sábado, 7 de junho de 2025

doze de abril


Deixa-me hoje perguntar-te
que farás do que fazias
quando eu já não fizer parte
da costura dos teus dias.

Se não te encontro sorriso,
se não te sou mais que tarde,
se me temperas no olvido,
deixa-me hoje perguntar-te:

De quantos anos o tédio
se usará para medir
sem mal-estar o teu primeiro
ano sem doze de abril?

                        Portugal, 12 de abril de 2023

sexta-feira, 9 de maio de 2025

quadra 122 – papabile


Nunca serias papável
no conclave dos cardeais,
que és mulher, deusa improvável,
bela, papável de mais.

terça-feira, 6 de maio de 2025

quadra 121 – papabile



Nunca serias papável,
nunca serias dos tais,
que és, mulher, deusa incansável,
bela, papável de mais.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

quadra 120


O dia a dia não tem
nem segredo nem disfarce:
faz-se vida para quem
é sábio em desencontrar-se.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

quadra 119


Tens vivido homem absorto
no que em vida te conforte,
que sempre foste homem morto
por tanto receio à morte.

quinta-feira, 6 de março de 2025

primeiro café da tarde XLIX




antes o vento a chuva a ausência de sentido
depois a névoa e da névoa o nevoeiro a direção inconcreta
a seguir talvez o esqueleto de um percurso transitório
hoje nem interrogação nem dúvida já quase o extravio quase des-eu quase agora

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

soneto miau-miau-miau



Não têm sossego as noites desta casa
se a Lia insiste assim nos seus saraus,
chata chata rechata qual potassa,
reputante gabolas, carapau
de corrida. Não sei o que mais faça.
Já me indispus, mostrei cara de mau,
critiquei o mister da sua caça,
Vê se te acalmas, Lia, põe-te a pau,
um destes dias deixo de achar piada,
faz vista grossa aos musaranhos, mau-
-mau-mau, não sejas gata assim, senão
perdes o amigo, saio desta casa.
Penso chegar a acordo, miau-miau-miau,
mas ela só responde nhão-nhão-nhão.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

soneto ão-ão-ão


Confesso, agora quase nos sessenta,
contigo dos cinquenta a mais de meio,
que leve e em paz me extingo. Não receio
a última ausência, o fim não me apoquenta.

Costumas dizer, sempre tão atenta:
«Passaste pela vida, António, cheio
de adeus, falto de sonho ou devaneio.
A morte, para ti, já nada inventa.»

Posto que quase sempre assim tem sido,
concedo que talvez tenhas razão.
Isto antes de soltar, com um latido,

«Mas diz-me então, querida, diz-me então
por que nesta velhice tenho ardido
de a dentadas comer-te o coração?»


21/05/2024

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

quadra 118


Tudo em mim é desgoverno,
frenesi, amor esparso,
como quem trama no inverno
a esperta indústria de março.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Böhmen liegt am Meer (Ingeborg Bachmann)


BOÉMIA À BEIRA-MAR


Verdes sejam as casas por aqui e ainda terei casa onde entrar. 
Intactas sejam as pontes e prosseguirei em terra firme.
Perdido seja sempre o empenho no amor e aqui o perderei de bom grado.

A não ser eu, será alguém tão bom quanto eu.

Uma palavra se aproxime de mim e permitirei que o faça.
Continue a Boémia à beira-mar e regressará a minha crença nos mares.
Mantenha-se a minha crença no mar para a minha esperança de terra.

A não ser eu, será qualquer um, com o meu valor.
Nada quero para mim. Quero ir ao fundo.

Ao fundo é na direção do mar, onde reencontro a Boémia.
Se me afundar, será tranquilo o meu despertar.
No fundo agora sei – e encontro-me a salvo.

Vinde cá todos, boémios, marinheiros, putas do porto e navios
desancorados. Não quereis ser boémios, ilírios, veroneses
e venezianos? Representai as comédias que fazem rir.

Também as que buscam o choro. Errai uma centena de vezes
como eu errei, eu que nunca passei nas provações
mas sempre as superei, uma trás outra.

Como a Boémia as superou e de uma bela tarde
recebeu a bênção do mar para agora existir à beira da água.

Ainda me aproximo de uma palavra e de outra terra,
ainda me aproximo de tudo, por pouco que seja, cada vez mais,

um boémio, um errante que nada tem, que a nada se atém,
cujo único dom é ver, desde este disputado mar, a terra que escolheu.


Ingeborg Bachmann, Böhmen liegt am Meer  (traição de Luís Caminha)