quarta-feira, 30 de maio de 2007

DESPEDIDA

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    Tinha esquecido que hoje ficas em casa. Noite mágica a de ontem, não foi? A comida comeu-se, a bebida bebeu-se, música para dançar e conversar. Só lá para as três da manhã é que o cansaço nos sentou. E até às tantas falámos tanto... Encontros, desencontros, segredos, atenções, enfim... tudo o que até aqui nos foi trazendo.
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Lá estás tu a arrastar pela casa as pequenas botas militares, compradas na ladra num daqueles dias em que o calor nos derrotava. Abres e fechas torneiras, preparas o café da manhã, aclaras a garganta com a presença que costuma definir o meu despertar.
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A Nena e o Manel não paravam de notar o casal bonito que fazemos. Pois é, dez anos de partilhas, tu segredaste-me ao ouvido silêncios quase, eu estremeci das carícias expiradas como quando pela primeira vez me entregaste a mão, numa sala de cinema.
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Quando regressas do passeio aos cães, espero-te à mesa, hoje apeteceu-me sair da cama antes que o calor começasse a apertar. Há muito que não interrompia o sono com este desprendimento, sem pálpebras inchadas, ausentes nos meus globos oculares as cordas grossas e vermelhas da insónia.
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Bela festa, não foi? De repente o teu corpo perdeu a transparência e beijámo-nos entre o langor e a lascívia. Há anos que não me despertavas assim, os aplausos crepitavam pela sala enquanto tu coravas. Ficaste tão criancinha sob o meu sorriso largo!, e diluímos no vinho o sabor das línguas.
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São nove horas, meu deus, era mesmo preciso ligares já o aspirador? Mas, enfim: preencho a minha atenção com os teus movimentos precisos e enérgicos, ainda bem que tenho quem me engula o pó depositado pelos dias.
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Queres ajuda?
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Pareço uma pena, flutuo quase. Sou distante deste que te observa, talvez tão distante como tu. Não me custa nada propor-te ajuda, até porque o momento se vai esticando, esticando, esticando...: não acredito que, no caso de a aceitares, eu possa chegar a tempo.
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Manténs-te calada, o aspirador ronca. Os meus olhos vão adquirindo uma cor azul clara, imperturbável. Sinto no ar fresco da manhã os meus olhos azuis. Sinto-me de olhos azuis. Manténs-te calada. O aspirador ronca.
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O aspirador ronca. Manténs-te calada. Mas... vá lá... pára um bocadinho, senta-te aqui ao meu lado. Há tanto tempo que não conversamos um com o outro... Deixa a casa, põe-te à mesa comigo, vem contar-me dos anos que te perdi.
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Manténs-te calada. O aspirador ronca. Depois vais lavar a loiça, já sei. E a seguir farias a cama se ela não continuasse ocupada no canto onde eu fui.
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Hoje não, Catarina, hoje não me apetece comer. O quê? Não, não, nem sequer uma torradinha. Porque não ficamos aqui sem fazer nada, de papo para o ar? Quando desligasses o maldito aspirador, púnhamos o Concerto de Colónia, enroscávamo-nos um ao outro no sofá... Sim, qual é o mal, podemos enroscar-nos um ao outro. Somos ou não somos companheiros?
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Não, não se passa nada de estranho comigo...
-----O aspirador ronca. Manténs-te calada. O ar fresco do fim da tarde entra pela janela aberta do quarto. E eu tenho medo de morrer outra vez.

CRISTINA

-----A Cristina que nunca mais chegava!... Desejava-a por cima, de rolas fartas e soltas durante a montada, a humidade da terra na sua boca esquiva, o quarto escuro do seu cabelo. Escutava-lhe o silêncio e depois do silêncio os olhos parados, o ar difícil e majestoso no seu domínio: “vou fazer-te sofrer, agora é que eu te vou fazer sofrer”.
Mas qual sofrimento, homem?...
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-----Sofrimento acontece aqui: agora mais agora menos, serpentes a crescerem, a crescerem, a crescerem. A crescerem. À cabeça das máquinas registadoras, dentadas insignificantes: desconfia-se de trocos, confirmam-se preços e produtos, demoram-se pagamentos. Há outra serpente eterna a reaparecer do interior de cada serpente moribunda.
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E lado a lado, entre dentadas, os pedidos de socorro:
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– Cristina, passa-me a chave!
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– Cristina, trocas-me aqui em moedas de vinte?
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– Cristina, não te esqueças que hoje vou almoçar ao meio-dia!
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Uma agulha pica-lhe o crânio, chega-lhe ao centro de tudo. Não consegue sorrir. A encarregada já a avisou: “Cristina, tens que sorrir mais. As pessoas não têm culpa.” Mas ela não consegue...
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-----Na cama, ele esperava... Mas Cristina nem desconfia que era espera.
-----– Só sabes foder! – costumava ela dizer-lhe antes de sair.
-----A verdade é que ninguém sabe fazer tão pouco como foder apenas, mas ele parecia não ter energia para o que ela acreditava ser essencial: levantar-se, ir à procura de trabalho, trabalhar... Estava sempre em modo cama. Por isso, respondia que a culpa era dela, que sabia fazer tudo, que fazia tudo bem, e entre tudo o modo como punha a foder o seu corpo de égua brava. A imagem daquela fêmea dominadora, dominadora e doce num só tempo, entontecia-o como o primeiro amor dos adolescentes que se fundem a partir das mãos entregues. Respirava no quarto todas as memórias, todos os coitos que a distância interrompia.
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-----E lá vai a Cristina à sua hora de almoço.
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– Coitada! – diz a colega que a substituiu.
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– Então? – indaga a do lado.
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– Há dias chegou a casa e descobriu que o gajo a tinha encornado.
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– Ah! Coitada... Tão trabalhadora... É assim que eles agradecem...
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– Vê lá tu que o tipo nem sequer se deu ao luxo de esconder o preservativo que tinha usado com a outra...
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– E ela sabe com quem foi?
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– Não. Acho que nem quer saber... Só descobriu por causa do preservativo no chão...
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– Pois... Mas deixa estar que ele há-de arrepender-se...
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-----Ai, a Cristina que nunca mais chegava! Num ímpeto de verosimilhança, ele abriu a gaveta, puxou de um preservativo, rasgou-lhe o rebuço. Colocou-o. Secava-se-lhe a garganta e o seu corpo era inteiro. E sem nunca ter sabido de onde partira, já galopava. Cristina era um fantasma mas soltava-lhe a rédea até ao salto final, esporava-o, exigia-lhe as pressas da chegada.
-----Minuto e meio! Retirou o preservativo, deu-lhe um nó, lançou-o ao chão.
-----«Cristina...», balbuciou.
-----E adormeceu.

terça-feira, 29 de maio de 2007

AMORIGA

-----Metro e oitenta de pele em osso!
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O velho ficou desconfiado. Tinha pedido moça de calor fácil e prazer rápido; para quê mandarem-lhe tanta mulher?
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– A menina tem a certeza de que é a pessoa indicada? – perguntou, com uma voz submissa, talvez até um pouco assustado.
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Ela piscou-lhe o olho e sorriu com um dos cantos da boca. Tinha-se maquilhado para o amor e a sua mãozinha estreita e comprida abraçou a manápula quadrada do velho. Arrastou-os para o quarto.
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Havia duas camas de solteiro, separadas por um vazio estreito. Sentaram-se na mais distante e ele decidiu estremecer os lábios ávidos nos corredores daquele pescoço tenro e comprido. Ela sentiu cócegas e ficou toda arrepiada; olhou para o velho com a ternura das almas gémeas; e, enquanto se inventava pequenina, o seu peito pôs-se a subir e a descer.
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No quarto de banho, o amor do velho tomava um duche. Fechava os olhos grandes e pestanudos e uma lágrima escapou-se-lhe como no dia em que ele tinha decidido partir. Mas, entretanto, a mulher alta tinha tirado o casaco e deitou-se de lado, levando o velho consigo. Cara com cara, abraçaram-se muito. Os olhos dele brilhavam como um lago raspado pela lua cheia.
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Não se viam há mais de trinta anos mas, agora, o amor do velho saía do duche e entrava no quarto.
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– Amoriga... – sussurrou ele, quando a viu.
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A mulher alta apertou-o mais ainda nos seus braços.
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– Amoriga...
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A mulher alta disse chhhh... e percorreu com a língua o caracol do seu ouvido. Ele fechou os olhos.
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O amor da sua vida percebeu o que se estava a passar. Quando os viu abraçados, fechou o sorriso que trazia e baixou a cabeça. Deitou-se na outra cama, pôs nos olhos um cão com sono. Estava à espera que ele se cansasse e mandasse embora a mulher alta.
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O velho, no entanto, tinha parado o seu tempo. A mulher alta, agora nua, procurava o prazer rápido; ele ia-se afastando, demorava a sua própria nudez. De vez em quando olhava para o seu amor e tinha pena do que nunca tinham podido viver. A nostalgia esburacava-lhe os ossos e doía-lhe como as dores frias do reumatismo.
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Foi então que o seu amor se levantou.
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– Adeus... – disse, em voz distante mas decidida, despedindo-se para sempre.
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– Amoriga! – gritou ele, a chorar como uma criança quando se perde. – Oh, amoriga!
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-----Acabava de entrar na mulher alta.

O TEU CADÁVER

------À tua porta, uma chuva miudinha e insistente construía um adeus de lama.
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Ainda te oiço: “Vais morrer, António. Como pudeste?” Há dois anos, eu em fuga e tu chorando, não acreditei.
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Mas acumulam-se os dias. Telefonemas mais e mais intervalados, as mensagens que nunca recebeste. Abate-se o sussurro dos sábados sobre o silêncio dos domingos. Meses e meses por viver, solstícios e equinócios empilhados, aniversários por lembrar.
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Arrependi-me.
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E arrependo-me. Atrasei o passo, retomei-o, estuguei-o sobre as brasas mortas de uma esperança moribunda...
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Que mais posso eu?
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-----Isto dizia eu ao meu companheiro de almoço. Mas sobre o soluço das minhas anacronias, ele ia sorvendo a sopa, bicando da salada, deitando o ouvido às conversas que nos encurralavam. Estava muito sério e com pouca paciência para as minhas incursões no passado. Entediava-se.
Como não visse amor nos seus modos, imaginei que uma espiral de arame farpado se contorcia no interior do meu estômago de animal sem sentido. Deixei tudo no prato.
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Depois fumámos. Dois ou três cigarros, enquanto o sentido das palavras se afundava no poço negro da minha voz...
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– O teu amor – retrocedeu ele, com a circunspecção de um detective –, o teu amor é doente, meu caro António.
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Uma cortina menosprezava o ar que partilhávamos e ele garantiu-me que dois anos é muito tempo, que a vida não é como eu a penso, «mas que estupidez, António, que ainda penses essas coisas».
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Dizia o que tinha a dizer e depois dava um estalido espalmado entre o céu da boca e os molares, um arre de língua, um desabafo escandalosamente sonoro. Bufava. Revirava os olhos na direcção de «olhem-me só este agora!».
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– Meu amor, ainda... – comecei.
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Mas não valia a pena. Ele fazia o seu último gesto de professor sem talento para aluno sem vontade, eu já desenhava letras soltas na toalha da mesa com o meu garfo envergonhado.
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– Que vão desejar mais? – perguntou o empregado de mesa.
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– Um café – pedi. – Tu também?
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– Não. Sabes que eu não bebo café... Mas pode trazer já a conta, por favor.
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– Pois é... Tu não bebes café...
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Já o murmúrio dos outros nos despedia. O sol dos dias curtos começava a envergonhar-se e algumas gotas decididas desenhavam linhas de ténue transparência sobre a parte de fora das janelas. Chovia. Há dois anos, eu em fuga e tu chorando...
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Na rua, eu punha um pé fora das brasas extintas. Aqui, o teu cadáver levantava-se e partia.
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-----Ontem fomos a enterrar.