Eulálio d'Assumpção, centenário orgulhoso e descendente de barão, derrama as suas memórias no leito do hospital onde a morte o espera. Repisa-as para não se esquecer de quem é: «Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço de alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar.»
À medida que a medicação e a proximidade do fim lhe vão retirando lucidez, as memórias confundem-se, assim como se confundem aqueles com quem as partilha: a enfermeira que melhor o trata, os outros enfermeiros e os médicos mal-humorados, a filha, alguém que toma pelo pai assassinado há muito. Mas uma dessas memórias serve sempre de esteio a todas as outras: a do inesperado e repentino desaparecimento da sua mulher, a exuberante Matilde de «pele castanha», pouco depois do nascimento da filha de ambos.
O texto de Chico Buarque foge de um modo exímio à narrativa linear, plasmando o pensamento reinventado e confuso do velho moribundo e fixando de um modo natural o preconceito e a arrogância de um homem que se orgulha de descender de gente nobre e importante e que, apesar de tudo, não resiste aos encantos de uma bela mulata.
Leite Derramado
Chico Buarque
2009
D. Quixote
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