Nem pestanejava; mesmo quando calmei a procura e me caiu um estrondo na cara, o gritinho no lugar do morto não soprou o seu lugar de esfinge.
A estrada corria-lhe silenciosa sob o artifício das mãos enquanto ao espelho da pala eu examinava se ardia.
Entretanto era Coimbra e a cem metros do fim um semáforo fechava. Olhei-a de lado, pesei quietude, concluí aquiescência, ajeitei-me para outro ensaio.
Já o carro arrancava, já eu dormia para não ter medo. Tentei despertar-lhe a boca. Sem resultado: não creio que tivesse havido beijo. A sua cabeça inclinou-se leve, é um facto, mas para que a avenida não fugisse; e o talvez respirado e húmido da viagem não indiciava luta nem abandono.
Voltei a encostar-me como se costuma, fixando o pára-brisas com perseverança, a dos mortos, a dela. No vaivém das escovas chovia como quando somos tristes.
Segundo estrondo, de novo sem arma. Largou-me à frente da porta, simpática como nunca, sorrindo, «adeus, até amanhã».
Uma semana depois, dentro do carro o silêncio continuava maior.
Imóveis. Carnudos. Procurei. Estrondo.
Chovia e já estávamos parados no semáforo triste. Foi, então, que percebi: os beijos não se roubam, negoceiam-se. Assim, arranquei o braço direito antes de sair e pu-lo no banco traseiro, «Guardas-mo?».
O braço faz falta mas eu quero muito encontrar o beijo. Além disso, há dias deu-se um pequeno desenvolvimento: ajudou-me a enganchar o cinto de segurança e até roçou a mão na minha.
Virei-me para o banco traseiro a espreitar se trazia o braço. Não, talvez estivesse na mala; portanto, só procurei o beijo ao pressentimento do semáforo.
Novo estrondo.
Chovia e eu era maneta. À despedida, pensei que não estava a dar o máximo. Por isso, arranquei a perna esquerda. «Guardas-ma?»
Chovia muito, estava triste como nunca, tinha pena de ainda não ter encontrado o beijo. Encostei-me à parede e fiquei a ver o carro afastar-se: parecia menos vermelho do que habitualmente, talvez por a chuva cair com muita força sobre o tejadilho.
Saltitei.
Ontem estive todo o dia à espera. Telefonei-lhe várias vezes mas só me responde uma voz a dizer que o número não está atribuído.
Que bom, ela ter subido comigo há duas semanas, antes de eu lhe ter entregado a outra perna.
Há pouco, faltou-me bexiga para mais uma gota. Apesar de já não ser tão difícil como a princípio, ainda custa muito arrastar-me até ao quarto de banho e sentar-me na sanita.
Daqui a pouco, deveria ir trabalhar. Mas ainda preciso de uns dias de repouso. Desconfio, também, que é mais fácil encontrar o beijo se ficar em casa, à espera de que ela mo venha entregar.
Chove imenso.
Ainda é noite.
Tenho medo.
(Publicado no jornal universitário A Cabra de 20-10-2011:
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