terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

intermezzo osculatório


O averiguador consultava a ocorrência num papel. Responda-me só a uma coisa, senhor...

Pergunte, respondeu o senhor, sem se incomodar com as reticências.

Vejo que está calmo. Não se preocupa?

Com quê?

Com o que pode vir a acontecer-lhe. Sobretudo, com o que pode vir a acontecer à sua mulher.

Bastante.

Não parece. Talvez não saiba que pode ter de cá passar esta noite. Esta e outras... Que pensa disso?

É como disse. Preocupo-me.

Sim, claro. Preocupa-se. Já agora, pode explicar-me melhor com quê?

Com tudo. Com o que possa ter feito. Com o que os outros possam pensar de mim. Sobretudo, com a passagem do tempo.

O averiguador não queria acreditar. O meu amigo não pode dizer isso. É óbvio que não se preocupa. Está a esquecer-se da razão por que devia preocupar-se a sério.

Beijei a minha mulher, não é?

Ó meu amigo, beijou-a quando ela estava desprevenida e beijou-a à moda antiga. Sem um contrato prévio e sem máscara osculatória. É óbvio que não se preocupa com a opinião dos outros. É ainda mais óbvio que não se preocupa com a saúde dela. E, claro, não se preocupa nada com a lei.

Se eu lhe disser que provavelmente estava a dormir? Que estava no meio de um sonho quando o fiz?

Dormia, pois então. Acordemos em que dormia. Mas o que fez ao certo, enquanto dormia?

Aproximei-me dela, está visto. Só isso.

Só isso? Só isso seria muito. Mas parece-me que não foi só isso, pois não?

Recordo-me de que ela acordou aos gritos.

E de que se recorda mais quando ela acordou aos gritos?

Os meus lábios confundiam-se com os dela. Mas num primeiro instante...

A frase ficou presa porque nos lábios do averiguador se desenhou uma breve mas indesmentível onda de repulsa, que tentou disfarçar com um incentivo a que o outro continuasse. Num primeiro instante?

Num primeiro instante, os lábios dela pareciam dançar com os meus. Senti como antigamente a humidade da sua boca, o veludo da sua língua. No princípio estranhei. Éramos de novo aprendizes. Não beijávamos há... Não nos beijávamos desde a proibição.

À palavra proibição, sem espera nem disfarce, o averiguador olhou para o averiguado com o sorriso largo de quem obtinha por fim o que desejava. A sua mulher está em choque pelo crime cometido.

Mas ela parecia corresponder.

Ela estava a dormir. De qualquer modo...

De qualquer modo parecia corresponder.

Não é essa a informação que temos. A sua mulher não concordou com o beijo. Acordou aos gritos, apresentou queixa de imediato e a informação que tenho do centro de quarentena é de que vive em sobressalto com receio de estar contaminada. Não está arrependido?

O averiguado soltou um suspiro e, pela primeira vez, pareceu reconhecer o seu erro. É a minha mulher. Estávamos a sonhar.

Isso para mim são pormenores que só no julgamento serão tidos em conta. O que eu sei e o que apenas me interessa é que a beijou sem o seu consentimento, o que significa que ela é vítima de um crime e não cúmplice, como tem querido fazer-me crer.

Crime...

Sim. Há mais de uma década que os beijos estão proibidos e há mais de meia que foi agravada a moldura penal para quem os dá. Existem, como sabe, certos procedimentos obrigatórios para quem opta por gestos afectuosos. No mínimo são necessários um contrato escrito entre os osculantes e o uso de máscaras osculatórias por ambos.

Eu sei, mas...

Mas estava a dormir.

O averiguado baixou a cabeça e desistiu da defesa. Talvez não estivesse.

Aliviado, o averiguador deixou que um silêncio crescesse sobre as lágrimas que começavam a escorrer no rosto do outro. Vamos, não esteja assim. Toda a gente comete erros. O passo principal já foi dado ao reconhecer o crime. Agora é pagar por ele e seguir em frente. Retocou a máscara para se certificar de que estava bem colada ao nariz, levantou-se e mandou vir o carcereiro. Passa cá a noite e amanhã é apresentado ao juiz.

Já se faziam choro largo as lágrimas do criminoso. Enquanto o carcereiro o encaminhava para a cela, apenas pôde pronunciar, entre soluços, Por favor, avisem a minha mulher...


in Saúde Ambiental - Caderno de notas soltasEds.: Ricardo R. Santos, Osvaldo Santos e António Vaz Carneiro (ISAMB - Instituto de Saúde Ambiental)

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