Faz hoje uma semana. Telefonaram-me às 11h a dizer que pioraras e que o teu coração não resistira. Eu estava pronto para te ajudar a morrer, queria tanto que morresses nos meus braços, como a Bonita e o Piloto, quando o sofrimento era visível nos seus olhos e essa era a melhor solução. Mas convenceram-me de que ainda podias ser salvo, que ainda não tinha sido feito tudo para te salvar. E acabaste por morrer sozinho.
Ainda não é fácil viver em casa e não me apetece ir para a cama sem lá estares. Tento prender os olhos à secretária mas eles escapam-me pelo caminho que leva ao teu sofá preferido, aquele onde estendias a tua preguiça de gato e de onde controlavas os meus movimentos. Tento manter a mão esquerda presa sob o edredom mas passo a noite a soltá-la para te procurar. Tento encontrar-te no Bê-Dê mas lembro-me sempre dos ciúmes que tinhas quando as minhas carícias iam para ele na mesma medida que para ti.
Não corria desde que adoeceste, queria passar contigo todo o tempo que pudesse. E ainda não voltei a correr. Sinto-me culpado por os meus rins funcionarem tão melhor que os teus. Mas daqui a uns tempos tenciono voltar à estrada para bater todos os recordes que me permitam a idade e o corpo. Ontem imaginei que o meu coração parava como o teu ao cruzar a meta de uma qualquer maratona e isso consolou-me: é um modo simples e pouco rebuscado de chegar ao que sempre quis. Por isso, por que não esticar os meus limites? Quero baixar dos 40 minutos nos 10 quilómetros, rondar a hora e trinta na meia-maratona, roçar as três horas e meia na maratona. Dás-me um ano para isso tudo?
Entretanto, e umas horas antes de morreres, pouco depois da última visita que te fiz na noite de segunda-feira, descobri que a mãe pode estar muito doente. Ainda não sabemos quanto, andamos de análise em análise e de esperança em esperança. Amanhã vou com ela ao médico para agendarmos os próximos passos.
Na sexta-feira passada, recebi mais uma daquelas cartas antigas a dizer que o nosso segundo romance foi analisado com todo o cuidado mas que não está na linha editorial de quem não o analisou; antes, já tinha recebido outra a dar-me os parabéns pelo texto e a manifestar-me o lamento pela sua ineditabilidade. Dei comigo a sorrir de como sou estúpido, de como por uns momentos e há pouco mais de dois anos pensei que coisas destas nunca me voltariam a acontecer.
Como sabes, sempre me aborreceram notícias sobre os poetas que ganham prémios graças à sua magnífica resistência em poetizar, sempre gozei com a ingenuidade dos prosadores que ganham prémios e dizem procurar a palavra certa para cada pensamento, sempre li algumas páginas dos livros que ganham prémios e cujo sucesso não consigo perceber.
Mas cada vez leio menos. Esta semana? Nada. Os escritores dizem que a leitura e a escrita são o seu refúgio. Talvez seja por isso que eu não sou um escritor a sério: quando não estou bem, mal leio; quando não estou bem, escrevo tão mal.
Do resto, tu já sabes. Há uns sete meses que não me pedem traduções e as últimas notas que tinha, gastei-as para pagar a tua última solidão no hospital veterinário. Mas não te sintas mal com isso; quando o banco vier buscar-me a casa, e embora não tenha outro remédio senão entregar-lha, vou ladrar-lhes até não conseguir mais. E em tua honra hei-de morder-lhes os calcanhares. Ah, se hei-de.
A Miúda e a Sereiazinha mandaram-te beijinhos há dias e olha que foram bem maiores e sentidos do que os que mandaram para mim. Recebe-os, está bem? Onde estiveres, recebe-os.
Até para a semana, meu querido Barbinhas.
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