sexta-feira, 23 de agosto de 2019

SONETO DOS TRANSPARENTES

Imagem Wikipedia















O cão que toda a vida acorrentado,
a rosa que hoje à noite assassinada,
a pomba moribunda que na estrada,
o deus que sem futuro nem passado,

o grito súbito que desprezado,
a mão que de verdugos decepada,
a lágrima que a meio da piada,
o verso que na estrofe sem cuidado,

a vítima que há muito amortalhada,
o beijo que dos beijos desgastado,
a cabeça que à espera de almofada,
o ex-abrigo que em ruínas ao meu lado,

este homem de ambições que desde sempre
tem sido aos vossos olhos transparente.

                                                  Leceia e 2015

sábado, 17 de agosto de 2019

SONETO DO CÃO ACORRENTADO

Imagem Canal Ciências Criminais











Black arrasta a corrente à procura de um naco
de céu caído. Em vão. Apenas morde,
neste tão derradeiro ano disto que é morte,
os repisados vãos do seu metro quadrado.

Passa os dias assim apesar de cansado
de outros dias assim apesar da má sorte
que lhe impõe a renúncia apesar do transporte
aos cuidados da mãe apesar de passados.

Um minuto à tardinha, o carcereiro vem
renovar a ração, saber da água também,
tratar da merda no ar que chateia o vizinho.

Black quer-lhe bem. Pele e osso, a cabeça vergada,
fica a vê-lo partir e nunca pede nada,
aprisionado já no seu próprio latido.

                                                                  Leceia e 2015

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

SONETO DA VELHA TENTAÇÃO


van Gogh,Kop van een skelet met
brandende sigaret

Retirou desinquieto
o que tinha na algibeira,
pendurou a corda ao tecto,
pôs-se em cima da cadeira.

Tinha aquilo todo o aspecto
de tolice passageira
e, no entanto, circunspecto,
avançou com a brincadeira.

Desde então, de olhar vazio
no meu passo de inseguro,
tem-me feito o desafio
de acabar com o futuro.

Desde então, a minha vida
é viver a minha vida.

                         Leceia e 2014*

*as duas primeiras estrofes,
pouco menos velhas do que eu.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

SONETO PUBENTÍSSIMO

J.-J.-F. Le Barbier,
Cupido numa Árvore (1795-1805)
Quando na praia as ondas se perdiam
de encontro às rochas ou beijando a areia
e enfim ao astro ardente sucediam
os encantos da noite e a lua cheia,

oh quantas vezes houve que se ouviam
ao longe, ao longe, em som de melopeia,
tão sentidas canções que pareciam
de deusa, de nereida ou de sereia.

E embora em tua voz não encontrasse
timbre que fosse assim dulcissonante
nem conseguisse ver em tua face

a beleza, o candor desconcertante
que naquelas acaso imaginasse,
não há ninguém que como tu me encante.

Lisboa, 1980 *

O mais antigo dos sonetos sobreviventes.

SONETO DA CONFERÊNCIA DOS PARDAIS

Distribuição do Passer domesticus
Wikipedia













Agora que o verão aquece mais
e eu passo a noite de janela aberta,
às cinco e muito pouco me desperta
a longa conferência dos pardais.

Ao coro dos meus dias sempre iguais
esse coro se junta. E bem alerta,
olhos no tecto, escuto à descoberta
de mundos que não vêm nos jornais:

feitura dos ninhos ainda ignora
qualquer licença. A ocupação veloz
sucede sem aviso de última hora.

Cada ramo é futuro de uma voz.
E de sono e alva se constrói a aurora,
apesar de ontem, apesar de nós.

                                          Lisboa e 2011

terça-feira, 13 de agosto de 2019

SONETO DO ESCRITOR MENOR

van Gogh, O par de sapatos
(1886)
Dou três explicações, bastam-me três,
para o baldão que foi a minha vida,
e não ponho de parte que talvez
concorram todas em igual medida.

A tunda no toutiço, vez traz vez,
pela mínima falta cometida;
os piolhos de que a casa se desfez
afogando-me em spray insecticida;

e o ter nascido no lugar errado
um século depois da época certa:
tudo se conjurou neste meu estado.

Nunca tentei sequer saber de cór
o momento do rogo, a hora da oferta
que dissimulam um escritor menor.

                                                                                                            Leceia e 1016

domingo, 11 de agosto de 2019

SONETO DO POETA EM BANHO-MARIA

Jacob Peter Gowy (1635-37)
The Flight of Icarus

Talvez nunca de vós fosse entendida
a extensão da fogueira que, secreta,
me devorava quando fui poeta,
quando, poeta, eu devorava a vida.

A rara obstinação que da partida
supostamente falsa até a meta
me dirigia o voo em linha recta,
talvez nunca de vós fosse entendida.

Nunca de vós o extinto ruflo dessa
minha asa espatifada em céu rasante,
fatal desastre para quem duvida.

Nunca de vós o ocaso da promessa,
qual a lasciva chama que ofegante
falece na matéria consumida.

                                                                                                 Leceia e 2016

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

SONETO DOS JOVENS RETÓRICOS

Lecomte du Nouÿ,
«Démosthène s'exerçant
à la parole» (1870)

Parecia haver sempre uma palavra
com o peso certo, fosse clandestina
no relato ordinário da rotina,
fosse remanso em estrépito de aldraba.

Éramos jovens, pouco se nos dava
com que régua o futuro se media
e ainda menos quão válida e precisa
era a sua leitura, quão exacta.

Para sermos sinceros, e apesar
de não o termos querido confessar,
nunca a verdade foi a nossa presa.

Mesmo hoje que o silêncio nos contém,
indústrias há que nos parecem bem
apenas pelo efeito da surpresa.

Leceia e 2016

sábado, 3 de agosto de 2019

SONETO DE FACTO

De facto, o giradiscos ainda risca
os cansados vinis de Jacques  Brel
e no cinzeiro jaz a última prisca
com o carmesim do teu adeus cruel.

De facto, a Lady continua arisca:
quando tento fazer o teu papel
sem ronrons me gadanha e segue à risca
a intolerância com que te é fiel.

De facto, como tu me prometias,
enche cada escaninho dos meus dias
a memória do dia em que partiste.

De facto, hoje como ontem ao teu lado
cumpro a pena de um homem condenado
a esta triste alegria de ser triste.

                                                                                         Leceia e 2015 / Lisboa e 1993