sábado, 1 de janeiro de 2022

1/100. MORIBUNDO LENTO


Rebecca e eu vivíamos no Velho Moinho, a oitenta quilómetros da capital e longe de todas as tentações. Chegáramos havia pouco mais de seis meses, num vinte e nove de julho quente e abafado que não pressagiava os ventos e as chuvas do outono, muito menos o frio que se lhes juntaria durante um longo e autoritário inverno.

«Vai correr tudo bem, não vai, Valentyn?», perguntara-me ela enquanto puxava o travão de mão do seu velho calhambeque. Consultei a hora no telemóvel. A contagem do tempo começava trinta e nove minutos depois das catorze horas. «Não te preocupes, Rebecca.»

Para Rebecca, as palavras – havia sempre que prová-las com actos. E agora que eu era um mero humano isso era ainda mais necessário. Mas prendeu por instantes a minha mão na sua e disse o que havia a dizer, depois de tudo por que passáramos. «Sim, Valentyn. O importante agora é vivermos de acordo como o planeado. Um dia de cada vez.»

O planeado era a minha desistência. Todos, Rebecca e eu incluídos, contávamos com a minha desistência. No último instante, antes de me perfurarem o coração com uma estaca ou uma bala de prata, os tutores tinham-me dado o benefício da dúvida. E eu aceitara as condições impostas. Era agora um moribundo lento, essa foi a melhor expressão que arranjei para me definir, embora nunca a proferisse em voz alta para não obrigar Rebecca a sabê-la. Se tudo corresse como previsto, o meu fim seria dali a vinte ou trinta anos.

Ao longo dos meses seguintes fui acreditando que desistira mesmo. Até nas horas mais difíceis, aquelas em que ressacava da antiga ânsia noctívaga. Não está na minha natureza aceitar a morte mas empenhava-me nela com todo o artifício do meu génio. Chegava a sentir-me aliviado face à minha nova condição de homem rasteiro, preparado para tudo o que pudesse correr mal no meio daquele tudo bem correr que Rebecca esperava.