sexta-feira, 20 de julho de 2007

SUSPENSÃO

-----O chefe de esquadra consultava num papel a sucessão de acontecimentos que tinha trazido o criminoso à sua frente.
---- – Diga-me uma coisa, senhor...
-----– Diga – respondeu o senhor, sem deixar que o outro pronunciasse o seu nome.
-----– Vejo que está bastante calmo. Não está preocupado?
-----– Eu estou bastante preocupado.
-----– Não parece. Talvez não saiba que pode ter de ficar cá esta noite. Esta noite e, estou em crer, muitas mais. Que pensa disso?
-----– Preocupo-me.
-----– Só? Preocupa-se? Já agora... posso saber com quê?
-----– Com o que fiz, faço e farei. Com o que visto, digo e penso. Com o que os outros pensam de mim, em cada momento e de cada um dos meus movimentos. Preocupo-me, sobretudo, com a passagem do tempo.
-----O chefe de esquadra não queria acreditar.
-----– Não. Você não pode dizer isso, meu amigo. Você não se preocupa.
-----– Saí à rua sem roupa, é o que aí diz. E então?
-----– Oh meu amigo, você saiu à rua todo nu. Quer dizer, em meias e sapatos. Não pode dizer que se preocupa com a opinião dos outros.
-----– Se eu lhe disser que provavelmente dormia?
-----– Dormia, pois então. Acordemos em que dormia. Mas o que fez, então, enquanto dormia?
-----– Fui comprar o jornal, está visto. Se o tenho aqui comigo...
-----– Acreditemos que o comprou, embora não tenha consigo mais nada a não ser o jornal. Mas, enfim, vou acreditar que saiu à rua, nu e com noventa cêntimos na mão...
-----– Só pode ter sido. Ou, então... roubaram-me a carteira.
-----– Ok, ok. E, já agora, chegou a ler o jornal?
-----– Se o li, não me recordo.
-----– Não está a par, então?
-----– A par?
-----– Sim, a par das notícias do dia.
-----– Nada que me inclua, decerto.
-----Os olhos do chefe de esquadra regressaram ao papel incriminatório.
-----– Diz aqui que você roubou esse jornal. Mas também diz que, antes de o roubar, esmurrou o proprietário da papelaria.
-----– Disso lembro-me. Vagamente... Lembro-me vagamente de que me apeteceu. Quer dizer, não me lembro que tenha sido hoje, mas aquela tromba. Apetece-me... De facto...
-----– Uhm... Lembra-se só de que lhe apeteceu...
-----– Sim. Ele olha para mim de um modo bastante estranho.
-----– Provavelmente devido ao modo como está vestido...
-----– Não estou vestido.
-----– Ou isso.
-----– Se não estou vestido como é que ele reparou no modo como estou vestido?
-----– Convenhamos, então. Reparou no modo como não está vestido.
-----– E isso era motivo para eu o esmurrar?
-----– Pergunto-lhe eu. Há pouco disse que se lembrava vagamente...
-----– Da vontade. Da vontade para o esmurrar. Apenas isso.
-----– Então, o que me quer dizer é que não foi você. Sabe que o homem tem o olho negro e um corte feio no lábio inferior...

-----– Não, não sei.
-----– Muito bem, meu amigo, muito bem. Passemos à frente. Então diga-me lá: o que fez a seguir?
-----O amigo fez cara de não se lembrar.
-----– Não me diga que vai dizer que não se lembra...
-----– Não. Sim... Quer dizer, não me lembro.
-----– Muito bem. A seguir encontramo-lo na paragem de autocarro, à frente da papelaria, com o jornal roubado.
-----– Talvez...
-----– O que não é nada de anormal, convenhamos.
-----– Convenhamos.
-----– Convenhamos, pois. Convenhamos que estar na paragem de autocarro é normalíssimo. Se bem que, completamente nu...
-----– Com sapatos e meias... E o que é que isso tem?
-----– Talvez já não seja assim tão comum.
-----– Comum, comum, não é.
-----– Óptimo, então estamos de acordo.
-----– Não é comum, não. Mas também não é uma coisa do outro mundo...
-----O chefe da esquadra debruçou-se sobre a mesa de modo a ficar mais próximo do seu interlocutor, que usava o jornal aberto para esconder a nudez mais grave. Baixando a voz, perguntou-lhe:
-----– De facto, não parece ser coisa do outro mundo... Mas, e o que aconteceu a seguir?
-----– Poderá relembrar-mo? Está aí escrito nesse papel...
-----– Não vem aqui com todos os pormenores...
-----– Ora, ora... Em traços gerais, se não se importa...
-----– Segundo uma das pessoas que estava na paragem, o meu amigo beijou a omoplata da sua mulher. Sua mulher, dele, claro.
-----– A omoplata...
-----– Sim, digamos: o ombro.
-----– E porquê?
-----– Se mo disser você...
-----– Porque o ombro em questão seria apetecível.
-----– Compreendo... Apeteceu-lhe.
-----– O senhor já esteve numa paragem de autocarro?
-----– Às vezes...
-----– E?
-----– E?
-----– E então?
-----– Não percebo onde quer chegar...
-----O criminoso recostou-se na cadeira:
-----– Tem mais alguma queixa sobre mim?
-----– Ora bem... Depois de beijar a omoplata da senhora em causa, encostou os lábios, diz aqui, encostou os lábios aos lábios de outra senhora que estava sentada ao lado.
-----– Aos lábios, diz aí.
-----– Exacto... Os lábios aos lábios.
-----– Os lábios aos lábios. Mais nada...
-----– Diz aqui.
-----– Ora, meu senhor, posso ou não posso ir-me embora?
-----– O que acha?
-----– Depende. Fiz mais alguma coisa de gravidade tamanha?
-----– É tudo.
-----– Está aí tudo, então. Para que serve, então, esta conversa?
-----– Estou a dar-lhe uma oportunidade para se defender. Tudo isto foi contado pelo dono da papelaria, pelas duas senhoras e pelo marido da primeira.
-----– É tudo mentira.
-----– Além dessas pessoas, há bastantes testemunhas.
-----– Não me lembro de nada.
-----– Então, pode não ser mentira.
-----– Se não me lembro é porque é mentira.
-----– Não disse há pouco que não estava acordado?
-----– Não me lembro.
-----– Então, pode não ser mentira.
-----– Se não me lembro é porque é mentira.
-----– Não disse há pouco que não estava acordado?
-----– Não me lembro.
-----– Então, pode não ser mentira.
-----– Se não me lembro é porque é mentira.
-----– Não disse há pouco que não estava acordado?
-----– Não me lembro.
-----– Então, pode não ser mentira.
-----– Se não me lembro é porque é mentira.

-----– Mas não disse há pouco que não estava acordado?

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