quinta-feira, 28 de junho de 2007

NOTA BENE


Diz-me Ainda bem que telefonas. O Manuel morreu.
 Eu O quê?
 O Manuel. Morreu.

 Largo o telefone, atiro-me ao chão, esperneio-me em silêncio, pareço um cão contente, mas não, nada disso, é mais outra culpa a ferroar-me.
 Do outro lado da linha Joaquim?

 Merda! O Manuel. Morreu. E agora? Se calhar tinha bastado uma palavra minha.
 
Esperneio-me em silêncio durante mais trinta segundos, estas lágrimas sempre foram surdas.
 Pego de novo no telefone Não me diga que se suicidou...

 Joaquim, tens de ser forte agora.
 Devia ter-lhe telefonado. Ele não andava bem. Eu sabia que ele não andava bem. Raios me partam, que nunca estou em casa!
 Joaquim, não vale a pena...
 Ele tentou contactar comigo durante toda a semana. Discava, discava e nada. Deixou mensagens a pedir desculpa e eu nada: nunca devolvi as chamadas. Precisava de ajuda. Mas eu... eu sempre a fugir, não é? É este meu orgulho!
 Vá lá, Joaquim, não te culpes. Já não o podes ajudar.

 É o meu orgulho, é. É este meu orgulho estúpido. Nunca dou o braço a torcer. Nunca perdoo.
 És orgulhoso, és. Sais ao teu pai.
 E de que me vale agora? O meu melhor amigo...
 Largo o telefone outra vez, atiro-me ao chão, esperneio-me, mais uma lágrima surda, outra culpa a ferroar-me.
 Joaquim?

-----
 Ainda não se tinham popularizado os telemóveis.

sábado, 16 de junho de 2007

O PALADAR DO REGRESSO

-----
    De entre o polegar e o indicador, mais ossos que dedos, mais unhas que ossos – ela desprendia sobre a mesa uma poeira de folhas secas.
-----
Com a tragédia nos olhos, recolheu o montículo assim formado e libertou-o sobre uma chávena de líquido escuro. Ao primeiro contacto – uma neblina veloz; com a neblina, uma onda de calor.
-----
E um grito.
-----
Era o jovem à sua frente. Tentava desembaraçar-se mas as pernas não queriam obedecer.
-----
E ela? Por entre a névoa, mexe a solução com uma pequena colher, tosca e de madeira cinzenta. Tranquila. Atenta. Com sopro de mãe, como o verdugo que a sociedade exige.
-----
Estende a chávena num gesto decidido: “Anda, bebe. Bebe o chá dos fracos, luís!”
-----
Dispara o coração do luís, enquanto um resto de névoa se esvai sobre o soalho.
-----
E dentro de mim, não no céu-da-boca, definitivamente não na língua, mas dentro de mim, fluindo como um sangue de cujo percurso eu pudesse ter consciência, alastra um paladar amargo como açúcar em ponto de rebuçado.
-----É o paladar do regresso.

A FORÇA DA GRAVIDADE


à parte isso que tu aí lhes dizias_____continuo a gostar muito de ter vestido assim_____sempre da mesma hora e da mesma roupa_____ enquanto o verão nos lambia por taça escura

tinto retinto de todo o tinto que por aí bebia
_____cabeça suja de mal-estar contra a parede fria dos azulejos_____estava sempre de regresso__________ _____e fazia-te um esboço de aceno_____e um princípio de sorriso_____e era esse o golpe do mestre_____
em desequilíbrio sobre o fio da caneta lassa

sentava-me sem reservas
_____esfregava-me por dentro _____ obrigava-me a duas lágrimas_____ainda que pequenas_____para diluir os versos de ontem a um canto da toalha_________ não é preciso entender mais do que isto para me entenderes quase todo__________à parte isso que tu aí lhes dizias_____escrevia coisas____sabes_____coisas_____ e se me pareciam diferentes _____era feliz por um minuto ____que era o minuto em que eram diferentes__________________ depois aborrecia-me__ ______ __________todos os meus dias morriam assim_____no cesto do lixo____
entre pacotes de açúcar sem açúcar e guardanapos ensopados de gordura

à parte isso que tu aí lhes dizias
___a única gravidade era ___ então ___ a inesperada ausência das asas

terça-feira, 5 de junho de 2007

O BEIJO (1ª VERSÃO)

-----
    – Como podes ver, estou a conduzir... – ouvi.
-----
Eu acabava de procurar o beijo pela primeira vez.
-----
Postos no infinito, os seus olhos nem pestanejavam. Eu gesticulei como se estivesse a dizer qualquer coisa. E a auto-estrada, que não sabia do nosso conflito, continuava a correr.
-----
Fui ensaiando diferentes abordagens aos seus lábios congelados – mas nunca deles consegui retirar o beijo. Até que, no rescaldo da quinta ou sexta tentativa, um estrondo de traições me caiu sobre a cara.
-----
Não doeu. Mas assustou. No meu lugar do morto, eu não estava nada à espera. Por isso, abri muito a boca e olhei para ela.
-----
Ela? Calada. Esfíngica. Olhos na estrada.
-----
Ao espelho da pala, de boca fechada, examinei o que ardia em mim. Nenhum sinal da violência: nem poderia dizer, pela imagem reflectida, com que parte da minha pele tinha colidido a sua mão.
-----
Apesar da inexistência de provas que a incriminassem, amuei. Não sei por quanto tempo. O que sei é que, na cena seguinte, me pus a falar dos dias como se não existissem noites.
-----
E é que, entretanto, já estávamos em Lisboa. A cem metros da minha porta, retinha-nos um semáforo fechado. Olhei de lado para ela e avaliei, na sua quietude, um não sei quê de condescendência; foi só por isso que aproveitei, mais uma vez, para procurar o beijo.
-----
Ajeitei-me entre a sua cara e o pára-brisas; encostei os meus lábios aos dela.
-----
Ela já arrancava, então, e eu fechei os olhos para não ter medo. Tentei entreabrir-lhe a boca com o labor da minha, mas não resultou, não creio, mais uma vez, que tivesse havido beijo. Ela inclinou um pouco a cabeça, para que a estrada não fugisse, e eu senti um talvez respirado, húmido, sem luta nem procura.
-----
Afastei-me para o meu lugar. Reparei que estávamos ambos a sorrir, mas os seus olhos abertos fixavam o caminho com a perseverança dos mortos.
-----
Distraí-me com o vaivém das escovas no pára-brisas. Começara a chover como quando somos tristes.
-----
Pafff.
-----
Outro estrondo na minha cara.
-----
Parou o carro mesmo à frente da minha porta, que simpática!, virou a cabeça na minha direcção e sorriu: sorriu muito, sorriu bem, sorriu com os dentes todos.
-----
– Até amanhã! – ouvi. – Olha, não te esqueças de levar o livro que ficaste de me emprestar...
-----
– Ok! Até amanhã, então! Diverte-te!
-----
E ali fiquei, a derreter à chuva, enquanto ela se afastava. Nunca tinha sido tão simpática comigo...
-----

-----Uma semana depois, nós de novo dentro do citroën vermelho. Eu falava dos colegas no trabalho e dos trabalhos a que éramos obrigados. Houve um comentário qualquer que nos provocou duas gargalhadas simultâneas, tão simultâneas que pareciam uma só, daquelas muito grandes. Depois, o silêncio.
-----
Ela tinha os olhos presos ao caminho e a sua boca, imóvel e carnuda, brilhava como as estrelas mais brilhantes. E eu comecei a pensar que só a ouvia, nunca a via, rir e falar.
-----
Procurei o beijo.
-----
Pafff.
-----
Estrondo.
-----
Chovia e já estávamos parados no semáforo triste, às portas da minha porta.
-----
Foi, então, que tive a ideia: se calhar, os beijos não se roubam, negoceiam-se.
-----
A questão é que eu não tinha nada para dar em troca do beijo. Tudo o que podia fazer era mostrar a minha boa vontade. Assim que, quando ela parou para que eu saísse, arranquei o meu braço direito e pu-lo no banco traseiro.
-----
– Porquê? – ouvi.
-----
– Por nada... Gostava apenas que mo guardasses...
-----

-----O braço tem-me feito muita falta, mas eu quero muito encontrar o beijo. Por isso, não me importo.
-----
Além disso, há duas semanas, deu-se um pequeno desenvolvimento. Depois de entrar no carro, eu tive alguma dificuldade em pôr o cinto de segurança. Reparei, no entanto, que ela me ajudou a enganchá-lo. Parece-me, até, que a sua mão se demorou junto à minha mais tempo o exigido pela tarefa.
-----
Olhei para o banco traseiro, para verificar se ela me trazia o braço. Quem sabe, ela mo devolvesse e me descobrisse o que eu tanto procurava... Mas não... Talvez estivesse na mala? Por isso, até chegarmos ao semáforo, nem sequer tentei procurar o beijo.
Aí, então, como nada se passava, eu decidi avançar.
-----
Pafff...
-----
Um estrondo!
-----
Chovia e eu era maneta. Quando nos despedíamos, eu pensei que não estava a dar o meu máximo e só nessas condições mereceria encontrar o beijo. Por isso, decidi arrancar a minha perna esquerda:
-----
– Guardas-ma? – pedi.
-----
– Tens a certeza? – ouvi.
-----
Eu tinha a certeza.
-----
Chovia muito e eu estava triste como nunca: tinha pena de, mais uma vez, não ter encontrado o beijo. Encostei-me a uma parede e fiquei a ver o carro afastar-se: pareceu-me menos vermelho que habitualmente, talvez por a chuva cair com muita força sobre o seu tejadilho.
-----
Saltitei até casa.
-----

-----São seis da manhã. Ontem, estive todo o dia à espera. Tentei telefonar-lhe, várias vezes até, mas só me responde uma voz, a dizer que aquele número não está atribuído.
-----
Estou-lhe muito agradecido por ter subido comigo antes de eu lhe ter entregado a outra perna... Foi há quase duas semanas.
-----
Há pouco, nem mais uma gota de urina me cabia na bexiga; por isso, tive de me arrastar até ao quarto de banho. Apesar de já não ser tão difícil como a princípio, ainda custa muito; assim como sentar-me na sanita.
-----
Daqui a pouco, eu deveria ir trabalhar. Mas não, ainda preciso de uns dias para descansar. Desconfio, também, que é mais fácil encontrar o beijo se ficar em casa, à espera que ela mo venha entregar.
-----
Chove imenso e ainda é noite.
-----Tenho medo.