quarta-feira, 30 de julho de 2025

primeiro café da tarde LII — distanciamento


tu não te ponhas tão séria a pensar no que é preciso fazer

podes fechar os olhos    isso podes    calcular a média por alto

            não tem de ser ponderada nem tem de ser

            com a emoliente e estorvante atenção que minimize o erro

            não te martirizes com decimais    negligencia até a importância

            do algarismo das unidades

podes aproveitar isto sem ser aluna exemplar     sabes?    basta que te lembre

de quando em vez a aferição da distância    essa distância em que

não te vejas tão de perto

            como diria o outro    isso é uma tragédia

nem te vejas tão de longe

            como costumo dizer eu     isso não é nada

antes possas apreciar a diluição da lágrima no sorriso e deste no riso

enquanto     como diria aquele mesmo outro    se precipita

a comédia

terça-feira, 29 de julho de 2025

primeiro café da tarde LI — Lia e a contagem das sílabas


não é por     baquetas     os meus dedos tamborilarem o tampo da mesa

que a gata deixa de ser gata

no insolente âmbar dos seus olhos arde

o fascínio que prepara o rebate


tu não estás quem há pouco ronronava

    murmuro em decassílabo perfeito

    quando atento na cena e me distraio

    no labor digital de outro soneto

não há problema    ó lia    ultimamente

não sei porquê    malbaratei o ritmo

e a precisão das sílabas no verso

já só os dedos podem confirmar-ma


ela desvia o olhar pela primeira vez

e eu pela segunda liberto os dedos

um dois três quatro seis    sete oito dez

um dois três quatro    seis sete oi    to dez

em busca de outros modos e melhores

de ensinar o que nunca pratiquei


eis senão quando o rebate se dá

a unhada    o mio

    deixa-te disso    poeta malandro    estás a irritar-me

e o sangue mancha-me o último terceto

e a dor lancina-me os versos restantes


ah    ingrata    estragaste-me o soneto


estraguei-te o soneto?

mas tu não percebeste nada    antóneo?

a contagem era péssima e    à parte isso    o soneto

era uma porcaria





segunda-feira, 28 de julho de 2025

primeiro café da tarde LXI (Amorfos)


        o que me lembra do primeiro café da tarde

        no tempo em que o tomávamos quando eu te visitava

           estou cá em baixo    hoje podes?

        ou tu me procuravas em me eu arredando

           por onde tens andado     meu amigo?

        e as visitas e as procuras soíam enredar mais

        do que indubitáveis chegadas e longas travessias

o que me lembra     e todos os dias me lembra     desse café embarcado

na lenta clepsidra do teu olhar no meu olhar no teu olhar

    o que me lembra desse café não caberá à justa nestes que nisto se fez


ah     pois é     estou certo de que hoje seria impossível ou     no mínimo     complicado

acondicionar na mesma embalagem estes que nisto se fez

    as rugas não são apenas à superfície     como é óbvio     o que já por si dificultaria

    o ajuste de esperas avanços retrocessos

    acresce    aliás     que     embora o hábito no-lo renegue     a geometria

    impecável dos homens não se compadece

    do aqui que ali se dilatou do ali que aqui se contraiu

amorfámo-nos     amiga     é o que é     espatifámo-nos na curva

de que estávamos avisados e que ainda assim quisemos inventar


mas de que outra maneira havia de ser a vida?


terça-feira, 15 de julho de 2025

síndrome do estupor


Se há pouquinho aquele teu gesto

não esperava nada em troca,

se foi por gosto e de resto

nada de meu te sufoca,


dirás, quando eu fizer de anjo

e esconder o meu demónio:

«Pára com isso, marmanjo,

basta-me seres António.»


(Isso ao menos me asseveras

quando te confesso que antes

dedicava as primaveras

ao sufoco das amantes.)







domingo, 13 de julho de 2025

primeiro café da tarde L


hás de contar a essa doida varrida que devorou
sem qualquer contemplação todos os mágicos recantos
que me faziam maior     hás de contar-lhe um destes dias
que os caboucos do que sou ou disto que invento que sou
são firmes de mais     são tanto face ao que ontem prometia

hás de contar-lhe     a propósito     que já não vale a pena
acreditar hoje em dia que em mim tudo é impostura
     há uma ou outra excepção há um ou outro condimento
     neste paulatino arrasto que torna a espera serena
conta-lhe que havia cura     conta-lhe que vou vivendo