quarta-feira, 19 de setembro de 2007

EXERCÍCIO DE ESCHER

– Nem imaginas os segredos que eu vou levar para a cova! – disse o coveiro, e aí é que começou a confusão.

O outro desacelerou até ao repouso o movimento do copo que a sua mão levava da mesa à boca. Durante um bom meio minuto, abriu muito os olhos, num quase todo de resto muito parado, e acabou por devolver o copo à mesa.

– Nem imaginas! – repetiu o coveiro.

– Mas de que cova falas, ó homem?

Agora foi a vez do coveiro ficar pasmado, porque o que realmente interessava ali eram os segredos. Mas, como não há dois homens iguais, este vazou na boca quanto vinho o seu copo transportava. Devolvendo à mesa o precioso utensílio e preparando-o para voltar a ser instrumento da sua avidez, pronunciou, desta vez mais lentamente:

– Nem imaginas os segredos...

– ...que hás-de levar para a cova. E eu volto a perguntar: Mas qual cova?

– Ora, qual cova? A minha, mas qual é que havia de ser?

– A tua? Qual tua? Nesta aldeia são todas tuas!

– Estás bêbedo ou quê? A minha cova! A cova onde me hão-de enterrar, porra!

No canto da taberna onde menos luz havia, a conversa perdia o rumo e o coveiro impacientava-se. Na sua garganta, um prenúncio de cólera destacava dois desfiladeiros ao comprido.

– A cova onde te hão-de enterrar? – repetiu o outro, que não se dava conta destas alterações. – Mas estás doido ou quê? E quem ta vai abrir? Podes dizer-me?

O coveiro pareceu ficar perturbado por uns momentos com a lógica do raciocínio.

– Os segredos! São os segredos que contam!

– E eu quero lá saber dos teus segredos e de quem os conta...

– Seu filho da puta! – gritou o coveiro, com um murro na mesa. – Era uma expressão! Quando eu for para a cova, quando eu morrer! Mas o que conta são os segredos!

O outro encostou o copo cheio à boca e, desta vez, verteu-o também de uma só vez, repartindo o conteúdo entre o caminho usual e as suas barbas grisalhas.

– Ó meu grande filho da puta, digo eu! – disse, depois, com toda a calma, o que injuriava ainda mais. – Então leva mais este segredo contigo: tu não vais levar nada para a cova, porque não vais ter quem ta faça!

O coveiro não queria acreditar.

– São os segredos... os segredos é que interessam, cabrão de um raio!

– Mas que segredos, ó coveiro de meia tigela... A que segredos te referes tu?

– Aqueles que nunca saberás, palhaço de merda!

O outro, já de copo cheio, estacou outra vez o braço a meio da viagem mais comum e arregalou os olhos.

– Ninguém me chama palhaço, ouviste? Ninguém! Muito menos um palhaço...

– Palhaço, sim! É o que tu és: um palhaço armado em esperto.

– Nós sabemos muito bem quem é o palhaço aqui... – pronunciou o outro, muito lentamente, não fosse o coveiro perder uma sílaba.

Foi então que o coveiro puxou do canivete e rasgou o interlocutor cintura acima, até ao obstáculo do primeiro osso. Este ainda se levantou, para se deixar cair sobre a mesa, entornando o jarro de vinho. Sobre a madeira de pinho, a luz mal deixava distinguir o sangue do líquido que o simboliza; e a morte chegou sem mais ruído que um suspiro.

Contam os que assistiram a esta cena que o coveiro levantou o corpo do seu amigo de sempre e correu com ele ao cemitério. Anestesiado pelo vinho e antes que a dor o consumisse por completo, cavou sob lágrimas e gritos durante um par de horas. Quando os habitantes da aldeia chegaram à procura dos contornos finais da desgraça, ele e o amigo jaziam, cada um na sua cova.

O coveiro também fizera a sua. E os segredos, esses não interessam para nada.

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