terça-feira, 5 de junho de 2007

O BEIJO (1ª VERSÃO)

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    – Como podes ver, estou a conduzir... – ouvi.
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Eu acabava de procurar o beijo pela primeira vez.
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Postos no infinito, os seus olhos nem pestanejavam. Eu gesticulei como se estivesse a dizer qualquer coisa. E a auto-estrada, que não sabia do nosso conflito, continuava a correr.
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Fui ensaiando diferentes abordagens aos seus lábios congelados – mas nunca deles consegui retirar o beijo. Até que, no rescaldo da quinta ou sexta tentativa, um estrondo de traições me caiu sobre a cara.
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Não doeu. Mas assustou. No meu lugar do morto, eu não estava nada à espera. Por isso, abri muito a boca e olhei para ela.
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Ela? Calada. Esfíngica. Olhos na estrada.
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Ao espelho da pala, de boca fechada, examinei o que ardia em mim. Nenhum sinal da violência: nem poderia dizer, pela imagem reflectida, com que parte da minha pele tinha colidido a sua mão.
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Apesar da inexistência de provas que a incriminassem, amuei. Não sei por quanto tempo. O que sei é que, na cena seguinte, me pus a falar dos dias como se não existissem noites.
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E é que, entretanto, já estávamos em Lisboa. A cem metros da minha porta, retinha-nos um semáforo fechado. Olhei de lado para ela e avaliei, na sua quietude, um não sei quê de condescendência; foi só por isso que aproveitei, mais uma vez, para procurar o beijo.
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Ajeitei-me entre a sua cara e o pára-brisas; encostei os meus lábios aos dela.
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Ela já arrancava, então, e eu fechei os olhos para não ter medo. Tentei entreabrir-lhe a boca com o labor da minha, mas não resultou, não creio, mais uma vez, que tivesse havido beijo. Ela inclinou um pouco a cabeça, para que a estrada não fugisse, e eu senti um talvez respirado, húmido, sem luta nem procura.
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Afastei-me para o meu lugar. Reparei que estávamos ambos a sorrir, mas os seus olhos abertos fixavam o caminho com a perseverança dos mortos.
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Distraí-me com o vaivém das escovas no pára-brisas. Começara a chover como quando somos tristes.
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Pafff.
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Outro estrondo na minha cara.
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Parou o carro mesmo à frente da minha porta, que simpática!, virou a cabeça na minha direcção e sorriu: sorriu muito, sorriu bem, sorriu com os dentes todos.
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– Até amanhã! – ouvi. – Olha, não te esqueças de levar o livro que ficaste de me emprestar...
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– Ok! Até amanhã, então! Diverte-te!
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E ali fiquei, a derreter à chuva, enquanto ela se afastava. Nunca tinha sido tão simpática comigo...
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-----Uma semana depois, nós de novo dentro do citroën vermelho. Eu falava dos colegas no trabalho e dos trabalhos a que éramos obrigados. Houve um comentário qualquer que nos provocou duas gargalhadas simultâneas, tão simultâneas que pareciam uma só, daquelas muito grandes. Depois, o silêncio.
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Ela tinha os olhos presos ao caminho e a sua boca, imóvel e carnuda, brilhava como as estrelas mais brilhantes. E eu comecei a pensar que só a ouvia, nunca a via, rir e falar.
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Procurei o beijo.
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Pafff.
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Estrondo.
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Chovia e já estávamos parados no semáforo triste, às portas da minha porta.
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Foi, então, que tive a ideia: se calhar, os beijos não se roubam, negoceiam-se.
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A questão é que eu não tinha nada para dar em troca do beijo. Tudo o que podia fazer era mostrar a minha boa vontade. Assim que, quando ela parou para que eu saísse, arranquei o meu braço direito e pu-lo no banco traseiro.
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– Porquê? – ouvi.
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– Por nada... Gostava apenas que mo guardasses...
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-----O braço tem-me feito muita falta, mas eu quero muito encontrar o beijo. Por isso, não me importo.
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Além disso, há duas semanas, deu-se um pequeno desenvolvimento. Depois de entrar no carro, eu tive alguma dificuldade em pôr o cinto de segurança. Reparei, no entanto, que ela me ajudou a enganchá-lo. Parece-me, até, que a sua mão se demorou junto à minha mais tempo o exigido pela tarefa.
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Olhei para o banco traseiro, para verificar se ela me trazia o braço. Quem sabe, ela mo devolvesse e me descobrisse o que eu tanto procurava... Mas não... Talvez estivesse na mala? Por isso, até chegarmos ao semáforo, nem sequer tentei procurar o beijo.
Aí, então, como nada se passava, eu decidi avançar.
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Pafff...
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Um estrondo!
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Chovia e eu era maneta. Quando nos despedíamos, eu pensei que não estava a dar o meu máximo e só nessas condições mereceria encontrar o beijo. Por isso, decidi arrancar a minha perna esquerda:
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– Guardas-ma? – pedi.
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– Tens a certeza? – ouvi.
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Eu tinha a certeza.
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Chovia muito e eu estava triste como nunca: tinha pena de, mais uma vez, não ter encontrado o beijo. Encostei-me a uma parede e fiquei a ver o carro afastar-se: pareceu-me menos vermelho que habitualmente, talvez por a chuva cair com muita força sobre o seu tejadilho.
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Saltitei até casa.
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-----São seis da manhã. Ontem, estive todo o dia à espera. Tentei telefonar-lhe, várias vezes até, mas só me responde uma voz, a dizer que aquele número não está atribuído.
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Estou-lhe muito agradecido por ter subido comigo antes de eu lhe ter entregado a outra perna... Foi há quase duas semanas.
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Há pouco, nem mais uma gota de urina me cabia na bexiga; por isso, tive de me arrastar até ao quarto de banho. Apesar de já não ser tão difícil como a princípio, ainda custa muito; assim como sentar-me na sanita.
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Daqui a pouco, eu deveria ir trabalhar. Mas não, ainda preciso de uns dias para descansar. Desconfio, também, que é mais fácil encontrar o beijo se ficar em casa, à espera que ela mo venha entregar.
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Chove imenso e ainda é noite.
-----Tenho medo.

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