sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

soneto do ex-pirómano


No ano 2009 tornei-me outro.
Frágil. Bem mais poltrão do que pensara
possível. Tanto assim que caí morto
no incêndio que aticei à velha casa.

Certo é que, desde então, perdi o gosto
pirómano. Hoje não transporto nada
nos meus gestos que possa fazer fogo
e furto-me com zelo a tudo o que arda.

Dizem amigos que perdi o gás,
que o combustível de falhar em frente
é o que me embaraça o passo atrás.

E eu rio do eufemismo. Diariamente,
na casa em cinzas arranjei maneira
de atirar cinzas à cidade inteira.

Lisboa, 2014

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

por medo ao céu o voo abortado (IV)


O tempo não é sólido na sua totalidade,
há curvas fracturadas
para quem as procure,
ou por sorte as encontre,
onde se deixa atravessar
pelas mãos.

Nalgumas dessas viagens líquidas
que agora aprendi a fazer com elas
tenho por destino as tantas vezes que te chamei amor
e, ao lado desse, outro mais extenso e cheio de horizontes
desimpedidos
onde acreditei amar-te.
Digo acreditei porque não estou certo
de que tenha sido assim,
apenas  de que nunca estive mais próximo
de ter sido assim.

Quando regresso as mãos
ao estranho torpor destes dias
sei um pouco mais sobre a minha cobardia.
A tragédia maior
na minha vida foi
por medo ao céu o voo abortado.


Leceia, 18 fev 2019

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

SONETO DO CÃO TRANSPARENTE

(Para o Piloto)


Chamemos-lhe dono. Abre a porta da
casa, o sol já a trinta graus,
e faz que não vives. Agora há os
vaivéns da tua dor errada,
esses gemidos abafados
que o vento rouba à madrugada
e deposita noutro lado,
longe, bem longe, de quem passa.

Ignora-os também. Nem sequer
ao despedir-se da mulher
percebe os vestígios da cauda
feliz de quando foste novo.

Havia um tapete à entrada
onde sonhaste antes de morto.


Leceia, 2016 [Para o Piloto]