Tinha esquecido que hoje ficas em casa. Noite mágica a de ontem, não foi? A comida comeu-se, a bebida bebeu-se, música para dançar e conversar. Só lá para as três da manhã é que o cansaço nos sentou. E até às tantas falámos tanto... Encontros, desencontros, segredos, atenções, enfim... tudo o que até aqui nos foi trazendo.
-----Lá estás tu a arrastar pela casa as pequenas botas militares, compradas na ladra num daqueles dias em que o calor nos derrotava. Abres e fechas torneiras, preparas o café da manhã, aclaras a garganta com a presença que costuma definir o meu despertar.
-----A Nena e o Manel não paravam de notar o casal bonito que fazemos. Pois é, dez anos de partilhas, tu segredaste-me ao ouvido silêncios quase, eu estremeci das carícias expiradas como quando pela primeira vez me entregaste a mão, numa sala de cinema.
-----Quando regressas do passeio aos cães, espero-te à mesa, hoje apeteceu-me sair da cama antes que o calor começasse a apertar. Há muito que não interrompia o sono com este desprendimento, sem pálpebras inchadas, ausentes nos meus globos oculares as cordas grossas e vermelhas da insónia.
-----Bela festa, não foi? De repente o teu corpo perdeu a transparência e beijámo-nos entre o langor e a lascívia. Há anos que não me despertavas assim, os aplausos crepitavam pela sala enquanto tu coravas. Ficaste tão criancinha sob o meu sorriso largo!, e diluímos no vinho o sabor das línguas.
-----São nove horas, meu deus, era mesmo preciso ligares já o aspirador? Mas, enfim: preencho a minha atenção com os teus movimentos precisos e enérgicos, ainda bem que tenho quem me engula o pó depositado pelos dias.
-----Queres ajuda?
-----Pareço uma pena, flutuo quase. Sou distante deste que te observa, talvez tão distante como tu. Não me custa nada propor-te ajuda, até porque o momento se vai esticando, esticando, esticando...: não acredito que, no caso de a aceitares, eu possa chegar a tempo.
-----Manténs-te calada, o aspirador ronca. Os meus olhos vão adquirindo uma cor azul clara, imperturbável. Sinto no ar fresco da manhã os meus olhos azuis. Sinto-me de olhos azuis. Manténs-te calada. O aspirador ronca.
-----O aspirador ronca. Manténs-te calada. Mas... vá lá... pára um bocadinho, senta-te aqui ao meu lado. Há tanto tempo que não conversamos um com o outro... Deixa a casa, põe-te à mesa comigo, vem contar-me dos anos que te perdi.
-----Manténs-te calada. O aspirador ronca. Depois vais lavar a loiça, já sei. E a seguir farias a cama se ela não continuasse ocupada no canto onde eu fui.
-----Hoje não, Catarina, hoje não me apetece comer. O quê? Não, não, nem sequer uma torradinha. Porque não ficamos aqui sem fazer nada, de papo para o ar? Quando desligasses o maldito aspirador, púnhamos o Concerto de Colónia, enroscávamo-nos um ao outro no sofá... Sim, qual é o mal, podemos enroscar-nos um ao outro. Somos ou não somos companheiros?
-----Não, não se passa nada de estranho comigo...
-----O aspirador ronca. Manténs-te calada. O ar fresco do fim da tarde entra pela janela aberta do quarto. E eu tenho medo de morrer outra vez.
-----Lá estás tu a arrastar pela casa as pequenas botas militares, compradas na ladra num daqueles dias em que o calor nos derrotava. Abres e fechas torneiras, preparas o café da manhã, aclaras a garganta com a presença que costuma definir o meu despertar.
-----A Nena e o Manel não paravam de notar o casal bonito que fazemos. Pois é, dez anos de partilhas, tu segredaste-me ao ouvido silêncios quase, eu estremeci das carícias expiradas como quando pela primeira vez me entregaste a mão, numa sala de cinema.
-----Quando regressas do passeio aos cães, espero-te à mesa, hoje apeteceu-me sair da cama antes que o calor começasse a apertar. Há muito que não interrompia o sono com este desprendimento, sem pálpebras inchadas, ausentes nos meus globos oculares as cordas grossas e vermelhas da insónia.
-----Bela festa, não foi? De repente o teu corpo perdeu a transparência e beijámo-nos entre o langor e a lascívia. Há anos que não me despertavas assim, os aplausos crepitavam pela sala enquanto tu coravas. Ficaste tão criancinha sob o meu sorriso largo!, e diluímos no vinho o sabor das línguas.
-----São nove horas, meu deus, era mesmo preciso ligares já o aspirador? Mas, enfim: preencho a minha atenção com os teus movimentos precisos e enérgicos, ainda bem que tenho quem me engula o pó depositado pelos dias.
-----Queres ajuda?
-----Pareço uma pena, flutuo quase. Sou distante deste que te observa, talvez tão distante como tu. Não me custa nada propor-te ajuda, até porque o momento se vai esticando, esticando, esticando...: não acredito que, no caso de a aceitares, eu possa chegar a tempo.
-----Manténs-te calada, o aspirador ronca. Os meus olhos vão adquirindo uma cor azul clara, imperturbável. Sinto no ar fresco da manhã os meus olhos azuis. Sinto-me de olhos azuis. Manténs-te calada. O aspirador ronca.
-----O aspirador ronca. Manténs-te calada. Mas... vá lá... pára um bocadinho, senta-te aqui ao meu lado. Há tanto tempo que não conversamos um com o outro... Deixa a casa, põe-te à mesa comigo, vem contar-me dos anos que te perdi.
-----Manténs-te calada. O aspirador ronca. Depois vais lavar a loiça, já sei. E a seguir farias a cama se ela não continuasse ocupada no canto onde eu fui.
-----Hoje não, Catarina, hoje não me apetece comer. O quê? Não, não, nem sequer uma torradinha. Porque não ficamos aqui sem fazer nada, de papo para o ar? Quando desligasses o maldito aspirador, púnhamos o Concerto de Colónia, enroscávamo-nos um ao outro no sofá... Sim, qual é o mal, podemos enroscar-nos um ao outro. Somos ou não somos companheiros?
-----Não, não se passa nada de estranho comigo...
-----O aspirador ronca. Manténs-te calada. O ar fresco do fim da tarde entra pela janela aberta do quarto. E eu tenho medo de morrer outra vez.