terça-feira, 4 de setembro de 2007

A CONSTRUÇÃO DOS LAVABOS

Comecei por gastar a maior parte das horas à mesa do café subterrâneo. Jornal sob a asa, chegava às sete da manhã, ia buscar um galão, sentava-me. As parangonas demoravam-me e nos artigos me estendia, à espera que o galão esfriasse: bebia-o à hora do almoço, com uma pedrinha de gelo.

O empregado da tarde obrigava-me, então, a apressar outro pedido, que eu insistia em ocupar a mesa e àquela hora já se vê. Incapaz de fazer cara má, lá pedia eu uma sopa, para lhe atenuar a indisposição. Vinham, assim, uma colher e uma tigela de água quente e salgada, a que eu adicionava mais um copo de água e três pedras de gelo quando a tarde se tornava tarde mesmo.

À noite nunca havia pão e, sabendo-o, lá ia eu por uma sandes de queijo para quando acabassem os efeitos da sopa fresca. Depois disso, ao bater das dez, uma cola sem açúcar e uma dose de batatas fritas com ketchup. Não sei porquê, e daí até fechar, todas as loiras que coubessem no tempo.

No princípio, a empregada da noite achava um abuso as minhas estadias solitárias, mas ao longo desses meses foi-se habituando. Com o tempo até começou a sorrir para mim, sobretudo quando o meu olhar a acompanhava em horas quase mortas.

– Qualquer dia muda-se para cá – disse uma vez em que me viu de jornal aberto, perna esticada e mochila ao lado. Três ou quatro livros, duas sandes, uma peça de fruta, qualquer dia eu mudava-me, ai mudava, mudava.

Foi então que começou a construção dos lavabos na estação e o café foi obrigado a encerrar durante dois meses. Nesse comenos, a carruagem em que me enfiava às seis e meia levava-me até ao fim da linha. Metia-me, então, noutra que me repetia em sentido contrário. E noutra ainda que no sentido ímpar me regressava. E outra ainda que... Andavam-me de um lado para o outro. Por todas as linhas, primeiro, depois por aquelas que menos gente levavam, consoante os dias e as horas.

De vez em quando eu saía na estação do café para observar o desenvolvimento das obras. Fazia-o com um interesse que só agora compreendo bem:

Passei pela vida a fugir dos outros. E apesar de ter arrancado ao resto do mundo uma pensãozita para a velhice, a verdade é que a consegui sem nunca ter tido um emprego a sério: onde os outros viam estabilidade eu sempre vi prisão. Por isso, sempre que surgia o momento para me encaixar, eu ficava quieto no meu canto a esperar que a conjuntura passasse.

Mulheres? Fui cornudo e encornador, algumas vezes, até, em sequência: ou por artes de qualquer relação de causa e efeito ou por mero acaso, a verdade é que aconteceu. Detestei ambas as condições: não há retrocesso para o fruto que apodrece.

Confesso que, em geral, delas apenas quis sexo e alegrias mas creio, sinceramente, que amei algumas... Bem: haverá quem diga aí por cima que eu apenas precisei delas. Quando os sorrisos começavam a clamar por compromisso, eu torcia-me como papel ao fogo e desfazia-me em mentiras para poder recuperar a estimada liberdade.

Foi exactamente o que aconteceu há trinta anos, com a última mulher que desejei. E tanto a desejei que passei a vida a fugir dela. Chamava-se Paula e recordo com toda a clareza o medo ao mundo que a impedia de descer ao metro.

Vivo na Praça Redonda, linha castanha. Instalei-me com a inauguração dos lavabos.

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