sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

café da tarde XLI


és tão de aqui     qhadija     tão de ali
tão mais     tão longe     tão pouco de mim
que tudo o que hoje quero
    velho egoísta
é que te inventes e me sobrevivas

sei lá eu se estes versos são bonitos

a serem versos já apenas sei
que de algum modo haviam de ser escritos

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

primeiro café da tarde XL


eu cá de pretas nunca jogaria
1. e4 d5 contra ti
és tramada implacável decidida
sábia e estudiosa     não perdoas
escandinavas à portuguesa

neste esparramado xadrez
que vamos construindo    em tu deixando
vai 1. e4 e6 com muita calma
     que hoje não estou numa de perder
     e muito menos de vencer

1. e4 c5 também não estaria mal
mas viesse o que deus quisesse
fosse como fosse seja como for
de acordo com a média são menos de quarenta
as jogadas para o teu xeque
xeque
xeque-mate

não achas     meu amor
que este nosso jogo dá empate?

sábado, 11 de dezembro de 2021

quadra 85


Na minha insónia há um rasto
de culpa, adeus e embaraço
por mais este dia gasto
sem amor pelo que faço.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

primeiro café da tarde XXXIX


falta-nos o tempo em que éramos pigros
    clientes habituais
    do fácil assombro e do invento inócuo
tivemos talento à beira-perigo
    talvez mesmo o génio
    de animais vividos
    que sempre adolescem
e hoje somos isto
    que tão bem se vê
        pedaços de carne ausentes de luz
        alienadas vidas
        sem osso na alma
        fatais parasitas
        de tudo o que um dia
        porventura fomos


sábado, 6 de novembro de 2021

primeiro café da tarde XXXVIII


a queda há pouco foi breve 
mas dura
da cabeça ao chão três metros em falso
mas estou em crer que sem cabeçada

dela e num repente
    o rasgo fundo largo e feio até ao osso
        branco no dorso do anelar esquerdo
    um algo também de pele arrancada sob sei
        lá que joelho
    e outro de pele esfolada acima
        da dor de cotovelo
agora e na cama chega a presença do osso machucado
    nessa transição entre costas e pernas que em mim
        de acordo com o nível e outras opiniões mais avalizadas
    ninguém poderia chamar de rabo

pensei que era a morte ali
    caraças
mas creio que ainda me restam algumas horas
quantas não sei que nunca se sabe
de meia dúzia até infinitas
    sejam as que forem
mas estou mais preparado para o fim
    do que para a eternidade

sábado, 30 de outubro de 2021

o talento de amar-te



hoje quase me deu para telefonar-te
de madrugada e quando ia a manhã a meio
também se adormeci e se fazia tarde
quase quase à noitinha e à hora em que me leio
no cansaço do sol nos desmandos da lua

hoje quase me deu para me pôr brejeiro
e ao longe desnudar-te até que fosses nua
e de tão servo teu brincar a ser teu dono
no constante cadinho em que fiel se apura
à beira da tua alma o abismo do meu corpo

hoje quase me deu para reinventar-te
quando a meio do sono antecipasse o sonho
e o vento como agora aflito nos buscasse
nos escaninhos da espera entre as esperas de quem
da obstinação fizesse a sua única arte

hoje quase me deu para ser o que vem
hoje quase me deu para ser o que parte
hoje quase me deu para ser o que tem
entre astilhas da morte o talento de amar-te

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

transparência e luz no teu aniversário







parti de lisboa     madrugada ainda
    para aqui chegar antes da confusão
    por isso alunei algumas horas antes
    da hora em que é comum abrirem os mercados
queria à-vontade para investigar
    todas as ofertas através das montras
    espreitar o líquido mais importante
    avaliar     talvez     os preços mais em conta
mas devo dizer-te que esta minha ideia
    logo desde o início me pareceu má
    pois nada encontrei dessa lua saudosa
    onde fomos jovens e nos conhecemos
tudo está mudado     nada lembra os dias
    em que os dias eram de hoje e entusiasmo
    sem a demasia de amanhãs e esperas
percorri cidades     aldeias e vilas
    e     dentro de todas     ruas avenidas
    sempre em busca de água     essa água cristalina
    em cujo sabor matávamos a sede
mas também aqui se vão impondo a sede
    e os gestos com que ela não se intensifique
    também aqui a água é paga a peso de ouro
    apesar de muita e menos poluída
de nada serviram os tempos antigos
    de bom selenita     mineiro capaz
    já ninguém se lembra de quanto entreguei
    para a construção deste mundo habitável
a única mensagem que me transmitiram
    é a de que está proibida a terráqueos
    a venda de bens     abundantes ou não
    que tenham origem no solo lunar
pouco lhes importa que o meu bisavô
    tenha aqui nascido     inteiro para a lua
    e que o seu avô tivesse combatido
    para aqui morrer durante meio século
    e que há poucos anos eu tivesse sido
    um dos que inventaram este paraíso
para resumir-te todo o meu sucesso
    dir-te-ei     sem sorriso     que apesar de tudo
    alguém mais ousado enfim me prometeu
    o mais bem medido litro e meio de água
    numa das melhores garrafas de plástico
    a um preço acessível entre os excessivos
está pronta amanhã     tem calma que haverá
    transparência e luz no teu aniversário
    vais poder matar um pouquinho da sede
    saltando uma ou duas dessas dez pastilhas
    com que diariamente tentamos esquecê-la
mas olha     maria     não é só na terra
    que a água potável se tornou tesouro
muito em breve     a lua será outro mais
    desses cemitérios de antigas demandas
    que vão construindo as invenções do homem
não temos futuro     talvez esta seja
    a última das minhas viagens à lua

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

amiga

Klara é Amiga Artificial: 'vive' para sê-lo, sonha sê-lo na loja onde espera pelo objecto do seu amor: ora na montra, mais directamente sob a luz do seu Sol e a curiosidade dos que passam; ora mais escondida, para que outros Amigos Artificiais, talvez mais brilhantes, talvez menos humanos, tenham a sua vez.

Em breve, nada mais lhe interessará do que compreender e ajudar Josie, que foi quem a quis para si e convenceu a mãe a comprar-lha. A sua competência é tal que chega a pedir a intervenção do Sol, essa poderosa e ocupadíssima entidade que todos os dias a revigora. Pede-lhe, com humildade e fervor, que dê um futuro à sua amiga, que a cure. Sim, porque Josie, ao ter sido 'elevada' ['lifted' no original], tornou-se uma criança muito frágil. Não te preocupes, leitor, aos poucos irás descobrindo o que é isto de ela ter sido 'elevada'.

Ishiguro, suave e genial construtor de mundos, hábil construtor de possíveis futuros e inesperados passados, obriga o leitor a viver, sorrir e folhear, sem reviravoltas, fogos de artifício, soluções ou recursos espalhafatosos. Ishiguro, como sempre, não intervém com as suas opiniões na história e nos ambientes que cria. Estes são, por inteiro, de quem os narra e de quem os vive. E de quem os lê.


- Klara and the Sun
- Kazuo Ishiguro
- Faber & Faber (2021)
- Lido em setembro de 2021, na versão inglesa [há tradução portuguesa, pela Gradiva, 'Klara e o Sol', trad. Maria de Fátima Carmo]

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

que se foda o homem (para o meu amigo savimbi)


amigo savimbi     como sabes
não sou o centro de nada
e seria preciso ser o centro de tudo
para achar a vida um absurdo
e a dor escusada

viver há de ser sonho para o homem
para esta cadelinha a que dei o nome de luna
para o gatinho a que chamei gato porque não lhe quis chorar a morte
para a mariposa até
    e este até é tão pouco de homem
a que decidi dar o nome de traça
    por     na opinião dos outros     traçar bué

se há de chamar-se ao sonho sonho do homem
há de chamar-se pesadelo
aos minutos que o comem
e que se foda então o absurdo da vida
que se foda o sofrimento
que se foda o seu azedo

eh pá
que se foda o homem

sábado, 29 de maio de 2021

desmaio


desmaio s.m. finais de maio, tendo em mente, sobretudo, os dias de estio que se adivinham, quentes e por vezes infernais; fig. final de um período sereno e aprazível. (de maio)

EX: mais um desmaio

mais um desmaio (carta para Jane)


São quatro da manhã, finais de maio,
sábado, mas os sábados
há muito são iguais,
costumo dar o nome de desmaio
a estes dias pacatos
antes dos que aí vêm, infernais.
Tantos nomes que inventas, meu amigo,
recordo que dizias
com o teu sorriso gordo,
mas dou-me conta de que não consigo
dar nome às mãos vazias
do rumo que traçavam no teu corpo.
Quando, como esta noite, me aventuro
no triste e fértil chão
de tudo o que perdi,
interrogo-me se este meu futuro
tinhas presente então,
se já me adivinhavas tão sem ti
na madrugada de mais um desmaio.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

primeiro café da tarde XXXVII


sobressalta-me ainda a pedra que
no teu percurso te prepara a queda
és tão voo como ave de rapina
mas tantos anos há que não o sabes

sobressalta-me ainda que haja antóneos
na tua cama e eu seja nenhum deles
és o mais meu deste homem sem procuras
mas tantos anos há que não o sabes

sobressalta-me ainda que desculpes
numa dúzia de falhas um milhar
de certezas antigas, és tão da água
mas tantos anos há que não o sabes

sobressaltas-me ainda como o limo
verde que ontem da espera enferrujou
no teu mar só me deixas cabotagem
mas tantos anos há que não o sabes

sobressaltas-me ainda
mas tantos anos
ah
que não o sabes

quinta-feira, 27 de maio de 2021

desquandar

desquandar . v. tr. 1. Retirar características temporais a; 2. Retirar importância temporal a;
v. intr. e pron. 3.Separar-se de referências ou interesses temporais (passado, presente, futuro); 4. não ter interesse na vida; 5. Desinteressar-se, esquecer-se (de algo ou alguém e do vivido com esse algo ou alguém).
ETIM. quando

EX. a) Deixou de sofrer quando conseguiu desquandar todos os seus passos.
b) Desquandar-se não foi, como é óbvio, uma decisão consciente.
Ver tb.: Desquandamento, desquando (por derivação regressiva), etc.


decadência

 Decadência - s. f. tendência patológica para deprimir durante uma década após perda traumática, sobretudo amorosa ETIM. década

terça-feira, 25 de maio de 2021

soneto do meu coração desquandado

para a. c. e s. b.





O meu coração é quando
te reclinas no sofá
entre sonos apurando
o sonho que já não há.

O meu coração é quando
dormes cheiinha de má
e o ferves em lume brando
para o esturrar, esturra lá.

O meu coração é quando
ser meu tanto se te dá,
e adeus em verbo nefando
acompanha o teu olá.

O meu coração é quando
de ti se vai desquandando.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Qhadija





Quando nas ruas de Lisboa,
há pouco mais de pouco vento,
a primavera andava à toa
do que fazias com o tempo,
isto da vida era deus dentro,
janela aberta para o encontro
antes da urgência e seus escombros.
.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Soneto desgovernado


Se exausto um dia o futuro
atirasse ao lixo o enredo
e desistindo de tudo
desistisse deste azedo,
se de esperanças e apuros
se deixasse tarde ou cedo
displicente face ao furto
por ontem deste brinquedo,
se atribuísse ao céu escuro
a persistência do albedo
e compreendesse quão curto
inventa amor, quão veneno,
se exausto um dia o futuro
quisessse ser desgoverno...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

perspectiva da alma (Mario Benedetti)


Meu irmão corpo     estás cansado
do cérebro à misericórdia
do paladar ao vale do desejo

quando me dizes     alma ajuda-me
a minha comoção visita a angústia
e até o próprio ar é vulnerável

meu irmão corpo     no trabalho pões
músculo e estômago     também os nervos
rins e brônquios     também o diafragma

quando me dizes     alma ajuda-me
sei que estás condenado     que és matéria
e a matéria é propensa a desfiar-se

meu irmão corpo     sei-te bem
fui hóspede e anfitriã das tuas dores
rampa modesta do teu sexo ávido

quando me pedes     alma ajuda-me
sinto que o frio me rebaixa
que magia e doçura se me vão

meu irmão corpo     tu és tão fugaz
conjuntural efémero brevíssimo
imóvel por efeito de um arquejo

e eu que tenho por uso ser a vida
acabarei estreitando os teus ossinhos
alma incompleta sem as tuas vísceras

                                                            Para Qh,
                                                            traição a 'Desde el alma' (Mario Benedetti),
                                                            Casarão e 2021, 11 de janeiro
                                                            

o silêncio do mar (Mario Benedetti)

O silêncio do mar
brama um juízo infinito,
mais concentrado que o de um cântaro,
mais implacável que duas gotas

quer aproxime o horizonte quer nos entregue
a morte azul das medusas
as nossas suspeitas não o deixam

o mar escuta como um surdo
é insensível como um deus
e sobrevive aos sobreviventes

Nunca saberei o que dele espero
nem o conjuro que deixa nos meus artelhos
mas quando estes olhos se cansam de ladrilhos
e esperam entre a planície e as colinas
ou em ruas que se fecham sobre mais ruas
então, sim, náufrago me sinto e só o mar
pode salvar-me

                                                            Para Qh.,
                                                            traição a 'El silencio del mar' 
                                                            (Mario Benedetti), 
                                                            Casarão e 2021, 11 de janeiro

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

soneto ancestral


um vórtice de febre me devora
às vezes     um imenso mar de cinza
que esbate os tímpanos     que grita ao rasto
da minha pele entre algas de silêncio

uma náusea inquieta que me afunda
um dilúvio de plástico e alcatrão
que as fronteiras desfaz     que cega as vozes
na densidade destes peixes podres

sorri-me     então     um vago tiritar
um saber e de cór as cefaleias
da côr     essas que esgueiram em camisa
por entre as horas     os invernos todos

quando assim acontece     tudo é dentro
e quando não     é porque tudo é fora

                                     Lisboa, 17.09.2010

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

intermezzo osculatório


O averiguador consultava a ocorrência num papel. Responda-me só a uma coisa, senhor...

Pergunte, respondeu o senhor, sem se incomodar com as reticências.

Vejo que está calmo. Não se preocupa?

Com quê?

Com o que pode vir a acontecer-lhe. Sobretudo, com o que pode vir a acontecer à sua mulher.

Bastante.

Não parece. Talvez não saiba que pode ter de cá passar esta noite. Esta e outras... Que pensa disso?

É como disse. Preocupo-me.

Sim, claro. Preocupa-se. Já agora, pode explicar-me melhor com quê?

Com tudo. Com o que possa ter feito. Com o que os outros possam pensar de mim. Sobretudo, com a passagem do tempo.

O averiguador não queria acreditar. O meu amigo não pode dizer isso. É óbvio que não se preocupa. Está a esquecer-se da razão por que devia preocupar-se a sério.

Beijei a minha mulher, não é?

Ó meu amigo, beijou-a quando ela estava desprevenida e beijou-a à moda antiga. Sem um contrato prévio e sem máscara osculatória. É óbvio que não se preocupa com a opinião dos outros. É ainda mais óbvio que não se preocupa com a saúde dela. E, claro, não se preocupa nada com a lei.

Se eu lhe disser que provavelmente estava a dormir? Que estava no meio de um sonho quando o fiz?

Dormia, pois então. Acordemos em que dormia. Mas o que fez ao certo, enquanto dormia?

Aproximei-me dela, está visto. Só isso.

Só isso? Só isso seria muito. Mas parece-me que não foi só isso, pois não?

Recordo-me de que ela acordou aos gritos.

E de que se recorda mais quando ela acordou aos gritos?

Os meus lábios confundiam-se com os dela. Mas num primeiro instante...

A frase ficou presa porque nos lábios do averiguador se desenhou uma breve mas indesmentível onda de repulsa, que tentou disfarçar com um incentivo a que o outro continuasse. Num primeiro instante?

Num primeiro instante, os lábios dela pareciam dançar com os meus. Senti como antigamente a humidade da sua boca, o veludo da sua língua. No princípio estranhei. Éramos de novo aprendizes. Não beijávamos há... Não nos beijávamos desde a proibição.

À palavra proibição, sem espera nem disfarce, o averiguador olhou para o averiguado com o sorriso largo de quem obtinha por fim o que desejava. A sua mulher está em choque pelo crime cometido.

Mas ela parecia corresponder.

Ela estava a dormir. De qualquer modo...

De qualquer modo parecia corresponder.

Não é essa a informação que temos. A sua mulher não concordou com o beijo. Acordou aos gritos, apresentou queixa de imediato e a informação que tenho do centro de quarentena é de que vive em sobressalto com receio de estar contaminada. Não está arrependido?

O averiguado soltou um suspiro e, pela primeira vez, pareceu reconhecer o seu erro. É a minha mulher. Estávamos a sonhar.

Isso para mim são pormenores que só no julgamento serão tidos em conta. O que eu sei e o que apenas me interessa é que a beijou sem o seu consentimento, o que significa que ela é vítima de um crime e não cúmplice, como tem querido fazer-me crer.

Crime...

Sim. Há mais de uma década que os beijos estão proibidos e há mais de meia que foi agravada a moldura penal para quem os dá. Existem, como sabe, certos procedimentos obrigatórios para quem opta por gestos afectuosos. No mínimo são necessários um contrato escrito entre os osculantes e o uso de máscaras osculatórias por ambos.

Eu sei, mas...

Mas estava a dormir.

O averiguado baixou a cabeça e desistiu da defesa. Talvez não estivesse.

Aliviado, o averiguador deixou que um silêncio crescesse sobre as lágrimas que começavam a escorrer no rosto do outro. Vamos, não esteja assim. Toda a gente comete erros. O passo principal já foi dado ao reconhecer o crime. Agora é pagar por ele e seguir em frente. Retocou a máscara para se certificar de que estava bem colada ao nariz, levantou-se e mandou vir o carcereiro. Passa cá a noite e amanhã é apresentado ao juiz.

Já se faziam choro largo as lágrimas do criminoso. Enquanto o carcereiro o encaminhava para a cela, apenas pôde pronunciar, entre soluços, Por favor, avisem a minha mulher...


in Saúde Ambiental - Caderno de notas soltasEds.: Ricardo R. Santos, Osvaldo Santos e António Vaz Carneiro (ISAMB - Instituto de Saúde Ambiental)

sábado, 23 de janeiro de 2021

um destino prometido


Naquela que Romain Gary dizia ser a primeira das autobiografias que escreveu, La promesse de l'aube,  é-nos contada a sua vida desde a infância, na Polónia, até o final da Segunda Guerra Mundial. Judeu russo nascido em Vilnius, marca a sua escrita uma capacidade incomum para expor sem pejo nem rebuço todas as ânsias que o impeliram desde criança.

Um profundo e correspondido amor o une à mãe, ex-actriz que não se poupa a esforços para dar ao filho a oportunidade de ele cumprir um destino importante. Um destino que para ela é inevitável e de que todos os actos do jovem são uma promessa. Assim, sem pausa o incentiva a fazer o que é preciso para ser grande: um grande escritor, um grande embaixador, um grande artista, um grande homem. Sem pausa o defende de tudo e de todos. Sem pausa mostra ao mundo que o filho é diferente. Quanto a ele, por amá-la ao ponto de não querer desiludi-la nem nas suas expectativas mais megalómanas, desde cedo torna seu o sonho de satisfazer os sonhos da mãe.

Mesmo depois de morrer, essa mulher forte e capaz de tudo para amparar o filho continuará a ser a bússola no percurso deste, um percurso pautado pelo fino sentido de humor dos que são capazes de rir de si próprios, por um desconcertante à-vontade para confessar os actos mais insensatos e por uma assombrosa incapacidade para desesperar.

A Promessa
Romain Gary
Livros do Brasil, 2019
Ed. original: La promesse de l'aube (1960)
Trad.: Augusto Abelaira (cap. XXII: Manuel Reis)
Rev.: Susana Baeta

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

quadra 84


Adiar parcas e demos
mais do que nunca é preciso.
Mas como, se nós não temos
nem um pouco de juízo?

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

quadra 83


Só hoje, que isso faz parte
deste invulgar mundo adiado,
eu percebo que beijar-te
já é coisa do passado.

sábado, 16 de janeiro de 2021

soneto sem futuro


Dizem com todo o aparato
que viver é homicídio
e eu dou, tíbio, de barato
que urge agora o suicídio.

Dizem «mete-te no quarto,
adia esse suicídio»
e eu, mais que farto, refarto,
solto o meu riso covídeo.

Dizem «não faças teatro
com esse teu riso covídeo»
e eu, finalmente sensato,
desenvolvo o amoricídio.

Dizem «é só uma fase».
Que importa agora? Sou quase.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

quadra 82


Dizem «mete-te no quarto,
adia um pouco o suicídio»
e eu, mais que farto, refarto,
solto o meu riso covídeo.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Esperança e Amor


Enforquei minha Esperança,
mas Amor foi tão madraço
que lhe cortou o baraço. (CAMÕES)

Lembro-me bem de Esperança
ao colo embalando Amor
e este dizendo, em voz mansa,
«aceito seja o que for».
Cadáver já, bolorenta,
enforcada em triunfo escasso,
ainda hoje Esperança inventa
para Amor no seu regaço:
só por ela ainda Amor tenta
depois que se fez madraço.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O maior defeito de Belisa


Mil defeitos tem Belisa,
à parte o maior defeito:
o de ainda ser amiga
deste palerma perfeito.

Quem a entenda, quem a estude
há de atentar no conceito
de nunca a muita virtude
casar com o pouco defeito,
pois, de uma forma imprecisa,
mil defeitos tem Belisa.

À parte um, que é mais pecado,
todos há que perdoar-lhe,
que amar tanto ou demasiado
nunca foi mero detalhe:
brilhe, pois, o que é perfeito
à parte o maior defeito.

Não pode é passar em claro
aquele que tanto a apouca,
há que fazer-lhe o reparo,
há que dizer-lhe que é louca
por que entre vícios persiga
o de ainda ser amiga...

Amiga de quem na vida
nunca soube ser amigo,
amiga comprometida
de quem vê nisso perigo,
amiga inteira e a preceito
deste palerma perfeito.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

quadra 81



Mil defeitos tem Belisa
além do maior defeito:
o de ainda ser amiga
deste palerma perfeito.

domingo, 3 de janeiro de 2021

quadra 80

Eu isto, eu aquilo, o meu
percurso, esta minha vida,
foi assim que aconteceu
em mim outra alma perdida.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Soneto do maior erro



São vidas a vida, o tempo
baralha, parte e reparte
aquilo que cá por dentro
se assemelha a um só combate.
O problema de lembrar-te
e lembrar-me como lembro
é sempre o de esconder a arte
com que invento, se me invento.
Falta-me, pois, fantasia,
ponho em tudo igual momento,
pouco estudo e nada aprendo
se me sou tão demasia,
se juro nós e o que fomos
para essência do que somos.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

inventário


Rezingão, amuado, mau,
rancoroso, solitário,
burro, palerma, calhau,
trol sem alma nem horário.

Desistente, preguiçoso,
infeliz, desamorado,
monstro, zombie, e é forçoso
que de sonhos dispensado.

Se tenho de falar mal,
falo de mim. Só faltou
na lista atrás que afinal
escrevo melhor do que sou.