas que te protegeram.

Vive a vida e aceita o desafio,
recupera o riso, faz-te ao canto,
baixa a guarda, estende as mãos,
abre as asas, tenta de novo.
Celebra a vida, recupera os céus.

Queime-te o frio,
morda-te o medo,
o sol se ponha, cale-se o vento,
não vaciles, por favor.
Tens na alma fogo ainda
porque é um começo cada dia,
porque esta é a hora, este o melhor momento.
Porque não estás só.
Porque eu te quero.


Para Kh., traição a 'No te rindas' (Mario Benedetti) em Leceia e 22, março de 2020

sábado, 21 de março de 2020

trinta e seis de febre


Suporto os dias ao largo
do tempo que o sol inventa,
as noites acostumado
às planuras desta senda.

Sou sem demora nem prece
como quem faz que acredita
e difícil me adormece
o esquecimento da vida.

Portanto, nada de novo
na clausura que me serve:

para inventar o meu estorvo
bastam trinta e seis de febre.

sábado, 14 de março de 2020

SONETO SEM FUTURO


«Vens-me com essa lábia toda
de vida assada e nós assim,
que não há nada que nos ponha
nos abas cruéis de outro jardim.
Mas olha, Antóneo..., eu pus-me gorda
de convicções neste interim,
o que mais hoje me envergonha
é o que foste para mim.
Como pudeste, na modorra
da tua vida sem pilim,
presumir que eu era senhora
para futuro tão chinfrim?
Esquece essa história, inventa outra
com mais amor, com menos fim.»



quinta-feira, 12 de março de 2020

SONETO AMARGO


Hoje, pelo que sei, nunca perdoas nada.
É pouco de admirar, recordo-me de que antes,
mas bem antes da guerra, éramos nós amantes,
já sabias ser má. Eu achava piada
e ria-me a bom rir do teu mando na estrada,
pé no acelerador, sanguessuga ao volante,
e até dos palavrões e do amuo incessante
com que ias assistindo à minha vida errada.

Eras fatal quando eu à noite me ocultava
na busca pertinaz que dos outros me trava,
no antigo pormenor, meu constante demónio.
Quando menos mulher neste corpo açorado,
já tinhas esse dom para pôr-me de lado:
«Eu também estou aqui. Lembra-te disso, Antóneo.»

                                       Leceia e 12 de março em 2020

sábado, 7 de março de 2020

estertor


Vejam-me só como se fez
passado em duas ou três horas,
no dia em que eu morrer de vez
há de chover como tu choras.

Vejam-me só como esse verde
na tua íris madurece,
no dia em que eu não tiver sede
será por mim a tua prece.

Vejam-me só como hoje dorme
nesta vontade o extinto pulso,
no dia em que eu me for de fome
soltarás o último soluço.


quarta-feira, 4 de março de 2020

este amor antigo


É fascínio com barrunto
de noitibó insistente
por burguesas sem assunto
no passeio desta gente.

Também é outro domingo,
nas suas mãos o missal,
se um subtil olhar distingo
junto à pia baptismal.

Mas é acima de tudo
a janela e toda a lua
se por máscara no Entrudo
ela se veste de nua.

segunda-feira, 2 de março de 2020

SONETO DO APÁTRIDA


Se por acaso fosses de Lisboa
e arranhasses os erres à francesa,
e arranjasses maneira, com certeza,
de perder sempre e sempre estar na boa;

se te poluísse o riu à beira-mar
e de friu tiritasses pelo inverno,
e fosses prá-frentex sem ser moderno,
homem comum de um modo peculiar;

se ali pelo Natal, envergonhado,
te visitasse um pouco de passado
nos olhos de um sobrinho do seu tiu;

bem melhor estarias do que agora,
de esperanças ancião que já não chora,
apátrida de um mundo que ruiu.


terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

SONETO DESTA LENTA APRENDIZAGEM

van Gogh, Noite estrelada, 1889

Quantas vezes num canto desta casa
a noite me apagava de apatia,
quantas vezes esperei de espera rasa
o retorno da noite no outro dia.

Quantas vezes a vida se fazia
de abandoná-la, quantas vezes na asa
da desistência a minha pele tardia
abafava o desejo que se atrasa.

Quantas vezes o riso antes a dois
 acrescentava o pranto à madrugada
e o silêncio ao deserto que me faz.

Quantas vezes o poema foi depois,
quantas vezes a luta abandonada
porque no fundo nunca fui capaz.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

SONETO DOS SENHORES

L. da Vinci, Homem de Vitrúvio
O trajecto foi de erros atrás de erros,
mais de metade cruéis, talvez bem mais,
mas o pior é que fomos sempre os mesmos
imbecis cometendo erros iguais.

Quisemos ser de mais, somos de menos,

que já nem mar se vê do nosso cais,
procuras de que há muito nos esquecemos,
partidas que anulámos por fatais.

Foi tão longo o desdém que nos fez tarde
e tão curto o segredo! Na verdade,
não chegava sequer a haver segredo:

Os nossos sonhos eram sonhos podres
e rasteiros. Quisemos ser senhores
e agora somos escravos deste medo.

                                        Oeiras, 05.fev.2020