terça-feira, 29 de maio de 2007

O TEU CADÁVER

------À tua porta, uma chuva miudinha e insistente construía um adeus de lama.
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Ainda te oiço: “Vais morrer, António. Como pudeste?” Há dois anos, eu em fuga e tu chorando, não acreditei.
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Mas acumulam-se os dias. Telefonemas mais e mais intervalados, as mensagens que nunca recebeste. Abate-se o sussurro dos sábados sobre o silêncio dos domingos. Meses e meses por viver, solstícios e equinócios empilhados, aniversários por lembrar.
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Arrependi-me.
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E arrependo-me. Atrasei o passo, retomei-o, estuguei-o sobre as brasas mortas de uma esperança moribunda...
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Que mais posso eu?
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-----Isto dizia eu ao meu companheiro de almoço. Mas sobre o soluço das minhas anacronias, ele ia sorvendo a sopa, bicando da salada, deitando o ouvido às conversas que nos encurralavam. Estava muito sério e com pouca paciência para as minhas incursões no passado. Entediava-se.
Como não visse amor nos seus modos, imaginei que uma espiral de arame farpado se contorcia no interior do meu estômago de animal sem sentido. Deixei tudo no prato.
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Depois fumámos. Dois ou três cigarros, enquanto o sentido das palavras se afundava no poço negro da minha voz...
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– O teu amor – retrocedeu ele, com a circunspecção de um detective –, o teu amor é doente, meu caro António.
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Uma cortina menosprezava o ar que partilhávamos e ele garantiu-me que dois anos é muito tempo, que a vida não é como eu a penso, «mas que estupidez, António, que ainda penses essas coisas».
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Dizia o que tinha a dizer e depois dava um estalido espalmado entre o céu da boca e os molares, um arre de língua, um desabafo escandalosamente sonoro. Bufava. Revirava os olhos na direcção de «olhem-me só este agora!».
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– Meu amor, ainda... – comecei.
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Mas não valia a pena. Ele fazia o seu último gesto de professor sem talento para aluno sem vontade, eu já desenhava letras soltas na toalha da mesa com o meu garfo envergonhado.
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– Que vão desejar mais? – perguntou o empregado de mesa.
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– Um café – pedi. – Tu também?
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– Não. Sabes que eu não bebo café... Mas pode trazer já a conta, por favor.
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– Pois é... Tu não bebes café...
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Já o murmúrio dos outros nos despedia. O sol dos dias curtos começava a envergonhar-se e algumas gotas decididas desenhavam linhas de ténue transparência sobre a parte de fora das janelas. Chovia. Há dois anos, eu em fuga e tu chorando...
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Na rua, eu punha um pé fora das brasas extintas. Aqui, o teu cadáver levantava-se e partia.
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-----Ontem fomos a enterrar.

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