o estuga como eu lhe chamo passa por mim todas as manhãzinhas de guarda-chuva e pasta na mão
mas só há alguns meses é que reparei: quando o semáforo para peões está fechado ele repete o quarteirão e se isso é impossível por algum motivo refaz a calçada em sentido contrário e retorna
há dias troquei-lhe as voltas e do outro lado da rua sempre sem ser visto acompanhei-lhe o percurso
descobri assim que ele vai até à praça do comércio vira à esquerda quando já não não pode ir em frente e segue na direcção da gare de santa apolónia com as necessárias repetições de quarteirão
depois de ali chegar estuga ainda mais o passo ou assim me pareceu e campo das cebolas rua da madalena regressa à rua da palma para finalmente entrar na pastelaria a eira já na rua de angola
aqui sem se sentar bebe um garoto e um copo de água isto pelas nove e meia a hora precisa dependerá da exigência dos quarteirões
de seguida sai e vira à esquerda pela rua do forno do tijolo agora cabisbaixo pé que espera pé mão deslizando pela calva pensativa
ontem respirei coragem e pus-me de amigo com o seu derrotado andar das dez perguntei-lhe:
porquê?
ele deteve-se para me encarar
nos seus olhos brilhava um sonho que talvez ninguém possa entender
e desatou a correr
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