quinta-feira, 23 de abril de 2020
primeiro café da tarde XVI
Se em tempos covídeos um dia destes
chegarem as primeiras
abordagens hirudíneas,
não te surpreendas, amigo.
Estar aqui é tender para o desastre
e recomenda-se guardar sangue
para o sangue que for preciso.
Bem sei que és um caso
banal entre os que não se acautelam.
Ainda assim,
não te surpreendas, amigo.
És enxarcado nos ossos,
pouco importa que tragam o dilúvio.
quinta-feira, 16 de abril de 2020
proposta
Quando chegares a casa
hás de contar-me o teu dia;
ainda que eu seja homem
de silêncios e alma fria,
isto de andares calada
já não tem nenhuma piada
ao pé da piada que tinha.
terça-feira, 14 de abril de 2020
primeiro café da tarde XV
Dizem que é da cotovia o nosso plano
para a exploração minuciosa do céu e da madrugada.
E, no entanto, somos autores desse mergulho
que nada espera da recta.
Cedo ou tarde se entenderá a calúnia
que nos atribui o plágio entre canto e canto.
Se não tem futuro a cotovia
ainda há dúvidas de que somos cotovia?
quarta-feira, 8 de abril de 2020
menoridade
Suserana minha,
eu sou escravo teu,
de meu o que tinha
deixou de ser meu.
Para te querer
não me quero a mim,
para me perder
basta ser assim.
E este sentimento
que tanto me dura
nas asas do alento
creio ser ventura.
Desde que te vi
e nos fiz aqui
e me consenti
tudo isto por ti.
À Susana, da minha turma do 10.º ano, janeiro de 1985.
Confeccionado sem sal nem pimenta
na Escola Secundária dos Anjos, Lisboa,
durante uma aula de alquimia.
É óbvio que a Susana nunca leu os versos.
segunda-feira, 6 de abril de 2020
SONETO DO ZOMBIE
Não há pátio nem varanda
nem janela para a praça,
nem alor de salamandra
quando à noite o frio ameaça.
No relógio que se atrasa
um remate que se adianta,
vou mofando pela casa
enquanto isto não desanda.
Sou um zombie: há quem diga
não haver melhor palavra
que me acerte ou me defina.
É provável. Não procuro
o que nunca procurava,
não há alma sem futuro.
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