Atrelar estes bichos – não sei de complicação maior. Não entendem como é difícil enganchar-lhes as trelas enquanto galopam de um lado para o outro e resvalam no soalho envernizado, de encontro às paredes, à procura da rua. Peço-lhes para se porem a jeito, mas nada: desconhecem a distância segura que lhes quero impor, apenas devoram a proximidade do passeio, a inacreditável inevitabilidade da saída. Mas tem de ser, meus amigos, a trela não é dispensável. Sempre em excesso de velocidade e de cabeça no seu mundeco, estes automobilistas não vêem dilema entre o risco no carro e a morte dos outros: toda a gente sabe que é proibidíssimo atravessar fora das passadeiras. Estádio moral do mais rasteiro, mas, enfim, a verdade é que o popó tem de estar em ordem, não é?, para se mostrar aos outros quem completo vive, e parecer diferente quem se jura igual, e evitar o suor dos transportes o maior da sua aldeia.
Já na rua, músculos retesados e cabeça esticada até ao chão, puxam-me pelos ziguezagues que nos unem ao jardim, farejam como aspiradores, raramente os dois no mesmo sentido, consoante os város cheiros que o vento vai oferecendo. Tão egoístas, estes sacaninhas incorrigiveis!, cruzando as trelas, atropelando os peões, sem atenção nenhuma aos difíceis malabarismos que eu tão arduamente aprendi – e que tentam repor a normalidade nesta viagem tantas vezes repetida. Parecem dois loucos no paraíso. Tão loucos que eu nem sonhar posso em deixar-me levar, fechar os olhos e segurar as trelas, puxem-me, puxem-me que já não aguento mais.
Mas loucos, loucos instalados, só quando os solto no jardim, elegantes e nervosos como corcéis, desobedientes como homens livres. Queira deus que não apareçam outros, porque se umas vezes dão em brincar, outras preferem o ataque. E seguem a sua vida feliz, como se levitassem ou fossem todo o mundo: saltam, cheiram, marcam, rebolam-se, fazem tudo a que têm direito.
Desembaraçam-se do peso nas tripas e o sebas põe-se a olhar para mim, muito atento, à espera do ritual: então, não apanhas? Porra!: esqueci-me da folha de jornal. Não, hoje não! Se fosse para apanhar, a câmara que pusesse sacos à disposição. E se não quisesse que eu cuidasse deles, que os amparasse em vez de os deixar a morrer na estrada. Não, não apanho nada. Não tenho energia para me baixar agora. Amanhã não é outro dia.
Os comentários dos peões, também..., olha aí, porco, palhaço, cabrão, cada vez mais fortes!; os palavrões e envios inconfessáveis que lhes atiro nas minhas respostas abafadas; a conclusão, malcriado!, olha-me a educação que este dá aos cães. Fungadelas de nariz, suspiros de impaciência, bruscas rouquidões por olás simpáticos, espadas nos olhares, dinamite nas bocas. Preferiam que eu não existisse, eu sei, o mal-estar instala-se; e nem sabem que já houve vidros rachados na porta de entrada, pontapés em carros mal estacionados ao longo da recta que aqui nos traz, honras sitiadas nos olhos que tantas vezes larguei... Se pudessem matavam-me, se pudessem até o sangue me bebiam, se pudessem, ah!, se pudessem...
Se pudessem: abreviavam-me.
Os cães, esses, marimbam-se para o mal-estar dos vizinhos, apenas rosnam e arreganham os dentes num aviso aos mais distraídos, que não é suposto estacarem nas redondezas, ainda para mais a olharem para nós com todo aquele atrevimento e ar de desaprovação, o que é suposto, isso sim, é evaporarem, eclipsarem, ala que se faz tarde, estamos aqui, estamos a experimentar-vos a carne. E continuam a sua vidinha, venha de lá chichi para as plantinhas, toma lá chichi que isto aqui é meu, rabo a dar a dar – assim é que eles são felizes!
Meia hora depois, volto a pôr-lhes as trelas. Engancho-as nos dorsais e regressamos. A dosti, algo cabisbaixa, olha às vezes para trás com os seus olhinhos tristonhos e a língua rosada de fora, como quem diz que não havia necessidade de abandonar a rua tão cedo. Ofereço-lhes toda a corda que posso, mas eles já só usam uma parte dela: vão juntinhos a mim ou deixam-se atrasar, porque assim é como estão mais longe de casa.
Agora tudo é transparente: têm-me posto imensas trelas, há sempre uma coleira a cintar-me o pescoço.
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