quarta-feira, 13 de agosto de 2025

primeiro café da tarde LIII — desagosto


 

em agosto não te chateio    por isso não te chateies


seria de bastante mentecapto aos nossos anos

eu não ter ainda entendido que em agosto

mudas de mundo e deixas em espera este mundo tão

                    desagostoso

que é o nosso e que por definição

te azucrina os miolos


quando regressares    no início do longo

                    desagosto

que te é pausa de vida e inverno por inteiro

pensarás como sempre sóis     e eu bem sei que sempre sóis


trezentos e trinta e quatro

    são os sóis por que se estende

    esta peça de teatro

    que já nada surpreende

cansa-me a tua presença

    antóneo    ah quanto me cansa

    quanto me deixa hipertensa

    essa tua pose mansa

não me dês cabo da mona

    se o bom senso to permite

    estou farta    assim não funciona

    estou para lá do limite

há já vinte anos que agosto

    é a ausência do teu rosto


e eu    maria    já não farei o que sempre fiz    pois de

existir persistir insistir

me cansei

desta vez hei de oferecer-te agosto depois de agosto

acabou-se o teu desagosto

é hora de eu desistir

quarta-feira, 30 de julho de 2025

primeiro café da tarde LII — distanciamento


tu não te ponhas tão séria a pensar no que é preciso fazer

podes fechar os olhos    isso podes    calcular a média por alto

            não tem de ser ponderada nem tem de ser

            com a emoliente e estorvante atenção que minimize o erro

            não te martirizes com decimais    negligencia até a importância

            do algarismo das unidades

podes aproveitar isto sem ser aluna exemplar     sabes?    basta que te lembre

de quando em vez a aferição da distância    essa distância em que

não te vejas tão de perto

            como diria o outro    isso é uma tragédia

nem te vejas tão de longe

            como costumo dizer eu     isso não é nada

antes possas apreciar a diluição da lágrima no sorriso e deste no riso

enquanto     como diria aquele mesmo outro    se precipita

a comédia

terça-feira, 29 de julho de 2025

primeiro café da tarde LI — Lia e a contagem das sílabas


não é por     baquetas     os meus dedos tamborilarem o tampo da mesa

que a gata deixa de ser gata

no insolente âmbar dos seus olhos arde

o fascínio que prepara o rebate


tu não estás quem há pouco ronronava

    murmuro em decassílabo perfeito

    quando atento na cena e me distraio

    no labor digital de outro soneto

não há problema    ó lia    ultimamente

não sei porquê    malbaratei o ritmo

e a precisão das sílabas no verso

já só os dedos podem confirmar-ma


ela desvia o olhar pela primeira vez

e eu pela segunda liberto os dedos

um dois três quatro seis    sete oito dez

um dois três quatro    seis sete oi    to dez

em busca de outros modos e melhores

de ensinar o que nunca pratiquei


eis senão quando o rebate se dá

a unhada    o mio

    deixa-te disso    poeta malandro    estás a irritar-me

e o sangue mancha-me o último terceto

e a dor lancina-me os versos restantes


ah    ingrata    estragaste-me o soneto


estraguei-te o soneto?

mas tu não percebeste nada    antóneo?

a contagem era péssima e    à parte isso    o soneto

era uma porcaria





segunda-feira, 28 de julho de 2025

primeiro café da tarde LXI (Amorfos)


        o que me lembra do primeiro café da tarde

        no tempo em que o tomávamos quando eu te visitava

           estou cá em baixo    hoje podes?

        ou tu me procuravas em me eu arredando

           por onde tens andado     meu amigo?

        e as visitas e as procuras soíam enredar mais

        do que indubitáveis chegadas e longas travessias

o que me lembra     e todos os dias me lembra     desse café embarcado

na lenta clepsidra do teu olhar no meu olhar no teu olhar

    o que me lembra desse café não caberá à justa nestes que nisto se fez


ah     pois é     estou certo de que hoje seria impossível ou     no mínimo     complicado

acondicionar na mesma embalagem estes que nisto se fez

    as rugas não são apenas à superfície     como é óbvio     o que já por si dificultaria

    o ajuste de esperas avanços retrocessos

    acresce    aliás     que     embora o hábito no-lo renegue     a geometria

    impecável dos homens não se compadece

    do aqui que ali se dilatou do ali que aqui se contraiu

amorfámo-nos     amiga     é o que é     espatifámo-nos na curva

de que estávamos avisados e que ainda assim quisemos inventar


mas de que outra maneira havia de ser a vida?


terça-feira, 15 de julho de 2025

síndrome do estupor


Se há pouquinho aquele teu gesto

não esperava nada em troca,

se foi por gosto e de resto

nada de meu te sufoca,


dirás, quando eu fizer de anjo

e esconder o meu demónio:

«Pára com isso, marmanjo,

basta-me seres António.»


(Isso ao menos me asseveras

quando te confesso que antes

dedicava as primaveras

ao sufoco das amantes.)







domingo, 13 de julho de 2025

primeiro café da tarde L


hás de contar a essa doida varrida que devorou
sem qualquer contemplação todos os mágicos recantos
que me faziam maior     hás de contar-lhe um destes dias
que os caboucos do que sou ou disto que invento que sou
são firmes de mais     são tanto face ao que ontem prometia

hás de contar-lhe     a propósito     que já não vale a pena
acreditar hoje em dia que em mim tudo é impostura
     há uma ou outra excepção há um ou outro condimento
     neste paulatino arrasto que torna a espera serena
conta-lhe que havia cura     conta-lhe que vou vivendo

sábado, 7 de junho de 2025

doze de abril


Deixa-me hoje perguntar-te
que farás do que fazias
quando eu já não fizer parte
da costura dos teus dias.

Se não te encontro sorriso,
se não te sou mais que tarde,
se me temperas no olvido,
deixa-me hoje perguntar-te:

De quantos anos o tédio
se usará para medir
sem mal-estar o teu primeiro
ano sem doze de abril?

                        Portugal, 12 de abril de 2023

sexta-feira, 9 de maio de 2025

quadra 122 – papabile


Nunca serias papável
no conclave dos cardeais,
que és mulher, deusa improvável,
bela, papável de mais.

terça-feira, 6 de maio de 2025

quadra 121 – papabile



Nunca serias papável,
nunca serias dos tais,
que és, mulher, deusa incansável,
bela, papável de mais.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

quadra 120


O dia a dia não tem
nem segredo nem disfarce:
faz-se vida para quem
é sábio em desencontrar-se.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

quadra 119


Tens vivido homem absorto
no que em vida te conforte,
que sempre foste homem morto
por tanto receio à morte.

quinta-feira, 6 de março de 2025

primeiro café da tarde XLIX




antes o vento a chuva a ausência de sentido
depois a névoa e da névoa o nevoeiro a direção inconcreta
a seguir talvez o esqueleto de um percurso transitório
hoje nem interrogação nem dúvida já quase o extravio quase des-eu quase agora

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

soneto miau-miau-miau



Não têm sossego as noites desta casa
se a Lia insiste assim nos seus saraus,
chata chata rechata qual potassa,
reputante gabolas, carapau
de corrida. Não sei o que mais faça.
Já me indispus, mostrei cara de mau,
critiquei o mister da sua caça,
Vê se te acalmas, Lia, põe-te a pau,
um destes dias deixo de achar piada,
faz vista grossa aos musaranhos, mau-
-mau-mau, não sejas gata assim, senão
perdes o amigo, saio desta casa.
Penso chegar a acordo, miau-miau-miau,
mas ela só responde nhão-nhão-nhão.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

soneto ão-ão-ão


Confesso, agora quase nos sessenta,
contigo dos cinquenta a mais de meio,
que leve e em paz me extingo. Não receio
a última ausência, o fim não me apoquenta.

Costumas dizer, sempre tão atenta:
«Passaste pela vida, António, cheio
de adeus, falto de sonho ou devaneio.
A morte, para ti, já nada inventa.»

Posto que quase sempre assim tem sido,
concedo que talvez tenhas razão.
Isto antes de soltar, com um latido,

«Mas diz-me então, querida, diz-me então
por que nesta velhice tenho ardido
de a dentadas comer-te o coração?»


21/05/2024

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

quadra 118


Tudo em mim é desgoverno,
frenesi, amor esparso,
como quem trama no inverno
a esperta indústria de março.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

Böhmen liegt am Meer (Ingeborg Bachmann)


BOÉMIA À BEIRA-MAR


Verdes sejam as casas por aqui e ainda terei casa onde entrar. 
Intactas sejam as pontes e prosseguirei em terra firme.
Perdido seja sempre o empenho no amor e aqui o perderei de bom grado.

A não ser eu, será alguém tão bom quanto eu.

Uma palavra se aproxime de mim e permitirei que o faça.
Continue a Boémia à beira-mar e regressará a minha crença nos mares.
Mantenha-se a minha crença no mar para a minha esperança de terra.

A não ser eu, será qualquer um, com o meu valor.
Nada quero para mim. Quero ir ao fundo.

Ao fundo é na direção do mar, onde reencontro a Boémia.
Se me afundar, será tranquilo o meu despertar.
No fundo agora sei – e encontro-me a salvo.

Vinde cá todos, boémios, marinheiros, putas do porto e navios
desancorados. Não quereis ser boémios, ilírios, veroneses
e venezianos? Representai as comédias que fazem rir.

Também as que buscam o choro. Errai uma centena de vezes
como eu errei, eu que nunca passei nas provações
mas sempre as superei, uma trás outra.

Como a Boémia as superou e de uma bela tarde
recebeu a bênção do mar para agora existir à beira da água.

Ainda me aproximo de uma palavra e de outra terra,
ainda me aproximo de tudo, por pouco que seja, cada vez mais,

um boémio, um errante que nada tem, que a nada se atém,
cujo único dom é ver, desde este disputado mar, a terra que escolheu.


Ingeborg Bachmann, Böhmen liegt am Meer  (traição de Luís Caminha)

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

quadra 117

(Para T. A.)

Hoje é início. E depois?
Início será... No fundo
em Fátima oitenta e dois
são vinte e oito em todo o mundo.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

SONETO A UNS ANOS

Para S.


Que bom seria se a partir de agora
eu fizesse anos como os tens desfeito,
com um toque de ciência, outro de jeito,
que és mulher da menina que em ti mora.

Mas não. Na vida o meu maior defeito
é ser mais um dos que se vão embora,
sombra em sombra da sombra daquela hora
em que isto prometia ser perfeito.

Se o tempo para nós é tão diferente,
qual é a admiração de neste dia
me dar para, de triste, ser contente?

No entanto, tu tão dentro de onde saio
é tudo o que hoje importa. Que alegria,
Qhadija, por mais este seis de maio.

quinta-feira, 28 de março de 2024

quadra 116



Se queres saber de onde venho
numa resposta concisa,
para resposta só tenho:
«Já fui novo e usei camisa.»

sábado, 16 de março de 2024

quadra 115


Esta estrela que me guia
não me oferece nenhum deus,
só me diz que perco o dia
quando os passos não são meus.

quarta-feira, 13 de março de 2024

primeiro café da tarde XLVIII


agora que estás tão vivo e eu mais do que morto,
como era, aliás, apanágio
de grande parte dos dias em que acompanhei
a tua eternidade,
vejo que ris e sorris das minhas desatenções,
do tamanho desprezo com que vivi o calendário,
do passo veloz nas rotinas que desatei.

não se te ocupe tanto o pensamento,
amigo,
fui breve mas sempre do que quis,
sê tu longo, se não sempre,
sê tudo tu se tudo queres.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

quadra 114


Nada me diz o destino,
a origem nada me diz,
não há mais do que caminho
para quem caminho quis.

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

quadra 113


Se lá fora venta e chove
cá dentro sou do que estou,
no quentinho do meu robe,
na lida do meu tricô.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

quadra 112


Já só me importam, confesso,
o bom sentido, o bom passo:
se chegar – será sucesso,
se não – não será fracasso.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

quadra 111


No lugar onde me fiz
sou cadáver do que sou
quando o teu olhar me diz
que já não sou onde estou.

sábado, 9 de setembro de 2023

quadra 110


Quando vivia de quandos
quanto não vivia, quanto,
feito de espera e desmandos,
de hojes nada que ontens tanto.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

primeiro café da tarde XLVII


é verdade     pá     estou sempre de copo na mão
e então?
é isso que te importuna ou sou eu?
todos os dias procuro
deseternizar-me     libertar a alma desta contínua
imortalidade          tento matar-me     pá
e não há exercício mais próximo desse do que este de estar
todo o dia de copo na mão

como eu em agosto


Há gente cuja palavra
já morre de ser palavra,
gente que à lua se acaba,
gente que ao sol se desgasta,

gente sempre a mais na mesa
e de adeus assaz pequeno,
gente que extingue a alma acesa
na alma do menor veneno,

há gente assim, desgentada
e transparente, sem rosto,
gente que não vale nada,
gente como eu em agosto.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

primeiro café da tarde XLVI


Das vezes em que morri
a que mais me custou foi aquela
em que descobri que em ti morri
Que lancinante a minha presença
no momento em que me apunhalaste
que lancinante o punhal ter feito
parte da minha reconstrução
Pouco importa o que fui se pouco sou
se tu nem fazes ideia
de que nunca cheguei a matar-te

sábado, 24 de junho de 2023

quadra 109


Em jovem, fui um perigo
para aquele que era eu,
mas esse então inimigo
fez-se agora amigo meu.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

OFERTA (Leonard Cohen)


Dizes que o silêncio
tem mais de paz que de poemas
mas se para oferecer-te
eu trouxesse o silêncio
(tão bem que o conheço)
devolver-mo-ias dizendo
    Aqui não há silêncio
    aqui apenas há outro poema

 
GIFT (Leonard Cohen)

You tell me that silence
is nearer to peace than poems
but if for my gift
I brought you silence
(for I know silence)
you would say
This is not silence
this is another poem
and you would hand it back to me

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

quadra 108


A solidão não se deita
com o homem que sempre te ama:
tem meio metro de estreita
a teia da vossa cama.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

poesia vertical 1-14 (traição a roberto juarroz)


Há um lugar próprio para as mãos,
ao mesmo tempo maior e menor do que elas,
um lugar onde as mãos são tudo o que são
mas também algo mais.
É esse lugar onde não há
como eu esperava
outras mãos à espera das minhas.

- - - 

POESÍA VERTICAL 14 (ROBERTO JUARROZ)

He encontrado el lugar justo
donde se ponen las manos,
a la vez mayor y menor que ellas mismas.

He encontrado el lugar
donde las manos son todo lo que son
y también algo más.

Pero allí no he encontrado
algo que estaba seguro de encontrar:
otras manos esperando las mías.

domingo, 4 de setembro de 2022

eu não sou eu (traição a Juan Ramón Jiménez)



Eu não sou eu.
Sou quem
ao meu lado não vejo
mas que hei de ver de quando em quando
como de quando em quando esqueço,
quem, sereno, se cala quando falo,
quem, amável, perdoa quando odeio,
quem se passeia por onde não estou,
quem há de resistir no dia em que eu morrer...

- - -

EU NÃO SOU EU (JUAN RAMÓN JIMÉNEZ)

Yo no soy yo.

Soy este
que va a mi lado sin yo verlo,
que, a veces, voy a ver,
y que, a veces olvido.
El que calla, sereno, cuando hablo,

el que perdona, dulce, cuando odio,
el que pasea por donde no estoy,
el que quedará en pie cuando yo muera...


sábado, 3 de setembro de 2022

mulher-gato (traição a Enrique Jardiel Poncela)


    


    Tinha os olhos verdes dos gatos, tão dos gatos que até fosforesciam na escuridão.
    Como era fácil o meu amor por ela!
    À noite, e graças às felinas propriedades daqueles olhos, eu nunca acendia a luz para ver as horas no relógio. Nem para ler um livro quando estava com insónia. Bastava-me pedir: «Flérida, querida, podes focar os olhos no livro para eu ler um pouquinho?»
    Enfim, era a mulher ideal se esquecermos o espírito demasiado gatesco, pois adorava deitar-se dentro do braseiro, deliciava-se com peixe, feria-me com os seus arranhões.
    Para mim, nada disto era imperdoável.
    Imperdoável era ela sair da cama nas madrugadas de janeiro e subir ao telhado para os seus passeios ao luar.

- - -

    MUJER-GATO (ENRIQUE JARDIEL PONCELA)

    Aquella mujer tenía unos ojos verdes, como los de los gatos, y eran tan iguales a los de los gatos, que hasta fosforescían en la oscuridad.
    ¡Qué cómodo resultaba amarla!
    Porque gracias a las felinas propiedades de sus ojos, en la noche uno veía la hora del reloj, sin tener que encender la luz. Y para leer un libro en los momentos de insomnio, tampoco hacía falta encender la luz. Bastaba con decirle a ella:
    — Flérida, hija, haz el favor de enfocarme los ojos al libro, que voy a leer un ratito.
    En fin, era una mujer ideal. Lo malo estaba en que, a causa de su espíritu gatuno, le encantaba echarse en la tarima del brasero, y adoraba el pescado, y daba unos arañazos terribles. 
    Y aun esto podía perdonársele.
    Lo que ya no se le podía perdonar era el que en las noches de enero se levantase de madrugada y se subiese al tejado a dar paseítos bajo la luna.



quarta-feira, 24 de agosto de 2022

quadra 107

 
Nada me diz o destino,
a origem nada me diz,
é-me bastante o caminho
para poder ser feliz.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

quadra 106


Erros e erros no que faço,
no que calo, no que digo
- mas o meu maior fracasso
é ter sonhado contigo.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

quadra 105 (quatre-vingts ans)


(Para T. J. M. A.
no dia do seu 80.º aniversário)


São oitenta e de certeza
serão oitenta os seguintes,
mas à grande e à francesa
chamar-lhes-ei quatro-vintes.




sábado, 13 de agosto de 2022

primeiro café da tarde XLV


é muito provável que tenha chegado ontem
em tempos pericovídeos
o meu último cartão de cidadão
    ão ão ão
    ão ão ão

informa que tenho para gastar
quase nove anos até maio de dois mil e trinta e um
mais vida menos vida   
    ida ida ida
    ida ida ida

mas que admira
eu que faço quase tudo o que quero
não aproveitar tamanha prorrogação
    ão ão ão
    ão ão ão

pode ser até que em dois mil e vinte e sete
a carta de condução já tenha ido para o beleléu
e com ela éu
    éu éu éu
    éu éu éu

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

quadra 104


Mantém sempre no sentido:
pode acontecer agora
muito do que é garantido
acontecer vida fora.

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

quadra 103


Um outro mundo te valha
se costumas, neste mundo,
ver como inútil migalha
a passagem de um segundo.


quarta-feira, 10 de agosto de 2022

quadra 102


Não é tudo o meu caminho
nem tudo de que preciso
quando me afasto um pouquinho
e a lágrima se faz riso.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

quadra 101


Não há dia em que não lembre
aquela outra narrativa
em que o lumaréu de sempre
na minha chama se aviva.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

quadra 100


Com a morte sempre presente
o homem que nunca desiste
evita que o dia invente
o dia que não existe.

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

quadra 99


Se buscares vigilante
aquilo que mais te importe,
sempre haverá quem se espante
de ser tanta a tua sorte.

domingo, 31 de julho de 2022

quadra 98


A minha verdade acaba
na garganta, isso que admira?
Se sou homem de palavra
tudo o que digo é mentira.

sábado, 30 de julho de 2022

quadra 97


Hoje que o outono se agrava
e me sei menos de cór
não estou tão bem como estava
mas sou bastante melhor.

sexta-feira, 29 de julho de 2022

quadra 96


Não te corre mal o dia
porque nem sequer te corre:
"és", na tua hipocrisia,
mais morto do que quem morre.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

quadra 95


Sem tardança mas sem pressa
fosse eu outro ao sol que espreita,
com a arte de quem começa
isento de quem se deita.

quarta-feira, 27 de julho de 2022

quadra 94


Homem, tu? Isso é difícil:
não és de palavra honesta,
comprovas em cada míssil
que nenhuma alma te resta.

quadra 93


Homem, tu??? Isso é difícil:
não és de palavra honesta,
comprovas em cada míssil
que o teu coração não presta.

terça-feira, 26 de julho de 2022

quadra 92



Saberes que a vida é curta
é o que mais te consterna
mas insistes na conduta
de vivê-la como eterna.

segunda-feira, 25 de julho de 2022

quadra 91

Deixa-te de listas breves
sobre as faltas que há em mim,
completa-as, faz o que deves,
descreve-me até ao fim.

quadra 90


Deixa-te de listas breves
sobre as faltas que há em mim,
completa-as, faz o que deves,
tritura-me até ao fim.

domingo, 24 de julho de 2022

quadra 89


Uma só moeda que sobre
no meu bolso ao fim do mês
é mais que as duas do pobre
que sofre por não ter três.

sábado, 23 de julho de 2022

quadra 88


Esquece o que ontem prometia,
busca o simples e o sorriso,
não sofras antes do dia
em que sofrer é preciso.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

quadra 87


Com tais actos pões a nu
que não vales cinco paus:
pior, pior do que tu
só tu nos teus dias maus.

sábado, 16 de julho de 2022

inverno



O que de nós fez tanto nós
foi um acaso, a descoberta
de que não há bicho tão só
como o que aceita a morte certa.

Não é de estranhar, assim sendo,
que ainda se faça de espera
a rota cama sem remendo
onde fizemos primavera.

Mas já não tenho horas no pulso
nem telemóvel no costume
e até sorrio no decurso
deste sumiço que nos une.


domingo, 10 de julho de 2022

soneto do meu amor serôdio


Será que estou demasiado velho
para o homem homem que hoje me acredito,
ainda carne e osso, a ver se tenho
no teu regaço zelos de menino?

Será que, acreditando, não me aleijo,
fartando o sono de sonhar contigo,
com tamanhas saudades do teu beijo
como se isso não fosse tão perigo?

Será que ainda podes ser amiga
se o desfecho me espera e a barba é branca
e eu sou da noite quase todo o dia?

Será que estou cansado e isso te cansa?
Serás jovem de mais por culpa minha?
Serei pouco homem se a mulher é tanta?

quarta-feira, 29 de junho de 2022

quadra 86


Amiúde sem frufru
volitas neste meu caos,
não há pior do que tu
quando estou nos dias maus.

sexta-feira, 17 de junho de 2022

putineio

putineio s.  arte menor de enredar os outros, justificando comportamentos agressivos com argumentos autocomiserativos, à maneira de Hitler e Putin, não esquecendo muitos outros governantes (árabes, israelitas, chineses, etc., etc., etc.)

primeiro café da tarde XLIV


eu putinelho
abutre do futuro e de outros passados
carcereiro de vertigens e invasor evasivo
violador de esperas e de esperas dissimulado

eu putinelho
latejando à superfície
da sonolência do mundo
registando as fraquezas da função humanoide

eu putinelho
crepitando de enfados enfadado de imprevistos
cobrindo de óxido e carcaças
os actos exaltados dos que me rejeitam

eu putinelho
ceptro-trono-coronado hiperoculado
no cume da minha colina informo que

não passais de vermes
no largo lento cego túnel de um suposto sonho
apenas sois um eco longínquo
abafado distorcido incompreensível
frémito quase imperceptível
da mera suspeita das raízes

eu putinelho
ceptro-trono-coronado hiperoculado
no cume da minha colina aviso que

nunca me cansarei do deus que sou

terça-feira, 14 de junho de 2022

primeiro café da tarde XLIII


Sempre dei ao desencontro
o nome de semente,
sempre vi nele a força possível
e a flor final.

Digamos, sem presunção,
que sempre compreendi.

Por isso digo que não,
nunca serei suficiente
para perdão que me peçam.

domingo, 12 de junho de 2022

putinelho

putinelho deprec. s. indivíduo com atitudes e comportamentos próprios ou semelhantes aos de Putin, caracterizados pela mentira descarada e pela agressividade própria que supostamente previne a de outros; indivíduo que simula autocomiseração para obter os seus intentos.

putinesco, aputinado

Putinesco, aputinado - adj. relativo ou semelhante aos comportamentos e atitudes de Putin, caracterizados pela óbvia mentira desavergonhada e pela agressividade imperialista sob um manto de falsa autocomiseração.

sábado, 28 de maio de 2022

primeiro café da tarde XLII


ouve, maria, tu não
me ponhas o coração
a cozer em lume brando,
não, não, maria, nem quando
no final desta modorra
tiveres tempo e pachorra
para fogões e outras ciências,
não, não, maria, não, não
que eu sei das tuas ausências:
não vou permitir, ah não!,
que me esturriques o coração.

sábado, 7 de maio de 2022

sábia

Que velozes os dias
há dias começados:
ainda ontem media
ditas sem desenganos,
isenta de passados,
já hoje sei de tudo
acerca do futuro.

terça-feira, 8 de março de 2022

covídeo

covídeo adj.  de ou relativo à epidemia de covid-19 ou ao período de tempo em que ela ocorreu.* 

*Utilizado, creio, com significado em parte sobreponível, já li o termo 'covídico'. Gosto menos da sua sonoridade, embora talvez seja mais intuitavemente cunhável.

segunda-feira, 7 de março de 2022

covidice

covidice s.f. (pejorativo) atitude/comportamento que se explica pelo receio extremo ou descabido de se ser contaminado pelo coronavírus.

sábado, 1 de janeiro de 2022

1/100. MORIBUNDO LENTO


Rebecca e eu vivíamos no Velho Moinho, a oitenta quilómetros da capital e longe de todas as tentações. Chegáramos havia pouco mais de seis meses, num vinte e nove de julho quente e abafado que não pressagiava os ventos e as chuvas do outono, muito menos o frio que se lhes juntaria durante um longo e autoritário inverno.

«Vai correr tudo bem, não vai, Valentyn?», perguntara-me ela enquanto puxava o travão de mão do seu velho calhambeque. Consultei a hora no telemóvel. A contagem do tempo começava trinta e nove minutos depois das catorze horas. «Não te preocupes, Rebecca.»

Para Rebecca, as palavras – havia sempre que prová-las com actos. E agora que eu era um mero humano isso era ainda mais necessário. Mas prendeu por instantes a minha mão na sua e disse o que havia a dizer, depois de tudo por que passáramos. «Sim, Valentyn. O importante agora é vivermos de acordo como o planeado. Um dia de cada vez.»

O planeado era a minha desistência. Todos, Rebecca e eu incluídos, contávamos com a minha desistência. No último instante, antes de me perfurarem o coração com uma estaca ou uma bala de prata, os tutores tinham-me dado o benefício da dúvida. E eu aceitara as condições impostas. Era agora um moribundo lento, essa foi a melhor expressão que arranjei para me definir, embora nunca a proferisse em voz alta para não obrigar Rebecca a sabê-la. Se tudo corresse como previsto, o meu fim seria dali a vinte ou trinta anos.

Ao longo dos meses seguintes fui acreditando que desistira mesmo. Até nas horas mais difíceis, aquelas em que ressacava da antiga ânsia noctívaga. Não está na minha natureza aceitar a morte mas empenhava-me nela com todo o artifício do meu génio. Chegava a sentir-me aliviado face à minha nova condição de homem rasteiro, preparado para tudo o que pudesse correr mal no meio daquele tudo bem correr que Rebecca esperava.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

café da tarde XLI


és tão de aqui     qhadija     tão de ali
tão mais     tão longe     tão pouco de mim
que tudo o que hoje quero
    velho egoísta
é que te inventes e me sobrevivas

sei lá eu se estes versos são bonitos

a serem versos já apenas sei
que de algum modo haviam de ser escritos

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

primeiro café da tarde XL


eu cá de pretas nunca jogaria
1. e4 d5 contra ti
és tramada implacável decidida
sábia e estudiosa     não perdoas
escandinavas à portuguesa

neste esparramado xadrez
que vamos construindo    em tu deixando
vai 1. e4 e6 com muita calma
     que hoje não estou numa de perder
     e muito menos de vencer

1. e4 c5 também não estaria mal
mas viesse o que deus quisesse
fosse como fosse seja como for
de acordo com a média são menos de quarenta
as jogadas para o teu xeque
xeque
xeque-mate

não achas     meu amor
que este nosso jogo dá empate?

sábado, 11 de dezembro de 2021

quadra 85


Na minha insónia há um rasto
de culpa, adeus e embaraço
por mais este dia gasto
sem amor pelo que faço.

terça-feira, 9 de novembro de 2021

primeiro café da tarde XXXIX


falta-nos o tempo em que éramos pigros
    clientes habituais
    do fácil assombro e do invento inócuo
tivemos talento à beira-perigo
    talvez mesmo o génio
    de animais vividos
    que sempre adolescem
e hoje somos isto
    que tão bem se vê
        pedaços de carne ausentes de luz
        alienadas vidas
        sem osso na alma
        fatais parasitas
        de tudo o que um dia
        porventura fomos


sábado, 6 de novembro de 2021

primeiro café da tarde XXXVIII


a queda há pouco foi breve 
mas dura
da cabeça ao chão três metros em falso
mas estou em crer que sem cabeçada

dela e num repente
    o rasgo fundo largo e feio até ao osso
        branco no dorso do anelar esquerdo
    um algo também de pele arrancada sob sei
        lá que joelho
    e outro de pele esfolada acima
        da dor de cotovelo
agora e na cama chega a presença do osso machucado
    nessa transição entre costas e pernas que em mim
        de acordo com o nível e outras opiniões mais avalizadas
    ninguém poderia chamar de rabo

pensei que era a morte ali
    caraças
mas creio que ainda me restam algumas horas
quantas não sei que nunca se sabe
de meia dúzia até infinitas
    sejam as que forem
mas estou mais preparado para o fim
    do que para a eternidade

sábado, 30 de outubro de 2021

o talento de amar-te



hoje quase me deu para telefonar-te
de madrugada e quando ia a manhã a meio
também se adormeci e se fazia tarde
quase quase à noitinha e à hora em que me leio
no cansaço do sol nos desmandos da lua

hoje quase me deu para me pôr brejeiro
e ao longe desnudar-te até que fosses nua
e de tão servo teu brincar a ser teu dono
no constante cadinho em que fiel se apura
à beira da tua alma o abismo do meu corpo

hoje quase me deu para reinventar-te
quando a meio do sono antecipasse o sonho
e o vento como agora aflito nos buscasse
nos escaninhos da espera entre as esperas de quem
da obstinação fizesse a sua única arte

hoje quase me deu para ser o que vem
hoje quase me deu para ser o que parte
hoje quase me deu para ser o que tem
entre astilhas da morte o talento de amar-te

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

transparência e luz no teu aniversário







parti de lisboa     madrugada ainda
    para aqui chegar antes da confusão
    por isso alunei algumas horas antes
    da hora em que é comum abrirem os mercados
queria à-vontade para investigar
    todas as ofertas através das montras
    espreitar o líquido mais importante
    avaliar     talvez     os preços mais em conta
mas devo dizer-te que esta minha ideia
    logo desde o início me pareceu má
    pois nada encontrei dessa lua saudosa
    onde fomos jovens e nos conhecemos
tudo está mudado     nada lembra os dias
    em que os dias eram de hoje e entusiasmo
    sem a demasia de amanhãs e esperas
percorri cidades     aldeias e vilas
    e     dentro de todas     ruas avenidas
    sempre em busca de água     essa água cristalina
    em cujo sabor matávamos a sede
mas também aqui se vão impondo a sede
    e os gestos com que ela não se intensifique
    também aqui a água é paga a peso de ouro
    apesar de muita e menos poluída
de nada serviram os tempos antigos
    de bom selenita     mineiro capaz
    já ninguém se lembra de quanto entreguei
    para a construção deste mundo habitável
a única mensagem que me transmitiram
    é a de que está proibida a terráqueos
    a venda de bens     abundantes ou não
    que tenham origem no solo lunar
pouco lhes importa que o meu bisavô
    tenha aqui nascido     inteiro para a lua
    e que o seu avô tivesse combatido
    para aqui morrer durante meio século
    e que há poucos anos eu tivesse sido
    um dos que inventaram este paraíso
para resumir-te todo o meu sucesso
    dir-te-ei     sem sorriso     que apesar de tudo
    alguém mais ousado enfim me prometeu
    o mais bem medido litro e meio de água
    numa das melhores garrafas de plástico
    a um preço acessível entre os excessivos
está pronta amanhã     tem calma que haverá
    transparência e luz no teu aniversário
    vais poder matar um pouquinho da sede
    saltando uma ou duas dessas dez pastilhas
    com que diariamente tentamos esquecê-la
mas olha     maria     não é só na terra
    que a água potável se tornou tesouro
muito em breve     a lua será outro mais
    desses cemitérios de antigas demandas
    que vão construindo as invenções do homem
não temos futuro     talvez esta seja
    a última das minhas viagens à lua

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

amiga

Klara é Amiga Artificial: 'vive' para sê-lo, sonha sê-lo na loja onde espera pelo objecto do seu amor: ora na montra, mais directamente sob a luz do seu Sol e a curiosidade dos que passam; ora mais escondida, para que outros Amigos Artificiais, talvez mais brilhantes, talvez menos humanos, tenham a sua vez.

Em breve, nada mais lhe interessará do que compreender e ajudar Josie, que foi quem a quis para si e convenceu a mãe a comprar-lha. A sua competência é tal que chega a pedir a intervenção do Sol, essa poderosa e ocupadíssima entidade que todos os dias a revigora. Pede-lhe, com humildade e fervor, que dê um futuro à sua amiga, que a cure. Sim, porque Josie, ao ter sido 'elevada' ['lifted' no original], tornou-se uma criança muito frágil. Não te preocupes, leitor, aos poucos irás descobrindo o que é isto de ela ter sido 'elevada'.

Ishiguro, suave e genial construtor de mundos, hábil construtor de possíveis futuros e inesperados passados, obriga o leitor a viver, sorrir e folhear, sem reviravoltas, fogos de artifício, soluções ou recursos espalhafatosos. Ishiguro, como sempre, não intervém com as suas opiniões na história e nos ambientes que cria. Estes são, por inteiro, de quem os narra e de quem os vive. E de quem os lê.


- Klara and the Sun
- Kazuo Ishiguro
- Faber & Faber (2021)
- Lido em setembro de 2021, na versão inglesa [há tradução portuguesa, pela Gradiva, 'Klara e o Sol', trad. Maria de Fátima Carmo]

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

que se foda o homem (para o meu amigo savimbi)


amigo savimbi     como sabes
não sou o centro de nada
e seria preciso ser o centro de tudo
para achar a vida um absurdo
e a dor escusada

viver há de ser sonho para o homem
para esta cadelinha a que dei o nome de luna
para o gatinho a que chamei gato porque não lhe quis chorar a morte
para a mariposa até
    e este até é tão pouco de homem
a que decidi dar o nome de traça
    por     na opinião dos outros     traçar bué

se há de chamar-se ao sonho sonho do homem
há de chamar-se pesadelo
aos minutos que o comem
e que se foda então o absurdo da vida
que se foda o sofrimento
que se foda o seu azedo

eh pá
que se foda o homem

sábado, 29 de maio de 2021

desmaio


desmaio s.m. finais de maio, tendo em mente, sobretudo, os dias de estio que se adivinham, quentes e por vezes infernais; fig. final de um período sereno e aprazível. (de maio)

EX: mais um desmaio

mais um desmaio (carta para Jane)


São quatro da manhã, finais de maio,
sábado, mas os sábados
há muito são iguais,
costumo dar o nome de desmaio
a estes dias pacatos
antes dos que aí vêm, infernais.
Tantos nomes que inventas, meu amigo,
recordo que dizias
com o teu sorriso gordo,
mas dou-me conta de que não consigo
dar nome às mãos vazias
do rumo que traçavam no teu corpo.
Quando, como esta noite, me aventuro
no triste e fértil chão
de tudo o que perdi,
interrogo-me se este meu futuro
tinhas presente então,
se já me adivinhavas tão sem ti
na madrugada de mais um desmaio.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

primeiro café da tarde XXXVII


sobressalta-me ainda a pedra que
no teu percurso te prepara a queda
és tão voo como ave de rapina
mas tantos anos há que não o sabes

sobressalta-me ainda que haja antóneos
na tua cama e eu seja nenhum deles
és o mais meu deste homem sem procuras
mas tantos anos há que não o sabes

sobressalta-me ainda que desculpes
numa dúzia de falhas um milhar
de certezas antigas, és tão da água
mas tantos anos há que não o sabes

sobressaltas-me ainda como o limo
verde que ontem da espera enferrujou
no teu mar só me deixas cabotagem
mas tantos anos há que não o sabes

sobressaltas-me ainda
mas tantos anos
ah
que não o sabes

quinta-feira, 27 de maio de 2021

desquandar

desquandar . v. tr. 1. Retirar características temporais a; 2. Retirar importância temporal a;
v. intr. e pron. 3.Separar-se de referências ou interesses temporais (passado, presente, futuro); 4. não ter interesse na vida; 5. Desinteressar-se, esquecer-se (de algo ou alguém e do vivido com esse algo ou alguém).
ETIM. quando

EX. a) Deixou de sofrer quando conseguiu desquandar todos os seus passos.
b) Desquandar-se não foi, como é óbvio, uma decisão consciente.
Ver tb.: Desquandamento, desquando (por derivação regressiva), etc.


decadência

 Decadência - s. f. tendência patológica para deprimir durante uma década após perda traumática, sobretudo amorosa ETIM. década

terça-feira, 25 de maio de 2021

soneto do meu coração desquandado

para a. c. e s. b.





O meu coração é quando
te reclinas no sofá
entre sonos apurando
o sonho que já não há.

O meu coração é quando
dormes cheiinha de má
e o ferves em lume brando
para o esturrar, esturra lá.

O meu coração é quando
ser meu tanto se te dá,
e adeus em verbo nefando
acompanha o teu olá.

O meu coração é quando
de ti se vai desquandando.

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Qhadija





Quando nas ruas de Lisboa,
há pouco mais de pouco vento,
a primavera andava à toa
do que fazias com o tempo,
isto da vida era deus dentro,
janela aberta para o encontro
antes da urgência e seus escombros.
.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Soneto desgovernado


Se exausto um dia o futuro
atirasse ao lixo o enredo
e desistindo de tudo
desistisse deste azedo,
se de esperanças e apuros
se deixasse tarde ou cedo
displicente face ao furto
por ontem deste brinquedo,
se atribuísse ao céu escuro
a persistência do albedo
e compreendesse quão curto
inventa amor, quão veneno,
se exausto um dia o futuro
quisessse ser desgoverno...

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

perspectiva da alma (Mario Benedetti)


Meu irmão corpo     estás cansado
do cérebro à misericórdia
do paladar ao vale do desejo

quando me dizes     alma ajuda-me
a minha comoção visita a angústia
e até o próprio ar é vulnerável

meu irmão corpo     no trabalho pões
músculo e estômago     também os nervos
rins e brônquios     também o diafragma

quando me dizes     alma ajuda-me
sei que estás condenado     que és matéria
e a matéria é propensa a desfiar-se

meu irmão corpo     sei-te bem
fui hóspede e anfitriã das tuas dores
rampa modesta do teu sexo ávido

quando me pedes     alma ajuda-me
sinto que o frio me rebaixa
que magia e doçura se me vão

meu irmão corpo     tu és tão fugaz
conjuntural efémero brevíssimo
imóvel por efeito de um arquejo

e eu que tenho por uso ser a vida
acabarei estreitando os teus ossinhos
alma incompleta sem as tuas vísceras

                                                            Para Qh,
                                                            traição a 'Desde el alma' (Mario Benedetti),
                                                            Casarão e 2021, 11 de janeiro
                                                            

o silêncio do mar (Mario Benedetti)

O silêncio do mar
brama um juízo infinito,
mais concentrado que o de um cântaro,
mais implacável que duas gotas

quer aproxime o horizonte quer nos entregue
a morte azul das medusas
as nossas suspeitas não o deixam

o mar escuta como um surdo
é insensível como um deus
e sobrevive aos sobreviventes

Nunca saberei o que dele espero
nem o conjuro que deixa nos meus artelhos
mas quando estes olhos se cansam de ladrilhos
e esperam entre a planície e as colinas
ou em ruas que se fecham sobre mais ruas
então, sim, náufrago me sinto e só o mar
pode salvar-me

                                                            Para Qh.,
                                                            traição a 'El silencio del mar' 
                                                            (Mario Benedetti), 
                                                            Casarão e 2021, 11 de janeiro

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

soneto ancestral


um vórtice de febre me devora
às vezes     um imenso mar de cinza
que esbate os tímpanos     que grita ao rasto
da minha pele entre algas de silêncio

uma náusea inquieta que me afunda
um dilúvio de plástico e alcatrão
que as fronteiras desfaz     que cega as vozes
na densidade destes peixes podres

sorri-me     então     um vago tiritar
um saber e de cór as cefaleias
da côr     essas que esgueiram em camisa
por entre as horas     os invernos todos

quando assim acontece     tudo é dentro
e quando não     é porque tudo é fora

                                     Lisboa, 17.09.2010

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

intermezzo osculatório


O averiguador consultava a ocorrência num papel. Responda-me só a uma coisa, senhor...

Pergunte, respondeu o senhor, sem se incomodar com as reticências.

Vejo que está calmo. Não se preocupa?

Com quê?

Com o que pode vir a acontecer-lhe. Sobretudo, com o que pode vir a acontecer à sua mulher.

Bastante.

Não parece. Talvez não saiba que pode ter de cá passar esta noite. Esta e outras... Que pensa disso?

É como disse. Preocupo-me.

Sim, claro. Preocupa-se. Já agora, pode explicar-me melhor com quê?

Com tudo. Com o que possa ter feito. Com o que os outros possam pensar de mim. Sobretudo, com a passagem do tempo.

O averiguador não queria acreditar. O meu amigo não pode dizer isso. É óbvio que não se preocupa. Está a esquecer-se da razão por que devia preocupar-se a sério.

Beijei a minha mulher, não é?

Ó meu amigo, beijou-a quando ela estava desprevenida e beijou-a à moda antiga. Sem um contrato prévio e sem máscara osculatória. É óbvio que não se preocupa com a opinião dos outros. É ainda mais óbvio que não se preocupa com a saúde dela. E, claro, não se preocupa nada com a lei.

Se eu lhe disser que provavelmente estava a dormir? Que estava no meio de um sonho quando o fiz?

Dormia, pois então. Acordemos em que dormia. Mas o que fez ao certo, enquanto dormia?

Aproximei-me dela, está visto. Só isso.

Só isso? Só isso seria muito. Mas parece-me que não foi só isso, pois não?

Recordo-me de que ela acordou aos gritos.

E de que se recorda mais quando ela acordou aos gritos?

Os meus lábios confundiam-se com os dela. Mas num primeiro instante...

A frase ficou presa porque nos lábios do averiguador se desenhou uma breve mas indesmentível onda de repulsa, que tentou disfarçar com um incentivo a que o outro continuasse. Num primeiro instante?

Num primeiro instante, os lábios dela pareciam dançar com os meus. Senti como antigamente a humidade da sua boca, o veludo da sua língua. No princípio estranhei. Éramos de novo aprendizes. Não beijávamos há... Não nos beijávamos desde a proibição.

À palavra proibição, sem espera nem disfarce, o averiguador olhou para o averiguado com o sorriso largo de quem obtinha por fim o que desejava. A sua mulher está em choque pelo crime cometido.

Mas ela parecia corresponder.

Ela estava a dormir. De qualquer modo...

De qualquer modo parecia corresponder.

Não é essa a informação que temos. A sua mulher não concordou com o beijo. Acordou aos gritos, apresentou queixa de imediato e a informação que tenho do centro de quarentena é de que vive em sobressalto com receio de estar contaminada. Não está arrependido?

O averiguado soltou um suspiro e, pela primeira vez, pareceu reconhecer o seu erro. É a minha mulher. Estávamos a sonhar.

Isso para mim são pormenores que só no julgamento serão tidos em conta. O que eu sei e o que apenas me interessa é que a beijou sem o seu consentimento, o que significa que ela é vítima de um crime e não cúmplice, como tem querido fazer-me crer.

Crime...

Sim. Há mais de uma década que os beijos estão proibidos e há mais de meia que foi agravada a moldura penal para quem os dá. Existem, como sabe, certos procedimentos obrigatórios para quem opta por gestos afectuosos. No mínimo são necessários um contrato escrito entre os osculantes e o uso de máscaras osculatórias por ambos.

Eu sei, mas...

Mas estava a dormir.

O averiguado baixou a cabeça e desistiu da defesa. Talvez não estivesse.

Aliviado, o averiguador deixou que um silêncio crescesse sobre as lágrimas que começavam a escorrer no rosto do outro. Vamos, não esteja assim. Toda a gente comete erros. O passo principal já foi dado ao reconhecer o crime. Agora é pagar por ele e seguir em frente. Retocou a máscara para se certificar de que estava bem colada ao nariz, levantou-se e mandou vir o carcereiro. Passa cá a noite e amanhã é apresentado ao juiz.

Já se faziam choro largo as lágrimas do criminoso. Enquanto o carcereiro o encaminhava para a cela, apenas pôde pronunciar, entre soluços, Por favor, avisem a minha mulher...


in Saúde Ambiental - Caderno de notas soltasEds.: Ricardo R. Santos, Osvaldo Santos e António Vaz Carneiro (ISAMB - Instituto de Saúde Ambiental)

sábado, 23 de janeiro de 2021

um destino prometido


Naquela que Romain Gary dizia ser a primeira das autobiografias que escreveu, La promesse de l'aube,  é-nos contada a sua vida desde a infância, na Polónia, até o final da Segunda Guerra Mundial. Judeu russo nascido em Vilnius, marca a sua escrita uma capacidade incomum para expor sem pejo nem rebuço todas as ânsias que o impeliram desde criança.

Um profundo e correspondido amor o une à mãe, ex-actriz que não se poupa a esforços para dar ao filho a oportunidade de ele cumprir um destino importante. Um destino que para ela é inevitável e de que todos os actos do jovem são uma promessa. Assim, sem pausa o incentiva a fazer o que é preciso para ser grande: um grande escritor, um grande embaixador, um grande artista, um grande homem. Sem pausa o defende de tudo e de todos. Sem pausa mostra ao mundo que o filho é diferente. Quanto a ele, por amá-la ao ponto de não querer desiludi-la nem nas suas expectativas mais megalómanas, desde cedo torna seu o sonho de satisfazer os sonhos da mãe.

Mesmo depois de morrer, essa mulher forte e capaz de tudo para amparar o filho continuará a ser a bússola no percurso deste, um percurso pautado pelo fino sentido de humor dos que são capazes de rir de si próprios, por um desconcertante à-vontade para confessar os actos mais insensatos e por uma assombrosa incapacidade para desesperar.

A Promessa
Romain Gary
Livros do Brasil, 2019
Ed. original: La promesse de l'aube (1960)
Trad.: Augusto Abelaira (cap. XXII: Manuel Reis)
Rev.: Susana Baeta

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

quadra 84


Adiar parcas e demos
mais do que nunca é preciso.
Mas como, se nós não temos
nem um pouco de juízo?

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

quadra 83


Só hoje, que isso faz parte
deste invulgar mundo adiado,
eu percebo que beijar-te
já é coisa do passado.

sábado, 16 de janeiro de 2021

soneto sem futuro


Dizem com todo o aparato
que viver é homicídio
e eu dou, tíbio, de barato
que urge agora o suicídio.

Dizem «mete-te no quarto,
adia esse suicídio»
e eu, mais que farto, refarto,
solto o meu riso covídeo.

Dizem «não faças teatro
com esse teu riso covídeo»
e eu, finalmente sensato,
desenvolvo o amoricídio.

Dizem «é só uma fase».
Que importa agora? Sou quase.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

quadra 82


Dizem «mete-te no quarto,
adia um pouco o suicídio»
e eu, mais que farto, refarto,
solto o meu riso covídeo.


quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Esperança e Amor


Enforquei minha Esperança,
mas Amor foi tão madraço
que lhe cortou o baraço. (CAMÕES)

Lembro-me bem de Esperança
ao colo embalando Amor
e este dizendo, em voz mansa,
«aceito seja o que for».
Cadáver já, bolorenta,
enforcada em triunfo escasso,
ainda hoje Esperança inventa
para Amor no seu regaço:
só por ela ainda Amor tenta
depois que se fez madraço.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

O maior defeito de Belisa


Mil defeitos tem Belisa,
à parte o maior defeito:
o de ainda ser amiga
deste palerma perfeito.

Quem a entenda, quem a estude
há de atentar no conceito
de nunca a muita virtude
casar com o pouco defeito,
pois, de uma forma imprecisa,
mil defeitos tem Belisa.

À parte um, que é mais pecado,
todos há que perdoar-lhe,
que amar tanto ou demasiado
nunca foi mero detalhe:
brilhe, pois, o que é perfeito
à parte o maior defeito.

Não pode é passar em claro
aquele que tanto a apouca,
há que fazer-lhe o reparo,
há que dizer-lhe que é louca
por que entre vícios persiga
o de ainda ser amiga...

Amiga de quem na vida
nunca soube ser amigo,
amiga comprometida
de quem vê nisso perigo,
amiga inteira e a preceito
deste palerma perfeito.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

quadra 81



Mil defeitos tem Belisa
além do maior defeito:
o de ainda ser amiga
deste palerma perfeito.

domingo, 3 de janeiro de 2021

quadra 80

Eu isto, eu aquilo, o meu
percurso, esta minha vida,
foi assim que aconteceu
em mim outra alma perdida.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Soneto do maior erro



São vidas a vida, o tempo
baralha, parte e reparte
aquilo que cá por dentro
se assemelha a um só combate.
O problema de lembrar-te
e lembrar-me como lembro
é sempre o de esconder a arte
com que invento, se me invento.
Falta-me, pois, fantasia,
ponho em tudo igual momento,
pouco estudo e nada aprendo
se me sou tão demasia,
se juro nós e o que fomos
para essência do que somos.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

inventário


Rezingão, amuado, mau,
rancoroso, solitário,
burro, palerma, calhau,
trol sem alma nem horário.

Desistente, preguiçoso,
infeliz, desamorado,
monstro, zombie, e é forçoso
que de sonhos dispensado.

Se tenho de falar mal,
falo de mim. Só faltou
na lista atrás que afinal
escrevo melhor do que sou.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Soneto da São Silvestre de 2020



A trinta e um de dezembro apuro o ouvido
e afino a vista, já ninguém me tira
ser antónio, estou mais que decidido
a buscar em janeiro essa vampira
que me dessangre calma, generosa,
que, moribundo eu já, me parta os ossos
e me sugue o tutano enquanto goza
de uma vida escusada e sem remorsos.
Duas romãs, um par de diospiros,
pouco antes da tragédia talvez tente
duas léguas na estrada e com suspiros
na última são silvestre, é evidente.
De tudo isto a minha única mentira
há de ser em janeiro a tal vampira.


PS1: A São Silvestre, nesta década a minha primeira contra mim apenas, entretanto já se correu (Casarão-Dagorda-Peral-Casarão: 10 km, 48m56s. Não está mal, fiz o que pude sem ter quem puxasse por mim...)
PS2: Definitivamente, a partir de hoje digo diospiros e não dióspiros... Zeus não se importará.
PS3: Obrigado à bela romãzeira-diospireira, assim mesmo e não necessariamente plantada.
PS4: A vampira, ofereceram-ma certas passagens do enorme Romain Gary, em "A Promessa". Por exemplo: «Sempre sonhei ser arruinado moral, física e materialmente por uma mulher: deve ser maravilhoso, apesar de tudo, poder fazer alguma coisa de grande na vida" (p. 138, trad. Augusto Abelaira, Livros do Brasil, 2019).