quinta-feira, 30 de setembro de 2010

NUMA NOITE COM OS MINUTOS DESTA

sabe     sempre soube     que não tem cama bastante para ti
e não sonha a casa que te aprisionaria     tudo o que tu não queres ele contigo enjeita

é por isso que não estranha o vazio do teu cabelo nas mãos que ainda lembram     e é também por isso que sempre conjuga os tempos da ausência na tua voz

numa noite com os minutos desta     descobre que já se habituou ao silencioso adeus com que foi morrendo na memória do teu ventre

numa noite com os minutos desta     apenas se consolaria do brevíssimo sorriso     do sopro de ontem     do pó sem futuro     que num cantinho de coração tu lhe tivesses guardado

.

Alguns dizem estar desertos por chegar a casa e eu continuo deserto dela.

REDONDILHA MENOS

és desequilibrista     digo-lhe eu     andas sempre à procura do voo picado que te esqueça
mas a vida não é isso     dionísio     a vida faz-se de vivê-la

ele nem ouve
pega no portátil e deixa-se cair outra vez          o milionésimo raide à rede     em busca de um nome     uma cara     um vestígio das novidades que perdeu

quando     por fim     se apeia no meu relógio     é só para despir as lágrimas     e vestir de sorriso     e sussurrar-me um ou dois pedidos:

luís     por que não te calas?
cala-te e volta a ajudar-me com as tuas malditas redondilhas     repõe o sonho     arredonda as arestas da minha queda

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

ANGÚSTIA

nesse ilhéu que tu habitas     não há telefones nem correios     dionísio     nem sequer o vento     que levanta as palavras quando os homens querem

que te resta senão explodir?

sábado, 25 de setembro de 2010

PELA ABOLIÇÃO DAS TOURADAS

paulo borges lançou há tempos uma petição pela abolição das touradas e dos espectáculos de touros com os argumentos que aqui se podem ver: http://www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=010BASTA

lesado por esta bem fundamentada petição     tão lesado que chega a fazer-nos pensar que a mesma é um acto de terrorismo     pôs-se de bespinhas o presidente da câmara de santarém      que se diz franciscano e aficionista sem imaginar sequer que há aqui uma contradição nos termos e     pior do que isso     usando o seu bizarro franciscanismo como argumento de autoridade
num texto pejado de incongruências     raciocínios dicotómicos e simplistas e ataques ad hominem     chega a chamar de talibãs e histéricos     entre outras injúrias     aqueles que apelam à abolição das touradas e que     por isso     também constituem uma horda de analfabetos
fica aqui      já agora     o endereço deste chorrilho     que ilustra na perfeição como não se deve defender uma causa e que se coaduna     esse sim     com a mais conhecida acepção de histerismo:
http://www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=P2010N2951

incrédulo ante as barbaridades e os disparates     e nem que fosse para manter apenas a higiene mental     já me preparava eu para alinhavar     neste cantinho que me organiza     um humilde comentário à salada de pseudices com que moita flores pretende defender a chamada festa brava
mas começava a fazê-lo quando alguém me mostrou que não era preciso:     o próprio paulo borges se encarregou disso     e bem melhor do que eu faria     na sua resposta aberta:
http://triplov.com/triplo2/2010/09/23/carta-aberta-de-paulo-borges-a-moita-flores-sobre-as-touradas

coteje-se para que não restem dúvidas

RESSACA

no primeiro dia prometeu que nunca mais se avinhava     no segundo garantiu que o copo vinha apenas ao almoço

só que hoje viu-te passar ao longe     talvez tivesse imaginado?
não pôde que não subisse a escada com as ânsias em volta     e torceu a pata     e arrastou-se até à cama     e de novo se meteu na jaula

enfim     urge a garrafa do esquecimento


alguém me diz como dionísio acaba?

terça-feira, 21 de setembro de 2010

DOENÇA FATAL

garantiu-lhe quem sabe     que não se ama ao longe     que o amor é sempre a mais do que um

só agora parece entender que as suas escolhas sempre o levaram a menos do que dois

isto que tanto lhe dói não será amor     não:     é a-mor-te

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

justiça

olhai como esse homem cabisbaixa     como sobre um copo de amargura já desiste do que está por vir
olhai como ele hipoteca o passado e injustiça os que decidiram partir
olhai e aprendei     meus amigos     e aprendei também para mim:

que todo o sorriso guarde as despedidas se também pela morte se mede a vida

MIÚDA

eu peço a cerveja     ela o café com perna-de-pau     é o nosso encontro à sexta

às vezes trocamos as minhas escrituras pelos estudos que a apaixonam     mas esta voz     que tantas vezes apago     açambarca a maior parte do nosso tempo
claro que as novidades são dela e eu apenas me esforço por limar arestas de histórias antigas
antes ainda me avisava     já disseste isso na semana passada          talvez seja a poeira dos anos que me obriga a juntar pormenores noutros tons das mesmas cores          é por isso que ela agora sorri quando eu me repito e que eu me repito ainda mais porque a vejo sorrir

outras vezes     no entanto     como anteontem     eu passo demasiado rente ao solo e ela parece exausta
guardamos silêncio     então     que não sei de quem melhor lide com a minha tristeza     e só me importa adivinhar o sabor do gelado     e sentir o aroma do café     e perceber que ela dormiu tão pouco

será que a convenço para hoje?           fiquei tão só da semana que trazia...

domingo, 19 de setembro de 2010

INVERNO

dionísio já não quer saber de cinemas e outros teatros     as patacas mal chegam para a zurrapa do consolo
digamos     à guisa de resumo     que abocanhou o anzol do fim e foi apanhado na rede          é aí que     rechiflao en su tristeza     gardel lhe esmurra a espera e os mariachi lhe atiram culpas

há também     ao que parece     um correio sempre vazio e o silêncio dos telefones
entretanto e no entanto     ele ainda suspira e chora quando na caixa dos possíveis desatam dois a querer-se
nessa mesmíssima caixa     e para sermos completos     já não há socratice     nem coelhos à solta nem novas alçadas que possam voltar a fazê-lo casquinar

dionísio     enfim     esfriou demais     nenhum outono quer receber a coroa do  tão-estio que agora morre

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

DESAMPARO APRENDIDO

quantas dessas lágrimas     quanto desse coração apertado nas urgências do hospital     quanta morte deixaram os que partiram sem adeus?
quanta mágoa abafas dos olás que te proibiram?
quantas vezes     quantas     calcas esse tão sentido amo-te que mal te adormece já te desperta?

quanto guardas      prescindível dionísio     da vida que nunca foi tua?

OBSTINAÇÃO

dionísio esqueceu que o assassinaste     que a vossa última cama era já o seu enterro     que estes aparentes bons-dias apenas são as missas obrigatórias

é por isso que abre a porta e guarda a casa:    para que o dia em que regresses repita os dias em que ficavas

mais rara foi essa vez em que lisboa nevou

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A TUA CASA

todas as noites o homem te espera     olhar posto onde por onde chegarás     convicto de que em deus e outros demónios tu lhe pertences
pescoço guerreiro e vertical     um cíclico lamber de pestanas na luva do sono     assevera que o vosso encontro vem de outras carnes

cumprimenta-me já sol     que é quando me vê passar      e pergunta-me por que histórias nunca mais quiseste

sei lá eu     caro amigo     sei lá eu dela e de quem dela sabe

também não importa     garante o silêncio do homem     porque um dia     ninguém duvida     tu hás-de vir por quem te espera sempre

nesse dia     pedir-lhe-ás que entre
e será esse o teu primeiro pé dentro da casa

QUE DE RARO

que de raro tem dom joão destruir os alarmes     navegar plano e piano sob as ondas que passaram    saber que anteontem se extinguiu o futuro?
que de raro tem que     apesar de tudo     agora sejas a deusa única e serena     essa que a um tempo lhe liberta o sonho e angustia a espera?
que de raro tem o amor sem fim após o fim dos amores?

que de raro     ó maravilha     que de raro     se ainda e sempre dom joão te quer tanto?

terça-feira, 14 de setembro de 2010

VENDE-SE

pôs uma casa sobre caboucos de lama quando a lama ainda era promessa
e diga-se     por que não se esqueça     ergueu pintou entreteve as mãos com tontura antiga e vertigem recente
durante meses     juro-to     inventou que tudo aquilo ainda viria a ser um lar

e é cobardia isto agora?

sabe-se lá     que importa o que é...          verdade é que a casa não lhe apetece e que lisboa junto aos anjos também se vende

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

DAS NUVENS PELO AR

todos se instalaram no teu sorriso largo e sonharam entre a sopa e o pudim
depois veio o brinde     o desejo de que estejas sempre
e     quase por fim     muito quietinho     o sofá sentou os sonos que foram chegando

tu e eu somos este milagre mesmo     o tempo que em nossos corpos a rotina sempre junta

domingo, 12 de setembro de 2010

DIVÓRCIO

jamais te oferecerei a flor que pedes     não sou de fazer a morte com as minhas mãos
e se reparares bem nos dias que gasto      também não sei proteger o viço da rosa à custa de outras seivas

parece tão simples     não parece?     tão ultrapassável

e     no entanto     continuamente nos obstinamos na incompreensão do outro

deixemos     pois     cair este nosso exagero a que chamas amor

sábado, 11 de setembro de 2010

isso de amores

passa pela noite sem fotografias mas exibe-se ao espelho na tasca da uma
é lá que esconde a saudade pelo que nunca teve e doura num sorriso os deuses paralelos

já ia larga a viagem de ontem quando a única fêmea lhe pôs num sussurro     como vai isso de amores?
uma merda     e sabe-se que assim é
não sei por que mais     também lhe quis ela perguntar     e tu és dos que são de mulheres?

da garrafa     dionísio engoliu mais de meia anestesia e disse tudo          não     eu sou dos que são de nada     a perda dos teus minutos     um vazio na cama

e nessa madrugada     isso de amores foi a merda do costume

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

e tu

talvez as melhores contas acabem no treze     como a dos animais que estimei e estimo     com ninho aos meus pés e coração na cabeça:

o branco e a riquita     cães em angola que a minha infância maltratava e que     ainda assim     me quiseram

três coelhinhos
o primeiro de todos     o terrífico     sempre pelos arcanos da casa     à espreita da vigilância esquecida
depois      esses que antónio chamei     à distância de um lustro: o de orelhas pelo chão     e o de orelhas como as orelhas são

o sapo-concho     em que nunca pensei com nome porque ele nunca mo quis     de meu pai ao lago roubado     um dia ao lago devolvido

o piloto     tão dono do meu destino

a bonita     tão ávida nas minhas mãos

a pombinha que no armário convalesceu e que     de ave já     se fez ao céu

o mais pequeno     mais raquítico porquinho     que roubei à morte na ninhada mas que trouxe a morte ao meu quarto

o barbas     velho amante     incondicional admirador do meu passado

o bê-dê     esse grande e meigo café com leite     feliz agora e tapete decidido na investigação dos meus passos

e tu     meu amor

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

JÁ NÃO HÁ CARCAÇAS SALGADAS

o sal agride-me o palato na maioria das sopas          mas     nos últimos tempos     já o avaliava no pão em justa medida
desconfio     por isso     que a lei há pouco saída     impedindo mais de 0,55g de sódio por 100g de produto final     está apenas a proibir gambozinos

lei séria promoveria melhor informação sobre os malefícios do sal em excesso    e não só          lei séria imporia a todos os alimentos a indicação da quantidade de sal     e não só          lei séria realçaria em todas as embalagens os valores diários aconselhados     de sal e não só

cada um deveria poder fazer as contas e decidir por si
exemplificando     quase todos os queijos são salgados e às vezes até me apeteceria neles um naco de insulsez          assim como     outras vezes     me poderia alegrar uma carcaça salgada
agora sei que isso é impossível

que obrigado estou por continuarem a decidir por mim!          eles bem sabem: o estúpido sou eu

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

sakineh


não consigo imaginar     sakineh      por que torturas a mentira se fez verdade

talvez já não esperes a clemência dos bandidos     talvez estejas convicta de que nem a mereces de tanto deus que te falta
sim     porque deus é só quando os homens querem     e os homens que governam o teu país são poços vazios das almas que sugam

não consigo imaginar     sakineh     a vida castigada no látego insensível
que mão atormentou as tuas procuras?     com que cega cobardia comanda ela os destinos do teu corpo?     como pode ela decidir o fim dos teus dias?

só encontro na minha perplexidade os olhos vazios e fundos com que se preparam para te apedrejar

a estupidez é o seu castigo          mas por que razão hás-de tu pagar por ela?