sexta-feira, 13 de julho de 2007

AS PALAVRAS QUE RESTAM

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    Às nove em ponto, todas as noites, a porta batia e as palavras chegavam. Eu, que sempre as esperava, enchia-me de felicidade nesse momento – e apressava um copo de uísqui na mesa de centro.
-----Um minuto depois, já sentadas na minha sala de estar, as conversas começavam a meio. Aliás, as conversas também ficavam sempre a meio. Não me lembro sobre o que fossem, precisamente porque não tinham início e nunca procuravam fim. De facto, o que mais interessava nesse tempo nem era o significado dos dias: era o bruxulear das velas a desenhar tangentes às palavras. Claro que algumas palavras eram intocáveis, como a palavra vento, apesar de ser uma sombra grande e disforme que ocupava a sala toda, ou a palavra amor, que eu nunca soubera que tipo de palavra fosse mas descobri nesses dias ser um ponto esguio e sempre em fuga. Havia, também, por exemplo, a palavra mulher
, que era invisível embora se deixasse tocar. No entanto, apesar das peculiaridades de cada palavra, era sempre a sua relação com o ritmo da luz que nos permitia o seu reconhecimento.
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Enquanto a garrafa de uísqui se esvaziava e o inverno se acumulava nas minhas tíbias, crescia a secreta ambição de que aquelas horas sem sentido invadissem todas as minhas outras horas. Para isso, o meu primeiro passo foi desistir de empregar o tempo e pôr-me a gozar os requintes da casa.
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O subsídio de desemprego nunca mais chegava e, quando chegou, era pouco mais que nada. Foi bom, porque me pôs a comer de pouco e a beber de muito. Agora, as garrafas eram já de litro e cerveja, a trinta cêntimos no Minipreço. Prolongavam-se as presenças das palavras, adiantavam-se as suas aparições, e a sua independência era cada vez maior. Isso era maravilhoso.
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Entretanto, deu-se a tragédia. O subsídio desceu para nada e os dias dos meses especializaram-se na dissecção do euro. Até que, quando já não havia material para dissecar, as frases regressaram. A falta de combustível impedia a persistência das palavras.
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Hoje trabalho numa sapataria da Rua Augusta. Exigiram-me que não fosse tão monocórdico com os clientes, monocórdico, dizem eles..., e a música morreu dos meus ouvidos. Chego extenuado a casa, como, deito-me, levanto-me, as palavras quase partiram.
-----Restam a palavra vida, que é negra como breu mas não deita sombra, e a palavra morte, translúcida, bela, inacreditável – a única que ainda me faz sonhar à passagem da luz.

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